Burroughs por dentro, em poderosa reconstrução

Documentário na 49ª Mostra refaz o evento de 1978 que reuniu a contracultura
de Nova York para homenagear a obra, a lucidez e o humor do escritor

William S. Burroughs na América para a qual imaginou um futuro, em cena de “Nova ’78”

O filme Nova 78, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é a história da contracultura reconstruída em hora propícia. Um documentário a nos lembrar do ponto de onde poderíamos ter partido para a construção de uma sociedade igualitária, não estivéssemos hoje mergulhados na distopia mundial que estagna a fraternidade e a justiça entre os povos.

Este é o filme em que vemos o escritor estadunidense nascido em Saint Louis William S. Burroughs (1914-1997) ser reverenciado por seus continuadores, entre 30 de novembro e 2 de dezembro de 1978, após mais de duas décadas das viagens por ele empreendidas à América Latina, à Europa e ao norte da África. Nas filmagens em 16mm feitas originalmente pelo cineasta Howard Brookner, morto com aids aos 34 anos, em 1989, e com o som providenciado pelo futuro diretor estadunidense Jim Jarmusch (nascido em 1953 e cujo mais recente filme, “Pai mãe irmã irmão”, também é exibido na mostra), podem-se acompanhar os passos do encontro intitulado Nova Convention, que 47 anos atrás perseguiu o conceito “nova”, de Burroughs, segundo o qual o futuro se escreveria no espaço, não no tempo. 

Ao encontro realizado no Entermedia Theatre, teatro off-Broadway situado na Segunda Avenida com a Rua 12 (e convertido em um complexo de cinemas multiplex nos anos 1990), comparecem amigos e artistas da contracultura agradecidos à influência de Burroughs, como os poetas compatriotas Allen Ginsberg (1926-1977) e Peter Orlovsky (1933-2010). Os dois realizaram um show no qual Orlovsky acompanhou ao banjo a musicalidade poética de Ginsberg. Houve outras duplas de convidados, como a composta pelo bailarino Merce Cunningham e o músico John Cage, artistas que mantiveram uma parceria criativa e amorosa dos anos 1940 até a morte de Cage, em 1992. Em seu show, Cage aponta notas mínimas para o equilíbrio desenvolto de Cunningham, então com 59 anos.

A artista Laurie Anderson esteve presente ao evento com seu humor, a preconizar o futuro digital, e Philip Glass tocou as notas sonhadas de seu futuro em um sintetizador Yamaha. Frank Zappa compareceu, mas não fez um show musical: depois de informar a todos os presentes que não gostava especialmente de livros, leu o trecho de “Almoço Nu”, de Burroughs, no qual o Cu é o ventríloquo do homem, a peidar bobagens quando fala. O psicólogo e escritor Timothy Leary comparece a uma mesa em que compara uma fala de Burroughs a uma imagem causada pelo uso do LSD, alucinógeno que advogava. A poeta do rock Patti Smith tem de comunicar à plateia a ausência da prometida estrela Keith Richards no evento, mas não dá ao público muito tempo para protestar. Suas palavras poeticamente firmes e a guitarra pesada envolvem-no rapidamente. Além de Richards, outra ausência notável é a da ensaísta Susan Sontag.

O filme, contudo, não existiu per se. Ele nasceu a partir da descoberta de negativos de filmagens abandonadas pelo nova-iorquino Brookner, que em 1983 compôs a cinebiografia “Burroughs: The Movie” como um trabalho para a Universidade de Nova York. Foi seu sobrinho Aaron Brookner, autor em 2016 de um documentário sobre o tio, “Uncle Howard”, quem achou os rolos. Ele chamou o amigo português de Guimarães Rodrigo Areias (ao lado de quem, em 2020, produzira o filme de Ana Rita Rocha “Listen”), para construir uma narrativa a partir dos importantes fragmentos do encontro.

“Nova 78” é um achado que começa de maneira deliciosa, com Burroughs, aos 64 anos, sentado em uma cadeira, calado diante da pergunta que o cineasta lhe faz. Durante o filme, por vezes caracterizado com o chapéu e o terno que compunham a máscara de seu personagem público, ele tem bom humor e lucidez. Por exemplo, incita o público da Nova Convention à luta contra o projeto do republicano John Briggs, conhecido como Proposição 6, que seria votado (e derrotado) naquele ano, e que proibia gays, lésbicas e apoiadores de seus direitos de trabalhar nas escolas públicas da Califórnia. Em filmagem não relacionada à convenção, mas encontrada por Aaron Brookner entre os rolos de negativo, há vários excertos, entre eles a discussão sobre a recusa dos intelectuais ao governo dos aiatolás no Irã, problematizada por Burroughs: “Mas não precisaremos do petróleo deles?” É irresistível quando ele aponta a incongruência no sonho de encontrar, em planetas desconhecidos, o que já é conhecido, como a água…

Os rolos de negativos descobertos por Aaron Brookner renderão outros projetos, conforme acredita Rodrigo Areias. “Existem muitas dezenas de horas de arquivos incríveis e inéditos sobre a vida e a obra de William Burroughs no arquivo de Howard Brookner”, ele diz. “A ideia será fazer uma série de televisão mais biográfica, com a participação de uma série de entrevistas feitas hoje e outras dos arquivos. Existe também uma parte dos arquivos sobre a relação familiar de William Burroughs com o seu filho William Jr. e com o seu irmão. Coisas absolutamente inéditas e incríveis.”

A seguir, a entrevista que fiz por email com os diretores Aaron Brookner e Rodrigo Areias, os diretores de “Nova 78”.

Aaron Brookner, um dos diretores de “Nova ’78”: ele achou os rolos de negativos feitos pelo tio

Gostaria de começar perguntando quando vocês viram pela primeira vez o material que resultaria em “Nova 78”. Quem o apresentou a vocês? O que chamou sua atenção nele? O que os fez pensar que editar esses fragmentos seria uma boa ideia?

AARON BROOKNER: Eu tinha visto apenas breves vislumbres do material em “Burroughs: The Movie”, que Howard Brookner dirigiu e lançou em 1983. Então, quando comecei a procurar trazer de volta o filme de Burroughs (que remasterizamos e lançamos com a Criterion Collection em 2014), encontrei o primeiro lote de rolos negativos de tudo o que Howard havia rodado (1978-1982) para fazer aquele filme. E, obviamente, logo percebemos que havia muitos rolos com artistas. Mais do que ser apresentado a mim, conforme iniciamos o escaneamento, começamos a vislumbrar o evento pela primeira vez e a perceber que Howard o havia filmado como um documentário de show, com diferentes cenários e ângulos, bastidores, planejamento, etc. No outono de 1978, Howard ainda estava na NYU. Suas filmagens se tornariam o retrato de Burroughs, mas na época ele se referia ao material como NovaCon, porque esse era seu foco inicial. E então foi um desafio interessante tentar honrar a tentativa da filmagem original. Para usá-lo como foi pretendido na época, para mostrar a história da Nova Convention.

RODRIGO AREIAS: Vi as imagens deste material quando conheci o Aaron. Ele havia participado da escrita e da produção do filme “Listen”, de Ana Rocha, que eu produzi. Nessa altura, o Aaron me mostrou o filme que tinha feito sobre o seu tio Howard Brookner (“Uncle Howard”), o autor destas imagens. Nesse documentário, já existia a referência à Nova Convention. Claro que eu já conhecia a existência dessa convenção, sempre houve essa referência em torno da cultura beatnik. Mas nunca tinha visto imagens. Quando o Aaron me convidou para participar deste projeto como diretor, vi todas as cenas que haviam sido filmadas da convenção e muito mais horas de arquivo sobre William S. Burroughs, já que o arquivo de Howard Brookner é muito vasto.

Aaron nasceu três anos depois desta convenção em Nova York e Rodrigo, no mesmo ano. Vocês liam escritores como Burroughs, Leary, Orlovsky ou Ginsberg desde muito jovens?

AARON BROOKNER: Bem, sim, eu conhecia Burroughs desde muito jovem, graças ao meu tio. E comecei a lê-lo no ensino médio, junto com Allen Ginsberg e Jack Kerouac. Os beats faziam parte do currículo de inglês do Ensino Médio em Nova York, assim como J.D. Salinger, e talvez ainda façam, então comecei a descobrir todos os outros.

RODRIGO AREIAS: Bem, eu tenho uma obsessão com a leitura, tenho uma biblioteca em casa e a literatura ocupa um lugar muito importante na minha vida e no meu cinema também. E isso acontece desde muito cedo na minha vida. O meu primeiro longa (“Tebas”, 2008) começa com “O uivo”, de Allen Ginsberg, e é uma intersecção entre o “On the road”, de Kerouac, e “Édipo Rei”, de Sófocles. Debruço-me sobre escritores e obras literárias de forma insistente, pois é o universo em que vivo. Desta forma, chego ao Burroughs através dos outros autores beat, mas também a partir da música, a minha outra carreira que antecede a de cineasta.

Quando começou a aventura de restaurar o filme? Quão difícil foi fazer esta edição funcionar?

AARON BROOKNER: Comecei a procurar o trabalho de Howard há quinze anos e recuperei o primeiro lote de rolos negativos da era Burroughs de Howard em 2013. Alguns deles foram usados ​​para os bônus de DVD do Criterion. Alguns foram usados ​​no meu filme sobre Howard, mas, mesmo depois do filme, ainda estávamos trabalhando para compilar o arquivo. Toda a imagem e o som. Um empreendimento gigantesco.

Minha parceira na Pinball, a produtora Paula Vaccaro, e eu pensamos que finalmente tínhamos terminado em janeiro de 2022. Então, em fevereiro, descobrimos que mais filmes de Howard haviam sido descobertos pelo arquivista da obra do falecido poeta John Giorno [presente no filme]! E muitos desses rolos eram seções que faltavam da Nova Convention. Ao longo de 2022 e 2023, fizemos mais digitalização e sincronização e só então pudemos começar a edição.

É sempre um grande desafio editar um documentário de longa-metragem. E é um desafio específico criar um filme usando apenas filmagens daquele período. Felizmente, as filmagens são tão explosivas. Os atores, tão poderosos. As ideias ressoaram muito. Então, nos apoiamos na força da filmagem inicial. Na força dos personagens e do local, e não nos esquivamos do trabalho duro. Também quero acrescentar que foi necessária uma equipe muito talentosa para fazer a colorização, trabalhar com o som e o design.

Vocês tinham algum roteiro original em mãos? Anotações da equipe? Conseguiram falar com pessoas envolvidas nas filmagens originais para esclarecer alguma dúvida?

AARON BROOKNER: O escritor James Grauerholz [presente no filme] me deu anotações bem vagas, que meio que forneceram um modelo para todo o arquivo. Mas não havia anotações da equipe, e certamente nenhum roteiro ou documento direto a seguir. Pude conversar não só com James, mas também com John Giorno quando ele estava conosco, já que ambos eram os produtores do evento. Então, aprendi muito sobre o encontro com eles, especialmente com James. Jim Jarmusch, que fez o som, Tom DiCillo, que foi o cinegrafista, e Jim Lebovitz também. Conversei com todos. Eles certamente tinham algumas lembranças, mas a única pessoa que realmente saberia dos detalhes das filmagens seria Howard.

RODRIGO AREIAS: Este filme não tem roteiro. A ideia foi partirmos livres para a criação e montagem. Existiram várias versões anteriores onde prevalecia uma narrativa mais pessoal e biográfica sobre William Burroughs. Fomos experimentando contar outras histórias, mas eu fiquei sempre com vontade de mostrar estas imagens que nunca ninguém havia visto e fazer menos um filme biográfico, sempre algo mais visto.

Burroughs com o chapéu que compunha a máscara de seu personagem: um dos
muitos fragmentos dos rolos de negativos não-sincronizados, de difícil edição

Vocês informam no início de “Nova 78” que todo o material filmado naquela época — pelo menos, aquele que conseguiram encontrar — acabou utilizado na sua edição final. Por que decidiram usar todas elas?

AARON BROOKNER: Nós nos concentramos em usar as filmagens feitas no outono de 1978 porque a Nova Convention era naquela época, é claro. E também, na linha do tempo, muito do que Howard filmou nas semanas anteriores e posteriores estava relacionado ao evento. Seja Burroughs fazendo uma ligação para convidar “Tim” (Leary), ou elaborando algumas das ideias políticas sobre fundamentalismo e ataques a grupos minoritários que seriam incluídas em suas apresentações. 

Foi muito, muito difícil encontrar tudo e conectar esses fragmentos. Imagine que eram rolos soltos de negativos. Não sincronizados. Organização obsoleta. Foi superdifícil. E também cada peça era convincente. As filmagens do mundo de Burroughs duraram quatro anos para o meu tio. No final, nos concentramos em 1978 porque nos deu estrutura e a chance de traduzir para o público a experiência de entrar em um portal do tempo, por 78 minutos, interrompidos de apresentações, ideias, música, comunidade e, com sorte, um lugar para refletir.

RODRIGO AREIAS: O Aaron havia recuperado o material de arquivo do seu tio uma década antes de 2022, quando apareceram mais de 40 latas de película do arquivo de Burroughs que nunca tinham sido vistas. Nisso havia uma parte substancial da Nova Convention que cobria partes do evento de que não se conheciam imagens. Desta forma, o Aaron me convidou para pensarmos um projeto juntos. A minha ideia foi desde logo poder contar a história deste encontro criativo de todo o avant-garde nova-iorquino do final dos anos 1970. Pareceu-me fazer mais jus à ideia original de Howard Brookner. Ideia que ele nunca conseguiu concretizar. Ou seja, isto não é o restauro de um filme. É um filme feito a partir de arquivos existentes. Filme esse que seria impossível fazer à época, pois o financiamento ao documentário era televisivo e um filme desta natureza seria muito difícil de existir então.


Vocês conversaram com os artistas sobreviventes que estiveram no evento de 1978? Com ​​Patti Smith ou Laurie Anderson, por exemplo? Caso tenham conversado, o que lhes contaram sobre a experiência?

RODRIGO AREIAS: Houve um momento em que tanto Patti Smith quanto Laurie Anderson e a poeta Anne Waldman estavam disponíveis para serem filmadas dentro deste documentário, dando uma perspectiva do que foi o evento. Mas acabamos por considerar que esse contexto não seria benéfico para o filme. Seria melhor fazermos um filme apenas com as imagens de arquivo e, desta forma, conseguirmos apresentar uma bolha temporal.

AARON BROOKNER: Foi um momento consistentemente significativo para todos os presentes. Dos artistas ao público. Um evento raro que realmente simbolizou algo maior. A diretora de palco, Rebecca Litman (que na época se chamava Rebecca Christensen), descreveu-o como “o Woodstock do Lower East Side”.

Foi difícil reunir fundos para trabalhar no filme? Por que uma produção anglo-portuguesa e não americana?

RODRIGO AREIAS: Esta produção é anglo-portuguesa pois os produtores são a Pinball London, empresa do Aaron e da sua mulher Paula Vaccaro, sediada em Londres, e portuguesa, pois o financiamento é feito através do Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA) e da Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Tem que ver com a detenção de direitos por uma parte e com o financiamento português por outra.

AARON BROOKNER: É muito difícil arrecadar fundos para restaurar e preservar um único filme, quanto mais um arquivo inteiro em película, mas eu e a produtora Paula Vaccaro trabalhamos neste arquivo há muito tempo. A Pinball London, minha produtora no Reino Unido, já havia trabalhado com a Bando A Parte, de Rodrigo, com grande sucesso na produção de “Listen” (2020), e por isso decidimos trabalhar juntos novamente neste projeto em coprodução. Ficamos muito gratos pelo apoio do ICA, que realmente valorizou a importância cultural do material e a história que queríamos contar.

O co-diretor Rodrigo Areias: série de tevê sobre a vida e obra de Burroughs a caminho


Vocês acham que continuarão procurando materiais para adicionar a este filme nos próximos anos?

AARON BROOKNER: Estou feliz com a experiência imersiva que o “Nova 78” oferece ao público. Também aprendi a manter a mente aberta a todas as novas descobertas.

RODRIGO AREIAS: Não para este filme. Mas sim outras possibilidades. Existem muitas dezenas de horas de arquivos incríveis e inéditos sobre a vida e a obra de William Burroughs no arquivo de Howard Brookner. A ideia será fazer uma série de televisão mais biográfica e com a participação de uma série de entrevistas feitas hoje e outras dos arquivos. Existe também uma parte incrível dos arquivos sobre a relação familiar de William Burroughs com o seu filho William Jr. e com o seu irmão. Coisas absolutamente inéditas e incríveis.

“Nova 78” filme nos mostra, com ironia involuntária, que nenhum dos presentes à convenção imaginaria um futuro tão distópico quanto o atual, especialmente nos Estados Unidos, cujo atual governo parece querer revogar todo o humanismo, a liberdade e o progresso ambiental sobre a Terra. Vocês enxergam este filme como um manifesto pela paz, justiça ou igualdade na América, em Portugal e no mundo?

AARON BROOKNER: Uma pessoa que certamente viu isso com bastante clareza foi Burroughs. Ele entendeu de forma muito ampla os perigos do fundamentalismo em geral. Não tinha vergonha de falar o que sentia ser correto. E, ao mesmo tempo, se manteve muito aberto e sem julgamentos. O que eu acho que este filme mostra é que a arte e as ideias, embora possam ser políticas, operam inerentemente em um nível mais profundo que transcende a nacionalidade e até mesmo a sociedade. É realmente uma questão espiritual. Nesse nível, estamos todos unidos e eu adoro que este evento tenha sido organizado em torno da troca de arte e ideias nesse espírito, que além de ser americano fala comigo como cidadão do mundo.

RODRIGO AREIAS: O posicionamento político de Burroughs é de uma lucidez e uma clarividência muito relevantes hoje. Conseguimos perceber que os problemas de 50 anos atrás ainda são os mesmos. As tentativas autoritárias voltaram um pouco por todo o mundo. Os Estados Unidos estão no pior momento da sua história, estão claramente a viver um fim de ciclo, o fim de um Império. O Brasil viveu um período dantesco com Bolsonaro. E Portugal caminha na mesma direção, como se não conseguíssemos ver o que se passa ao nosso redor. Nesse sentido, este filme tem esse propósito político de trazer à luz do dia ideias e conceitos sobre as liberdades e direitos nos Estados Unidos e no mundo. E se o filme puder ser um manifesto pela paz, justiça e igualdade em todos os lugares, então estamos a fazer alguma coisa certa.

Um homem e seu mistério, em cena de abertura de “Nova 78”

NOVA ’78 (NOVA ’78)
Aaron Brookner e Rodrigo Areias
80 min.
REINO UNIDO, PORTUGAL.
Falado em inglês. Legendas eletrônicas em português.
Na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo:

ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 2: 24/10/25, 22h

INSTITUTO MOREIRA SALLES – PAULISTA: 25/10/25, 17h10

Para mergulhar em Kim Novak

Lágrimas, excertos de filmes, recordações: a estrela de “Vertigo” derrama memórias ao refletir sobre sua carreira no cinema, em documentário presente na 49ª Mostra

A atriz em casa, aos 92 anos, reflexiva ao percorrer álbuns e caixas com memórias

Os olhos claros, grandes e vivos. A boca pequena. Lábios pintados ostensivamente, assim como os cabelos. Rosto de enigma. A face célebre que não existe mais, perdida no espelho de Hollywood. 

Kim Novak tem 92 anos e teme morrer. Ela mesma, a protagonista de “Vertigo (Um corpo que cai)”, clássico dirigido por Alfred Hitchcock em 1958, confessa esse medo ao cineasta Alexandre O. Philippe. O diretor do documentário poético “Kim Novak’s Vertigo” (Um corpo que cai, por Kim Novak), presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, filma suas conversas com a atriz, os depoimentos não raro emotivos que ela lhe dá, como quem deseja erguê-la a um panteão de eternidade, a partir da casa da atriz no Oregon.

Para conseguir o efeito do que é eterno, Philippe insiste na fotografia embaçante e na trilha sonora a partir de um piano de prelúdio, o que por vezes está a ponto de desacreditar seu filme. O espectador pode se perguntar por que o diretor terá pesado a mão assim. Talvez Phillipe se visse obrigado a isso para não magoar sua biografada. Por todo o filme, a atriz agradece a maneira positiva com que o diretor a vê artisticamente, quando nem mesmo ela se enxergava assim, isto até encontrá-lo…

É que Kim Novak não quis desde sempre ser atriz. Seu pendor possivelmente fosse pelas artes plásticas e pela fotografia. Fez belas imagens do pai, que, ao contrário de sua mãe, jamais expressava os sentimentos. Até hoje Kim Novak pinta telas, muitas delas perdidas em três incêndios nos penhascos californianos diante do mar, onde a atriz viveu a partir de 1961, e de onde podia avistar o cenário de “Vertigo”. É uma pintora por vocação, a lutar com a fixação em óleo de autorretratos, pássaros, os rostos de seus pais, as ondas do mar, os rasgos do céu. Pinceladas com a mão esquerda que, mostradas no filme, são como voos – ou, por que não dizer, “vertigens” – de representação.

Kim Novak começou a vida profissional como modelo fotográfico, durante os meses de férias escolares. E, mesmo depois de atraída ao cinema, não se via como intérprete. Como diz, não “atuava”, à moda do que se espera de um ator, apenas reagia _ era uma espécie de reactor, o que não deixa de ser uma classificação estranha. As grandes interpretações cinematográficas nascem justamente da capacidade de reação de um rosto. Desde a época silenciosa, o rosto e o corpo disseram tanto ou mais que as palavras.

O célebre tailleur cinza, desenhado por Edith Head, em cena de “Vertigo”: para enxugar as lágrimas

Quando Hitchcock a escalou para “Vertigo”, ela desconhecia o trabalho do diretor. Mas gostou do roteiro, a ressaltar a dualidade em sua personagem, condição que a atriz estendeu psicologicamente a si mesma, principalmente após viver o estrelato em Hollywood. No filme, ela conta que o produtor Harry Cohn controlava sua vida profissional e a obrigava a tantos papeis diferentes que, depois de um tempo, ela parecia não saber quem de fato era. Contudo, ao lado do amigo (algo professor) James Stewart no filme de Hitchcock, a atriz encontrou um caminho para o autoentendimento. E guardou o roteiro de “Vertigo”, que, por milagre, foi salvo do fogo californiano em três ocasiões. Não só o roteiro – um figurino de Edith Head também. No documentário, ela seca as lágrimas no célebre tailleur cinza usado no filme.

Homenageada no festival de cinema de Veneza deste ano, Kim Novak parece fazer tudo apenas quando ditada por um impulso interior. E por isso há excesso de interiores, por assim dizer, no cinedocumentário de Philippe. A ultrarromantização está a um degrau ou dois do kitsch. E Kim interpreta o tempo todo, a voz não raro trêmula, mesmo quando diz apenas reagir às caixas de memórias que incumbiu o diretor de reabrir, de modo a novamente “surpreender-se”. Contudo, se você construiu seu conhecimento a partir do cinema clássico de Hollywood, não deve perder este filme por motivo algum. Grandes emoções, grandes histórias.

O diretor Alexandre O. Philippe

Um corpo que cai, por Kim Novak
Alexandre O. Philippe
EUA
76 min

Falado em inglês.
Legendas eletrônicas em português

12 anos

MULTIPLEX PLAYARTE MARABÁ – SALA 4: 21/10/25, 19h40
RESERVA CULTURAL – SALA 1: 22/10/25, 13h

CINEMATECA SALA PETROBRAS: 23/10/25, 16h30

ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 1: 24/10/25, 13h30 

A rainha infinita, por Stroheim

Durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o editor Dennis Doros apresenta sua nova restauração de “Queen Kelly”, clássico inconcluso do cinema silencioso dirigido por Erich von Stroheim e protagonizado por Gloria Swanson

O diretor Erich Von Stroheim retoca
a maquiagem de Gloria Swanson durante a
filmagem de Queen Kelly, em 1928

Há quarenta anos, o restaurador estadunidense Dennis Doros começou um dos maiores e mais longos empreendimentos pela memória do cinema ocidental. Um vendedor de 27 anos em 1985, ele foi informado pelo chefe da empresa cinematográfica onde trabalhava que um clássico da Hollywood silenciosa, Queen Kelly, jamais havia sido concluído, e que suas partes permaneciam soltas. Sem imaginar o tamanho da tarefa que no fim das contas lhe tomaria décadas, Doros se ofereceu para reconstruí-lo. Jamais atuara antes disso como arquivista ou editor, funções atribuídas aos que restauram filmes antigos. E, durante os 18 meses em que esteve envolvido nesta primeira reconstrução, teve de fazê-la pela madrugada, pois não poderia perder o salário como vendedor da empresa, função cumprida de 9h às 17h nos dias úteis. A versão restaurada foi um sucesso, ganhou o prêmio da crítica da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo então, e volta agora renovada ao evento, com o acréscimo de sequências e stills.


A exibição de uma cópia de Queen Kelly em nitrato de celulose, na Nova York de 1984, havia deslumbrado o jovem nascido na vizinha Nova Jersey. A fotografia de Paul Ivano (que assinava a função junto a Gordon Pollock) tinha um brilho especial, sem contar as interpretações de Gloria Swanson e de sua antagonista, Seena Owen, naquele filme que o vienense Erich Von Stroheim (1885-1957) jamais fora autorizado a concluir.

O príncipe Wofram (Walter Byron) e a devassa rainha Regina (Seena Owen) sob iluminação esfuziante



Queen Kelly é um vulto de assombro na história do cinema. Um projeto escrito por Stroheim dentro de sua fase dita imperial (durante a qual houve outros títulos dirigidos por ele sob a inspiração “aristocrática”, como Marcha nupcial, em 1928, ou A viúva alegre, de 1925), que tanto agradava ao público estadunidense, desprovido de rainhas e reis. Desde o fim do império Austro-Húngaro e da cruel Primeira Guerra, em 1918, principalmente após o colapso da Bolsa de Nova York, em 1929, eram muitos os enredos que almejavam fantasiar a vida nobre ao grande público de Hollywood, fazendo do escapismo palaciano uma farsa até necessária.

Que outro caminho teriam as personagens femininas então, e por toda a década de 1930, senão esperar o acolhimento de um príncipe provedor? Um magnata, ao menos? A luta feminista vinha sem fim e a pobreza disseminada permitia que baronesas ficcionais se encondessem entre os assalariados cinematográficos nos filmes de grandes bilheterias. Era já 1953 quando William Wyler dirigia a bela novata Audrey Hepburn em A princesa e o plebeu, fazendo-a viver, em terra, a modernidade dos cabelos curtos, do cigarro e das motocicletas – o mundo dos modernos que lhe fora negado em seu castelo de origem, situado nas nuvens de algum país europeu ficcional.

Gloria Swanson, de tranças para rejuvenescer,
e Wolfram: conto de fadas que adulou o
catolicismo irlandês de Joseph Kennedy

No final dos anos 1920, Queen Kelly prometia. Os que liam seu roteiro o julgavam original. E ninguém tinha a coragem de brincar com o talento de Erich von Stroheim. Claro que isto seria possível depois: em 1950, o diretor Billy Wilder, também emigrado aos Estados Unidos, estamparia deliberadamente o declínio do colega de trabalho, assim como de todo o cinema mudo, no clássico Crepúsculo dos Deuses. No filme, Gloria interpretava a estrela abandonada da era silenciosa cujo mordomo vinha a ser justamente Stroheim, que então sobrevivia como ator e, diz o biógrafo Arthur Lennig, julgava este um dos piores papeis a ter vivido no cinema.

A rainha Regina e o gato branco da
luxúria: um show de Seena Owen

Ele que pôde quase tudo exigia bastante dos produtores. A fama de perfeccionista de Stroheim impacientava a todos, dentro e fora dos ambientes de filmagem. No final dos anos 1920, o produtor Pat Powers estava farto de seus gastos impossíveis e de seu gênio incontornável, mas não queria liberá-lo para outros estúdios, sabedor dos sucessos que poderia produzir em searas rivais. Neste meio tempo, em 1926, a super estrela de Chicago Gloria Swanson deixara a Paramount de modo a construir uma produtora independente dentro da United Artists. Quem acompanhava seus passos empreendedores era o então amante, o investidor de ascendênia irlandesa Joseph P. Kennedy, que viria a ser o pai do presidente dos Estados Unidos John Kennedy.

Erich von Stroheim durante filmagem no set:
Joseph Kennedy jurou colocá-lo “na linha”


A ambição de Joseph Kennedy era grande. Ele queria ser não apenas um produtor de cinema: queria ser o maior. Por isso, pensou em alguém para dirigir Gloria de modo a lhe render o prestígio almejado. Sem ser do ramo, ele via em Stroheim o caminho para a produção de um filme inesquecível. Gloria ponderou que Stroheim tinha a fama de difícil e que, de todo modo, estava preso a Pat Powers. Kennedy disse que arranjaria tudo e, em uma conversa com o produtor, de fato conseguiu a liberação de Stroheim. “Vou colocá-lo na linha”, garantiu a Gloria.

Foi assim que Stroheim, ao deparar com um produtor inexperiente, ofereceu-lhe uma história de encanto. Seu roteiro versava sobre a jovem Patricia Kelly de Gloria, que, interna em um convento (lugar mítico para o catolicismo irlandês), deparava pela estrada com o belo príncipe Wolfram. Interpretado por Walter Byron, ele infelizmente era comprometido com a  rainha Regina, em atuação espetacular de Seena Owen. O príncipe se apaixona por Gloria (então com 30 anos, algo inverossímil como a menor de idade de tranças que representa) e vai libertá-la do convento simulando um incêndio.

Há fogo demais no filme para ilustrar o amor. As velas, por exemplo, estão sempre acesas durante o jantar entre os dois apaixonados, em pleno castelo da rainha má. Em momentos que alternam drama e comicidade, Gloria quase cai de costas na lareira, consumida pelas chamas. E ri.

Kelly e Wolfram, envoltos na luz de velas da paixão

O filme teria uma primeira parte em ambiente palaciano e a segunda revelaria o trágico destino da jovem Patricia. Ela se tornaria Queen Kelly, a rainha de um bordel na África, depois de oferecida em casamento a um velho decrépito pela tia, dona do bar Poto-Poto. E seria resgatada anos depois pelo príncipe aventureiro, num improvável final feliz. Com apetite para os grandes romances, Stroheim queria dirigir cinco horas de filme. Gloria lutou por limitar as sequências. A United Artists apavorou-se. De cara, rejeitou o título que Stroheim propôs ao filme, The swamp (O pântano), nome do bordel africano que a personagem de Gloria Swanson administraria. Impôs Queen Kelly (Rainha Kelly) e Stroheim aceitou.

Em 1 de novembro de 1928, quando o trabalho teve início, o cronograma previa oito semanas de filmagem. Em janeiro do ano seguinte, as oito semanas já tinham se transformado em doze. Inicialmente, as filmagens se dariam nos dias úteis, das 8 às 17 horas. Mas logo findavam às 21 horas, nos sábados também. Dos 42 primeiros dias, 20 estenderam o trabalho da equipe até meia-noite.

Gloria começou a se preocupar. Depois de gastar 400 mil dólares, entendeu que seriam necessários mais 400 mil para finalizar o filme – e 800 mil dólares de investimento eram um padrão de época para superproduções. Além disso, ela testemunhava o sucesso crescente do cinema falado, que mudava todo o mercado cinematográfico naqueles anos. Como pedir a Stroheim que inserisse fala em algumas um sequências deste périplo silencioso?

Gloria Swanson com Tully Marshall
ao fundo: diante de um destino de morte



Ela e Joseph ainda acreditavam na obra e prosseguiam com seu diretor, mas Gloria se sentia a cada dia mais irritada. Às vezes, enojada. O roteiro pedia, por exemplo, que o personagem de Tully Marshall, o asqueroso Jan Bloehm Vryheid, com quem Kelly se veria casada diante do leito de morte da tia, cuspisse o fumo mascado na mão da noiva. Ela achava isso inaceitável. E se sentia cansada também. A filmagem de uma sequência que duraria uma hora em qualquer outro set, com Stroheim rolava por 24 horas inteiras. No belo dia em que ele gastou cem metros de filme e, insatisfeito, atirou-os ao lixo, ela se impacientou e ligou para Joseph, que o demitiu em 21 de janeiro de 1929, sem mais.

Eis que os problemas ficaram ainda maiores para os produtores. A segunda parte do roteiro, a africana, mal havia começado a ser filmada naquele mês. Um novo diretor, Richard Boleslawsky, apareceu para reconduzir o filme, mas não pôde fazer muito. O roteiro era  peculiar. E ele não tinha o toque de quem o concebeu para continuar o longa, àquela altura com uma hora e meia de material filmado. Decidiu-se então por um corte que diminuiria o tempo final para 71 minutos, depois de extraída a parte africana. Queen Kelly foi lançado assim em 1932. Stroheim viu o filme e impacientou-se. Usaram todo o material que ele havia filmado sem se preocupar em editá-lo, e isto, a seu ver, tornava as sequências arrastadas, sem ritmo. Qual o sentido?

Kelly no bar da tia, o Poto-Poto, onde
é recebida por Kali (Madame Sul-Te-Wan) e Coughdrops (Rae Daggett)



Depois do trabalho de Dennis Doros, em 1985, o filme ganhou 17 minutos. Agora, são 105 no total, com uma nova trilha sonora, escrita por Eli Denson e executada por estudantes da Indiana University Jacobs School of Music. É uma versão que se anuncia a mais próxima do roteiro de Stroheim.

No filme, as luzes do fogo e do amor transmutam-se para a densidade da água, por onde Kelly se aventura. A continuação do filme teria prometido aumentar esse contraste, pois tudo em Erich von Stroheim é feito de grandes oposições – de iluminação, de atuação, de cenários. A fotografia em preto e branco, quando vista na tela do cinema, é nada menos que esfuziante. Os cenários detalham-se em brilho e os personagens insinuam lascívia. A rainha Regina, a louca, embriaga-se e se faz acompanhar por gatos brancos que cobrem sua nudez. Pequenos cães negros seguem agitados a corte do príncipe. Pena não podermos testemunhar a atuação de Gloria como a rainha Kelly do pântano africano, de quem só temos fotografias. Ela parecia perfeita para representar um novo poder.

Gloria Swanson caracterizada como a
Queen Kelly africana: teria sido um novo poder

A seguir, a entrevista que fiz por email com o restaurador Dennis Doros, presente na 49ª  Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Dennis Doros, dono da Milestone, e sua sócia, a esposa Amy Heller: eles renovaram a restauração de Queen Kelly, atribuindo-lhe uma nova trilha sonora

Foto de Valerio Greco

Quando você viu Queen Kelly pela primeira vez? O que atraiu sua atenção para o filme?

Eu trabalhava na Kino International em 1984 quando meu chefe, Don Krim, adquiriu os direitos do espólio de Gloria Swanson, antes mesmo de eu assistir ao filme. Meu palpite é que ele viu a atriz apresentar o longa em Nova York na década de 1960. Quando Don me disse que o filme nunca tinha sido totalmente finalizado e que havia cenas descartadas, perguntei inocentemente se poderia trabalhar nele. (Eu não tinha experiência anterior como arquivista ou editor.) Don concordou e marcou uma exibição da cópia em nitrato de 35mm no Thalia Theatre, na Broadway com a rua 95, em Nova York. Fui imediatamente cativado pelo brilho do filme – a fotografia espetacular de Paul Ivano –, além de estar diante de uma cópia em nitrato de celulose pela primeira vez. Também me apaixonei pela qualidade da interpretação, particularmente pelas atuações de Gloria Swanson [como Patricia Kelly] e Seena Owen [como a rainha Regina, a louca].

De arquivista e editor você passou a produtor, e talvez Queen Kelly seja uma das produções mais malsucedidas de Hollywood. De que maneira ter conhecido essa história contribuiu para sua nova carreira profissional?

Amy Heller (minha esposa e sócia na Milestone Film & Video) e eu produzimos apenas dois filmes (sem contar os bônus de DVD): o documentário Notfilm, de Ross Lipman [de 2015, sobre a colaboração entre o cineasta Buster Keaton e o escritor Samuel Beckett], e The many miracles of household saints, de Martina Savoca-Guay [documentário de 2024 sobre o filme Um anjo de mulher, dirigido por Nancy Savoca em 1993].

Lembro-me que Notfilm teria originalmente 40 minutos, mas acabou com 130 e custou o dobro do que prevíamos. Mas como ao final ficou em “apenas” 60 mil dólares e arrecadamos o valor pela plataforma de financiamento coletivo Kickstarter — além de o filme estar pronto e maravilhoso —, a experiência foi semelhante, mas não tão devastadora quanto a de Gloria ao produzir o filme dirigido por Stroheim.

Quanto tempo levou a primeira restauração de Queen Kelly, nos anos 1980?

Como mencionei, a primeira vez partiu de um pedido completamente impulsivo e excêntrico feito por mim a meu chefe, em 1985. Eu não tinha ideia do que estava fazendo, nem do compromisso que assumia. Naquela época, eu era o vendedor não-cinematográfico da Kino, então trabalhava em Nova York das 9h às 17h todos os dias, pegava o ônibus de uma hora para casa em Nova Jersey, depois dirigia mais uma hora até o norte de Nova Jersey e continuava o trabalho como restaurador das 21h às 2h da manhã. Fiz isso por cerca de 18 meses e terminei a restauração um dia antes da estreia na Berlinale, o Festival Internacional de Cinema de Berlim. Felizmente, a dona do laboratório de cinema, Janice Allen, segurou minha mão em cada passo do caminho.

O que eu pensava disso tudo? Eu me achava uma fraude total – um amador brincando de edição e restauração de filmes. Tinha 27 anos e presumi que seria pego e demitido assim que o filme estreasse. Mesmo com o sucesso do Queen Kelly restaurado e as críticas entusiasmadas em todos os lugares, levei anos até me considerar um arquivista. Até hoje, me vejo como um ótimo distribuidor que teve a sorte de restaurar alguns filmes maravilhosos com a ajuda de amigos, arquivos e laboratórios.

O que o levou a continuar procurando materiais para o filme nos anos seguintes?

Eu era amigo do advogado do espólio de Swanson, Edmund Rosenkrantz. A amizade surgiu porque ele não tinha a minha memória corporativa, que remontava a década de 1980. Então, em 2015, quando a Kino International cedeu os direitos de Queen Kelly e Sadie Thompson [Sedução do Pecado], minha segunda restauração [realizada em 1987 para este filme de 1928 de Raoul Walsh], ele ligou e nos ofereceu esses direitos. 


Eu realmente esperava apenas pegar os negativos que havia produzido nos anos 1980 e, a partir deles, fazer novos masters digitais para Queen Kelly. Mas o laboratório em que eu trabalhara então já havia fechado e, durante os anos que levei para readquirir os negativos, tive dúvidas sobre minha restauração original. Não é que eu odiasse meu trabalho daquela época, mas eu tinha aprendido muito mais sobre a arte do cinema mudo e da restauração. Pensei que desta vez poderia fazer um trabalho melhor. Então, como em toda restauração, comecei pela pesquisa.

Você conheceu Gloria Swanson? 

Gloria havia falecido em 1983, antes de eu começar a trabalhar em Nova York, então nunca a conheci. Consultei seu amigo e arquivista, dr. Raymond Daum, e seu advogado, Bob Benjamin, mas eles não me aconselharam sobre a restauração. O espólio de Gloria (suas filhas, Michelle Amon e Gloria Somborn Daly) aprovou a reconstrução, mas eu não tive contato com elas. Mais tarde, quando trabalhei em Beyond the Rocks [Esposa e Mártir, de 1922, estrelado por Swanson e dirigido por Sam Wood], com o Eye Filmmuseum de Amsterdã, mantive correspondência com Michelle. Agora, a neta de Gloria, Brooke Anderson, é uma amiga.

Você conheceu outros integrantes da equipe original de produção ou edição de Queen Kelly? Trocou ideias com eles sobre o seu trabalho?

Tive a sorte de poder contar com o historiador de cinema Richard Koszarski, biógrafo de Erich von Stroheim, como consultor na restauração. Ele conheceu vários integrantes da equipe. Embora todos já tivessem falecido quando comecei o trabalho, Koszarski conseguiu transmitir suas memórias.

Quanto tempo você dedicou a esta nova versão? Quais foram as suas principais dificuldades em fazê-la? A IA foi utilizada de alguma forma neste trabalho?

Iniciei a pesquisa em 2015 e tive muita sorte em contar com a cooperação imediata da Biblioteca Kennedy. Eles digitalizaram milhares de páginas dos arquivos de produção de Joseph Kennedy sobre Queen Kelly. O Centro de Humanidades Harry Ransom, em Austin, Texas, também me forneceu ainda mais digitalizações dos documentos de Gloria Swanson. 

Levei vários anos para estudar e desenhar um plano de ação enquanto aguardava o retorno do negativo da restauração de 1985. O maior problema foi a perda da impressão em nitrato de Swanson que eu tinha visto em 1984. Felizmente, o Museu George Eastman, em Rochester, Nova York, revelou que havia guardado secretamente outras impressões em nitrato e sequências descartadas com a participação de Gloria Swanson. Então, em 2022, eu estava pronto para começar. 

Foi neste ponto que veio a segunda dificuldade — como sempre, o dinheiro para restaurar o filme precisava ser levantado e ninguém se apresentava para concedê-lo a nós. No início deste ano (2025), Amy e eu anunciamos nossa aposentadoria e percebemos que, se quiséssemos fazer esse trabalho, teríamos de adiantar o dinheiro nós mesmos. Usamos nossas economias para essa restauração.

Quanto à IA, o único envolvimento desse tipo foi o uso dela pelo laboratório, de modo a marcar toda a poeira e os arranhões no material e ajudar a remover os pequenos danos. A remoção da poeira e dos arranhões foi feita por Ian Bostick e Metropolis Post. A IA mostrava a ele os estragos, mas ele tinha de aplicar o software em cada caso, o que envolvia centenas de milhares de decisões. Para cenas que o público acha que foram criadas por IA, elas foram, na verdade, criadas por ampliações ópticas antiquadas — assim chamariam na época — de cenas anteriores do filme.

O que lhe deu mais alegria ao concluir esta segunda versão?

Em primeiro lugar, o projeto dos sonhos de Erich von Stroheim e Gloria Swanson está sendo visto novamente por pessoas do mundo todo. Além de São Paulo, foi exibido no Festival de Cinema de Veneza, no Festival de Cinema de Nova York, no Festival de Cinema de Lumière (França) e, em breve, em Taipei, Atenas e Hong Kong. Em janeiro, será lançado nos cinemas dos Estados Unidos e em todo o mundo, e depois estará disponível em DVD e televisão. A recepção tem sido muito positiva, e sou grato por isso.

Você considera seu trabalho na (possível) reconstrução de Queen Kelly completo?

Como ocorre em todas as minhas restaurações, nunca as considero as versões finais. Haverá tecnologias futuras que aprimorarão o que Amy e eu fizemos e os filmes continuarão a encontrar novos públicos. Com Queen Kelly, houve algumas cenas curtas filmadas no bar Poto-Poto que supostamente se perderam em uma enchente. Talvez elas sejam descobertas um dia, e eu serei o primeiro a aplaudir o trabalho do próximo arquivista na próxima reconstrução.

QUEEN KELLY
Dirigido por Erich von Stroheim
105 minutos
Estados Unidos
Filme silencioso, com cartelas em inglês e português

Três sessões durante a 49ª  Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 1: 18/10/25, 17h25
CINEMATECA SALA GRANDE OTELO: 19/10/25, 20h25
CINE SEGALL: 30/10/25, 18h30

Os Nickel Boys e o império subjetivo da humilhação

O império da subjetividade reconta a grande humilhação sofrida pelos negros estadunidenses durante a segregação. “Nickel Boys”, candidato ao Oscar 2025 a melhor filme e melhor roteiro adaptado, nasceu da obra homônima do escritor Colson Whitehead, de 55 anos. Vencedor do Pulitzer em 2020, o romance se apropria de elementos de um massacre real de jovens negros na Flórida, durante a vigência das leis Jim Crow, entre 1877 e 1964, para ilustrar a segregação assassina no Sul do país.

Ponha de lado o afrofuturismo. Esqueça por enquanto a beleza negra que empossou reis e rainhas ancestrais. Há menos da brilhante África aqui e mais da realidade ocidental nos Estados Unidos, onde historicamente a vida negra careceu de importância. Ao inverter o caminho interpretativo escolhido em anos recentes, o diretor RaMell Ross (um estadunidense de 42 anos nascido na Alemanha) promove menos agência ou resistência por parte dos pretos e mais descrição da brutalidade sofrida por eles. 

Os jovens negros do reformatório Nickel só têm quatro possibilidades de escapar do inferno, diz o personagem Turner (Brandon Wilson): a improvável saída pelos tribunais, o cumprimento integral da pena injusta, a fuga e a morte. Turner conclama o colega interno Elwood (Ethan Herisse) a fugir. Um filme dentro do filme, do qual vemos sequências durante esta narrativa, é aquele protagonizado por Sidney Poitier e Tony Curtis em 1958, “Acorrentados” (The Defiant Ones), a contar a fuga de dois presos inicialmente rivais.

Elwood resiste à fuga porque acredita no estado de direito, na possibilidade de defesa, especialmente na intensificação da luta, conforme ela vinha sendo travada pelo líder Martin Luther King, cujos trechos de discursos também vemos no decorrer do filme. Elwood leu Jane Austen. Aluno exemplar em Tallahassee, ele partia para uma bolsa universitária quando se viu injustamente preso no Nickel, onde nada de bom esperava pelos menores segregados. 

Para narrar tudo isto, a câmera é subjetiva sempre, com muitas sequências feitas na mão. Mas o subjetivo varia conforme a história anda. Quando a narrativa é em tempo real, quem vê o que se passa é Elwood. Quando a narrativa se passa no futuro, a coletar memórias, a câmera subjetiva é de Turner, que, na sua representação adulta, curiosamente cita a aparência atual do escritor Whitehead.

A escolha por menos ação e mais poesia, em muitas sequências belamente fotografadas, é ousada para encenar o livro. Às vezes a câmera subjetiva funciona bem, como na sequência inicial, onde Elwood está desaparecido da visão familiar. Dentro do reformatório, contudo, quando se alterna entre Elwood e Turner, dois meninos imersos na atmosfera do movimento pelos direitos civis e da conquista da Lua, ela não parece contar a história muito bem. 

Ouvimos ecos, experimentamos distâncias e sentimos cada vez menos envolvimento durante as duas horas e vinte minutos do filme. Há, contudo, boas reconstituições dos anos 1960 na direção de arte e na fotografia, que às vezes cita Gordon Parks. A trilha sonora, o jazz, sublinha a imersão subjetiva pretendida pelo diretor. Os dois protagonistas são bons intérpretes, assim como Aunjanue Ellis-Taylor, no papel da avó Hattie, e Hamish Linklater, como o cruel diretor Spencer. Talvez o que falte ao filme seja justamente uma intenção realista, menos palavras e mais timing ao suceder fatos tão cruéis.

“O brutalista” é “emocionalista”, e o sonho acabou

A parte de que mais gosto em “O Brutalista” é aquela na qual o filme candidato ao Oscar 2025 não hesita em sua conclusão moralista sobre o sonho americano. Para este longa-metragem (de quase quatro horas) dirigido pelo estadunidense Brady Corbet, de 36 anos, o sonho nem mesmo existiu. Foi um anti-sonho e acabou.

O caminho encontrado por Corbet (ator em “Violência Gratuita”, que o alemão Michael Haneke realizou em 2007) para dizer sua crença é tortuoso. Ele vai até a Hungria do pós-guerra, acuada pela União Soviética, em 1947, para decretar não haver chance de os judeus fugidos daquele inferno conseguirem uma vida plena nos Estados Unidos. Mais bem-vindos seriam no recém-criado estado de Israel, talvez…

Tudo se complica durante a narrativa longuíssima. Depois da Segunda Guerra, a Hungria, ocupada pelos soviéticos, é forçada a limitar-se a suas fronteiras de 1919. E, sob a liderança stalinista de Mátyás Rákosi, o país europeu impede a liberdade de atuação a qualquer artista inovador. Enquanto isso, os Estados Unidos, que haviam vencido os nazistas sob o comando aliado, parecem oferecer, a um perseguido desse universo, um destino promissor.

O arquiteto Laszlo Toth em fuga, interpretado pelo ator estadunidense Adrien Brody, vai então experimentar a liberdade possível no país, depois de vencer uma difícil travessia marítima. Contudo, os Estados Unidos não parecem compreender este judeu húngaro que tanto sofreu nos campos de concentração – e, além disso, sob o stalinismo. Sem que ele espere por isso, os EUA segregam suas aspirações. 

Advindo brilhantemente da Bauhaus, a escola alemã modernista de arquitetura e design fechada pelos nazistas em 1933, Laszlo Toth se conforma a uma subexistência no país livre, até deparar com um surpreendente caminho de prosperidade. O milionário Van Buren, interpretado pelo inglês Guy Pearce, quer que ele construa um centro cultural cristão em homenagem à mãe. 

Toth, como sabemos, é judeu (surge até mesmo em oração durante algumas sequências do filme), mas tentará dar o máximo de si no trabalho religioso alheio. E isto porque precisa, a todo custo, trazer a mulher Erszebet (interpretada por Felicity Jones) e a sobrinha, ilhadas na Europa, para junto de si. Van Buren, contudo, o decepciona seguidamente. O profissional se vê extirpado de seu desenho arquitetônico fundado no concretismo. Ele queria evocar, no projeto, as grandes paredes de seu enjaulamento em um campo de concentração.

Vilipendiado, o arquiteto se torna violentamente emocional. Seria melhor chamá-lo de “O emocionalista”, então? As discussões que trava com o mestre de obras, de tão incongruentes, parecem verossímeis…

Difícil mesmo é ver Brody como o arquiteto neste filme. Ele mais se parece com o empreiteiro, quiçá com o sindicalista dentro do canteiro de obras. Seu coração vive de se rasgar, assim como o próprio corpo, diante da indiferença do mentor milionário de seu projeto.

Neste filme protagonizado por um ator que representa a vívida imagem da desesperança, mais é mais e deus não está nos detalhes. O final à moda de “O Grande Ditador” faz de Brody um Charles Chaplin na versão mais simples, inconformado com a perda de seu amado Rosebud. 

Fernanda Torres matou “Wicked” a pau

Eis um filme tão longamente ruim que é mesmo um milagre ver a atriz/cantora/compositora Ariana Grande sair ilesa de toda a confusão. Fernanda Torres, nossa Queridinha em Hollywood, está certa. Grande é grande coisa nele. Eu diria que a coisa melhor. 

O filme musical do estadunidense Jon M. Chu, um graduado de 46 anos da University of Southern California (USC), percorre a travessia Broadway-Hollywood com vestimenta queer. Em “Wicked”, candidato em dez categorias neste Oscar 2025, invertem-se os papéis, e o mal representado por Cynthia Erivo, a bruxa verde do Oeste, é em verdade o bem – do mesmo modo que Joan Crawford, a vilã que batia na filha com o cabide, vem a ser lembrada com carinho pela comunidade marginalizada queer dos Estados Unidos. 

(Às vezes parece difícil entender esse processo, mas a gente chega lá se pensar e pensar. Empoderada, Joan Crawford passou o rolo compressor nos homens, em Hollywood e na vida. A filha mais velha, adotada, acreditava até que a mãe envenenou o marido, dono da Pepsi! Mas, hey, só com muito talento e uma ruindade no coração glamuroso seria possível, então, vencer o machista opressor… Pioneira!)

“Wicked”, adaptação cinematográfica do musical homônimo da Broadway inspirado no livro de Gregory Maguire “Wicked: The Life and Times of the Wicked Witch of the West”, exagera o estilo de cenários de “Barbie” para refazer, com sinais trocados, o muito divertido “Legalmente loira”, de 2001. Ariana Grande (Glinda) cita a personagem de Reese Whiterspoon: ela entra na universidade de bruxaria (oh, Harry Potter) e não tem dúvida de que se destacará. Mas será mesmo assim?

Nada podemos concluir por enquanto, já que este pesadelo de 2 horas e 40 minutos ainda precisará de continuação. Aparentemente, nossa nova Loira Legal provará ser do bem, contra a Joan Crawford Verde do Oeste, que, ressentida, fará o povo de Oz saudar o fim de seu reinado, como os judeus fizeram no crepúsculo nazista. 

Sim! Oz, interpretado pelo impagável Jeff Goldblum e assessorado por Madame Morrible (Michelle Yeoh), quer reinar na divisão, é um Hitler de pele morena. Ele até mesmo destitui o professor de História, interpretado por um bode velho com a voz de Peter Dinklage, que será engaiolado, assim como outros “bichos” deportados. 

Sim, o historiador é mostratado como um bode velho no filme. Esta representação, o longa “Meninas Malvadas” (2004), com o qual “Wicked” tantas vezes quer se parecer, não ousou fazer. E isto é bom ou mau? Por certo, a História é tudo o que os nazistas querem eliminar e bodes rendem ensopados, mas ainda não podemos saber. 

Quando Fernanda Torres avistou Ariana Grande, que a procurara no tapete vermelho de um evento pré-Oscar em Santa Bárbara, imitou seu “toss toss” como um sinal de apreço por sua interpretação no filme, e as duas se abraçaram em elogios mútuos. “Toss toss” é a jogada do cabelo comprido para trás, de um lado a outro, encenada por Ariana Grande para empoderar o charme de seu personagem aos homens. Pela voz brilhante, pelo ótimo timing de sua comédia, quiçá por efeito da montagem que percebeu tantas qualidades, sua atuação como Glinda é de longe a principal, a mais atraente do filme. Os lábios de Cynthia Erivo são belíssimos, e é uma pena que eles não lhe ajudem a interpretar a outsider com a convicção e a fortaleza quiçá merecidas.

“Anora”, uma borboleta feliz da comédia

Que caldo divertido o diretor Sean Baker nos serve em “Anora”.

Aos 53 anos, o estadunidense que se formou em artes pela Universidade de Nova York é uma espécie de erudito pop da cinematografia dos Estados Unidos. Seu filme, que ganhou Cannes no ano passado e concorre a melhor filme no Oscar 2025, tem um pouco de tudo, a nos fazer recordar deliciosamente as obras icônicas da comédia romântica. 

Dá-lhe irmãos Coen (qualquer filme em que um bando de sem-noção se prepare para uma aventura), dá-lhe o Scorsese de “After Hours”, os anos 1980 de John Hughes e Chris Columbus, o Billy Wilder de “Sabrina”, “Pretty Woman” e as comédias da Hollywood dos anos 1930 pré-código Hays, em que o casamento era a única situação a salvar uma mulher… Quanto mais você tiver visto cinema, mais referências vai achar neste filme, e será uma diversão a mais encontrá-las enquanto ele passa.

Os atores excelentes têm em Baker um condutor que não deixa o ritmo da orquestra cair. Mikey Madison (intérprete de Sadie em “Era uma vez em… Hollywood”, de Tarantino, e candidata a melhor atriz neste Oscar 2025) empenha-se e desempenha, sem que haja dúvida sobre seu protagonismo, entre o suspiro da mocinha e a audácia da mulher. 

Mergulha-se aos poucos na trama, a envolver trapalhões perdedores muito engraçados. Ao contrário do que tem sido a maioria dos filmes relacionados em várias categorias deste Oscar, “Anora” não descamba passada a primeira hora. Pelo contrário, começa suave como um “Gatinhas e gatões” e vai ramificando o sonho de uma dançarina erótica a uma sucessão de decepções e descobertas.

Toda vez que uma boa comédia é lembrada a uma premiação de porte, uma borboleta bate asas feliz no porão do cinema. 

Embarque.

Monty era meu irmão

Liz e Monty: ele ficou surpreso
de se sentir excitado por uma mulher

“O que eu tinha com Montgomery Clift era o relacionamento ideal, a amizade ideal. Eu adorava seu talento e seu humor, e imitava sua raivosa lealdade. Eu tinha medo de me esforçar demais para ser atriz, porque não sou uma artista: não nasci para ser artista e não estudei (nem sei como estudar) para me tornar uma.

Monty era um artista puro, um gigante da atuação. Ele tinha medo de sets, diretores e equipamentos — lentes, câmeras, marcas no chão que nunca conseguia ver. Eu podia guiá-lo por um set, colocá-lo onde pudesse fazer sua mágica. E ele podia falar comigo, ajudar a me tornar um personagem, a entregar o material que me foi dado.

Ele era meu irmão.

Embora pensasse nele fraternalmente, o trabalho que realizei a seu lado em ‘Um lugar ao sol’ (George Stevens, 1951) foi terrivelmente erótico. Era uma dança de sexo. Um minueto das glândulas. Havia excitação naquelas cenas íntimas, mas era atuação. Monty ficou surpreso por estar excitado naquelas cenas — excitado por uma mulher —, e eu fiquei surpresa por estar sendo bom.

Presentes que demos um ao outro.”

Elizabeth Taylor em entrevista a James Grissom no hotel Carlyle, Nova York, 1991

via http://jamesgrissom.blogspot.com

Elizabeth Taylor e Montgomery Clift em
“Um lugar ao sol”, dirigido por
George Stevens em 1951

Em “Vidas Passadas”, a mulher sem dever

Greta Lee, John Magaro e Teo Yoo em “Vidas Passadas”, filme de Celine Song candidato ao Oscar: cadê a sequência icônica?

Assisti a “Vidas Passadas” como se presenciasse um vespertino de sábado ou uma série coreano-americana melhor que as outras. E só depois descobri tratar-se de um entre os tantos candidatos a melhor filme ao Oscar deste ano.


Que interessante.


“Vidas Passadas” é mesmo uma obra comercial às antigas, semelhante às películas que buscavam bilheteria nos Estados Unidos dos anos 1980 e 1990: mostra um romance não realizado através do tempo, uma espécie de “Harry e Sally” entre uma migrante nos Estados Unidos e seu amigo na Coréia que resulta obrigatoriamente em melancolia/superação para o par protagonista.

Com a diferença – sabe? – que “Harry e Sally” tinha um belo tom entre a melancolia e o humor, tão preciso era o Rob Reiner que o dirigia, capaz de encenar pelo menos uma sequência lembrada por décadas.


Mas, e “Vidas Passadas”?

Onde estará seu potencial icônico?


Só posso pensar que, na campanha publicitária da obra, o diretor do trailer deste longa foi o melhor diretor…


Porque, além da exposição do vacilo em nós, o que o filme nos diz? Que somos uns idiotas nesta vida à espera de outra vida melhor?


A protagonista de “Vidas Passadas” deixa claro, desde o início, tratar-se de um ser de essência competitiva (ou psicopata, como diz graciosamente), que se interessa por um judeu americano e escolhe casar antecipadamente com ele para ganhar, além de green card, uma láurea artística qualquer na sua vida futura… E da ambição pelo Nobel ela vaga descendente pela irônica caça ao Pulitzer e ao Tony – o que, pelo menos isto, me divertiu. Que tal lhe premiarem com um make-over no Queer Eye?


Aos dois apaixonados por ela, a personagem imputa o prejuízo que desejar, como se em cada mulher coubesse um ser sem nada dever…


Muitas vezes me peguei localizando na heroína do filme dirigido por Celine Song uma espécie de Jada Pinkett Smith com dois Will Smiths pra chamar de seus.


Mas que luta terá travado esta protagonista entre duas culturas? Que sentido terá feito com que substituísse o admirador coreano em quem enxergava uma conexão adolescente por uma existência média nos Estados Unidos, onde escreve peças teatrais sobre as quais nada sabemos, irritada por ter de presenciar os ensaios?


Enfim, se ela escreve, quais são suas palavras? Gostaria de saber delas porque eu então localizaria o tipo de dramaturgia que ela faz e o marido judeu, também escritor, o que transmite em seus livros. Da maneira como são vagamente caracterizados, poderiam ser comerciantes, bancários, ascensionais TIs, qualquer um deles, menos o que dizem ser, à procura tão-somente de uma estabilidade emocional-financeira, de um meio de vida na cidade de Nova York, localizada aqui com alguma cor asiática. Há só um vago e confuso conceito de vidas passadas vindo da Coreia a regular a vida da escritora e de quem se aproxima dela?

Sem contar que a excessiva diluição de Wong Kar-Wai que este filme faz, expressa na noite cinematográfica entre o verde e o vermelho, pode ser aflitiva…


Eu, que testemunho o público ao meu redor preencher os vazios deste filme com seus próprios questionamentos amorosos, religiosos e existenciais (o que deve ser a principal qualidade do longa, evocar a perda e o vazio em quem gosta do filme), só penso: cadê o japonês Kore-eda no Oscar?


Assistam a “Monster”, amigos.
É de fato um filme.

A Testemunha, química do romance

Harrison Ford e Kelly McGillis
no filme de Peter Weir, 1985

Uma entre tantas coisas de que sinto falta no cinema de Hollywood é a capacidade de expressar a química intensa do amor sem diálogos, gritos ou mesmo nus.

“A Testemunha” me fazia arrepiar em 1985. Mas parecia ainda mais velho. Uma espécie de filme mudo com trilha sonora onde tudo caía bem, tiro, porrada, sangue, a estrada do tempo, os contrastes sociais e luminosos, os olhos grandes da infância, as perdas, os ganhos, os ciúmes da vida adulta, tudo com aquele ritmo notável do vagar das memórias.

Às vezes tenho vontade de escrever um livro inteiro sobre ele. Só às vezes, porque a vontade não é suficiente para superar os obstáculos à concretização. Os livros que nunca escrevi, porém, continuam a viver em mim, à espera de que alguém precise deles, quando notadamente ninguém precisa. Deixo-os aqui dentro, quentinhos, alimentados com o sol da manhã e os passeios a pé, por serem tão meus.

Os contrastes luminosos, a estrada do tempo, o amor sem palavras