Ubertales – Boy-monstro

Estou mais do que avisada da inutilidade de arguir com gado. Minha desculpa é que não entendi de início tratar-se de um. O uber era vip, para que meu pé não sofresse. O motorista parou ao lado de um buraco, então lhe pedi que avançasse um pouco, para eu poder entrar. Dentro do carro, expliquei por que havia lhe feito o pedido. Não podia arriscar meu tornozelo, que sofrera rotura completa do ligamento em função da má conservação da calçada. Emendei, erro de início, que a administração pública não cuidava da cidade. E ele disse que, com Tarcísio, tudo poderia ser diferente.

Mocinho magro de boné, que não errava em demasia o português. Resolvi então argumentar em favor de Haddad. “Não sou aqui da capital e me disseram que ele foi péssimo na prefeitura”. Como assim, péssimo, em que sentido? “Me disseram”. Vai votar em Bolsonaro? “Vou. Ele não tem culpa pela situação”. Você está feliz com a alta da gasolina? “Com Lula era 2,90”. Não era. “Eu pago 5 hoje, tá bom”. Você sabe que diminuiu e vai aumentar por causa da eleição. “Não. Bolsonaro pegou a crise mundial.” Lula também, mas a gasolina era nossa naquele tempo e não é agora. “Bolsonaro faz o que pode”. Sim, faz tudo o que pode para se favorecer e à quadrilha a que pertence, secretamente. “A Dilma inventou o sigilo de cem anos”. Meu deus.

Deveria ter saído do carro ali, mas ainda estava na 23 de Maio, longe de casa, impossível chamar uber na via expressa.

“O PT deixou o país sem reservas”. Não, o Bolsonaro é quem as destrói para se perpetuar no poder. “Não senhora, Lula deixou o país deficitário”. Onde leu isso? “Foi dito no debate e o Bonner concordou”. Precisa ler mais, cara! Olha o salário mínimo congelado, agora à mercê do reajuste desvinculado da inflação. (Resposta zero). Bolsonaro só governa para o empresário sonegador e para a milícia que precisa de armas. “Eu sou a favor das armas e não entendo como alguém vota em um condenado em todas as instâncias”. Os processos contra Lula foram anulados por falta de provas. “Como assim, falta de provas?” (gargalhando).

Você é mais um filho da puta que defende a tortura. Dá licença. Saí do carro batendo a porta, estava mais perto de minha residência, mas ainda assim tive de andar a São João inteira no calor. Andar me aliviou. E minha queixa ao Uber ficou bonitinha. Me agradou saber que para a informação sobre o salário mínimo ele não usou argumentos do zap. Temos de bater nisso. E ainda bem que não sou homem de muque, ou teria enchido o boy-monstro de porrada.

Ubertales – Invocando Charlton Heston contra Fiúza

A cena. Eu na porta do consultório, de pé, com bota e uma bengala, à espera do uber que me trará de volta pra casa. O uber chega pela outra mão da rua, eu grito pra ele retornar até o endereço pedido, onde me encontro. Não só não retorna como estaciona do lado de lá, na esquina da rua, e me espera. Tenho de atravessar e andar de bengala até a esquina (ou vou chamar outro carro e me cobrarão taxa de cancelamento). Entro no automóvel do senhor idoso, que diz: “Desculpe, não vi a senhora lá.” Ah tá. No carro, rola rádio Jovem Pan. Seis horas, momento de “debate”, e alguém grita que Lula Comunista quer a Ditadura do Proletariado. Qual a opinião do candidato sobre o “absurdo” Moraes no TSE? Fala, Fiúza! E Fiúza, em resposta, começa por adular, rolando lero, um jornalista da bancada que acaba de perder o filho. Depois, o de sempre. A caterva dos petistas! Meu celular velho fica sem serviço o tempo inteiro, quarenta minutos. Nada que eu possa ouvir pelo spotify como alternativa caridosa. E a loção do motorista vai me impregnando. Abro a janela inutilmente, em busca de respiro. Fantasio descer ali mesmo, na avenida 23 de Maio do rush, e com minha bengala abrir caminho, feito o Charlton Heston nos Dez Mandamentos. Por que os bolsonaristas não limpam os focinhos?

no uber, o intransponível

Às vezes você se ilude achando que não vai precisar discutir mais certas coisas, de tão ultrapassadas.

Mas é claro que certas coisas continuam intransponíveis.

Pego o uber e o motorista de uns 35 anos, já com um início de calvície, usa um boné maneiro. Somado a seu estado corporal, ele é uma espécie de Chorão do Charlie Brown sem a consciência crítica. Todo ele, pelo contrário, é mais a fúria inconsciente.

Vamos para a Barra Funda, que em certos trechos, mais funda não poderia ser.

– Esses caras espalhados pelo chão me dão uma raiva – o motorista vai dizendo.

– Raiva por quê? – vou perguntando, em lugar de sabiamente interromper a possibilidade de discussão.

– O problema, eu acho, é esse tal de direitos humanos – ele responde.

– Por que direitos humanos seriam um problema?

– Porque essas pessoas que ficam na rua matam inocentes.

– E você acha que sem direitos humanos se faz justiça?

– Não sei. Elas não folgam, ao menos. Eu sei que tem miséria no meio, mas tem também malandragem.

– Malandragem é morar ao relento?

– Malandragem assim, como vi outro dia. O amigo disse pro outro: “Trabalhar pra quê se a gente recebe o dinheiro do Bolsonaro?”

– Quanta ignorância, né amigo?

– Muita!

– Você sabe que o dinheiro não é do Bolsonaro, né? É nosso!

– É nosso, claro!

– E ele nem queria distribuir pros pobres, né? Foi o Congresso que obrigou.

– Isso!

– Então. Que sentido faz pedir o fim dos direitos humanos? Isso é pedir o fim dos nossos direitos. Dos nossos, que não somos ricos. O direito a um julgamento justo. Porque os ricos não vão presos, certo?

– Não vão, é revoltante, o povo não aguenta mais!

– Então. Sem direitos humanos, quem vai decidir sobre nossa vida? Quem vai nos defender? O Bolsonaro?

– Ele é que não!

– Então não vamos pedir o fim dos direitos humanos, tá? É nossa garantia de sobrevivência.

– Mas que me dá uma raiva a senhora não imagina.

– Raiva do povo ou raiva do Bolsonaro? Você precisa escolher.

– Tenho mais raiva do povo. Mas vou pensar, prometo.

e se mudar a rádio?

Começo o dia ainda animada pelo show de ontem. E entro no uber cheia de esperança. O jovem motorista, negro, usa boné e tem um carro bonito, não me pergunte qual, bem limpo. Sorri o tempo todo. Comenta o clima.

– Por isso a gente fica doente, né? Que sol é esse depois do frio de manhã cedo?

– Tem razão – digo. – E aconselho uma coisa: vacine-se contra a gripe. Peguei H1N1 e quase fui… Gripe e antigripal acabaram comigo! Ainda me sinto mal, sabia? Não vale a pena.

Me olha, diz baixo:

– Olha, moça, eu não acredito muito nessa indústria de vacinas…

(Rosane, por que não te maria calas?)

– Melhor você acreditar nessa indústria que naquela farmacêutica pra curar seu sarampo – brinco, na tentativa de lhe devolver toda a boa educação que teve comigo. – E vacina ainda é grátis no posto, não mata você…

– Acho que a senhora vai gostar deste programa.

Aumenta o rádio. Já o ouvia quando entrei. Eu penso: é agora, Orora. O Pânico da Jovem Pan comenta o aquecimento global.

O jovem professor de nome Ricardo Felicio, climatologista “da usp”, parece um jogador olímpico de pingue-pongue contra os radialistas do achincalhe da cognição. A cada pergunta banal, o entrevistado faz um rebate surreal, rápido, de tontear.

O Felício diz que:

1. Aquecimento global é cem por cento geopolítica. Não existe. Apenas passamos a monitorar a temperatura nos últimos anos. Nunca se viu tanto gelo como agora.

2. É só desenvolver uma bactéria que coma o plástico jogado ao oceano.

3. As abelhas, se morrerem, serão substituídas por outras espécies. Nunca se produziu tanto mel como no ano passado.

4. A engenharia florestal brasileira é a melhor do mundo. “Madeira dá muito dinheiro.”

Olho pro motorista com pena. O programa acompanha sua tentativa de entender a confusão do mundo. Uma rádio que é uma concessão pública, meu deus. Um entrevistado que nem sei classificar, um mitômano, um canalha.

Estamos chegando e eu, aterrada daquela felicidade airosa de minutos atrás, só lhe digo:

– Me promete que não vai deixar de se vacinar?

– Sim – sorri. – Prometo.

– E dou uma dica de estação de rádio melhor que essa. Já ouviu a Brasil Atual?