A sentença da montanha 

Filme de 1947, em que Toshiro Mifune atua pela primeira vez, faz poderosa metáfora sobre a participação japonesa na Segunda Guerra



“No limiar da morte”, dirigido em 1947 por Senkichi Taniguchi (1912-2017), traz a atuação inaugural de Toshiro Mifune no cinema. Assisti hoje ao filme japonês, em preto e branco, pela primeira vez (há uma cópia sem legendas no YouTube, e um streaming do filme no Criterion Channel). Mifune tinha então 27 anos neste longa, muito jovem para vencer o embate interpretativo contra Takashi Shimura, ator de então 42 anos que desenrola seu pensamento comovido até a ação.

Shimura representa a máscara introversa, sábia, da performance humana, enquanto Mifune, o furacão que ilumina a lâmina de um lado só – uma espécie de razão ilustrada pela desrazão. Enquanto o personagem de Shimura desfruta de uma emoção familiar ao enxergar, na jovem menina que lhe dá abrigo (Setsuko Wakayama), muito da sua filha que morreu, o de Mifune quer vencer logo a guerra contra a natureza. É preciso escapar da neve com o dinheiro que roubaram junto a um terceiro companheiro, já soterrado em avalanche. Mifune não entende por que ser emotivo numa hora dessas. Quer usar a família que o acolhe em busca de seu objetivo, custe o que custar.



E como se dá esse embate – até físico – entre os dois ladrões que divergem sobre a maneira de fugir? Com ousadia impensável. Em primeiro lugar, o roteiro é de Akira Kurosawa. Depois, Taniguchi dirige de maneira magistral as sequências dificílimas que o colega previu, ao ar livre, em montanhas nevadas e arriscadas. Eis o neorrealismo, aberto como na Roma de Rossellini, mas, aqui, filmado no gelo sem fim.

Os japoneses não são italianos e transformam sua resistência política em metáfora, em pedido de perdão por sua ação na Segunda Guerra, neste filme realizado dois anos depois do fim do conflito.

Na casa da família que abriga os ladrões interpretados por Mifune e Shimura, há trechos poéticos escritos em alemão nas paredes. E a “Rosen Morgen” (que em alemão quer dizer tanto “manhã rósea”  quanto “róseo amanhã”) é a canção que maravilha o alpinista interpretado por Akitake Kono, guia dos bandidos em fuga.



Enquanto tudo se dá, Shimura sufoca as pretensões de Mifune com o sopro de sua bondade, crescente conforme outra canção folclórica, a estadunidense “My old Kentucky”, interpretada pela menina, evoca a saudade do lar. (“E o que é o Kentucky?”, pergunta-lhe Shimura.)



O filme passa como um assombro por  penhascos reais. Os personagens têm garras fincadas nos sapatos, cordas atadas pelo código de ética dos alpinistas e o fogo está sempre perto do fim. “A montanha é poderosa e punirá os maus”, anuncia o avô de Setsuko (Yoshio Kosugi). Uma sequência no trem fará Shimura desejar ver mais uma vez a montanha que desafiou. Montanha da juventude e das crenças – tantas combatidas pelos Aliados. A parte mais bonita do filme é quando ele lhe dá adeus.

Setsuko Wakayama e Mifune,
juventudes tão distintas

https://youtu.be/kJbVbxZ_FwI?si=Kvo_HOGE60CXLGCl

Obrigada, sr. Kudo

Eiichi Kudo, o diretor
de “Onze Samurais”

Todos conhecemos Os Sete Samurais e amamos Akira Kurosawa, possivelmente, mais do que muitos outros diretores de cinema dos tempos todos. Mas quantos de nós já ouvimos falar do Onze Samurais de Eiichi Kudo, e de Kudo ele-mesmo? Seremos poucos. Eu, por exemplo, não o conhecia até ontem. Creio que padeço de ignorar em grande parte o mais belo cinema imaginado ou feito.

A inútil vingança

E é por isso que as mostras de cinema da atualidade me dão tão poucas esperanças. Elas não me levarão até eles. Filmes como Onze Samurais, que constroem imaginação e liberam consciência, não podem ser mais feitos. Reais a ponto de os galhos se emaranharem diante da câmera na hora devida, de o sol penetrar inteiro na clareira de uma floresta que se fecha quando o guerreiro vislumbra sua tarefa. Um filme sobre tempestades.

Sangue sob chuva

Acho que padecemos de ver. Esquecemos de sentir. Nossos filmes atuais são até capazes, e muito, de perceber que temos problemas. Eles identificam dores. Mas, além de identificar, o que o cinema deve fazer? Penetrar, não é? Ser cinema. Ser a intensidade, a linguagem, o som, o movimento, a hora do sonho e do desvelo. Mas estamos muito ocupados identificando coisas para que penetremos nelas.

A face do amor

Onze Samurais foi feito em 1967 e é assim. Uma penetração (gosto da palavra) no profundo cinema desde os minutos iniciais, quando uma coreografia de cavaleiros, seus chapéus, quimonos, armas, sai atrás de um animal inocente, para satisfazer um senhor insensível. Um cinema desses nem precisaria ter som, mas tem, pós-colocado em descompasso, sonoplastizado, a indicar que estamos diante de um filme, de um pensamento visual que constrói o drama a partir da coreografia, da beleza fragmentada em inúmeros pedaços.

Nos pedaços da paisagem

Eiichi Kudo (1929-2000) não viveu tanto, 71 anos, para a quantidade de filmes que fez, 30 deles entre os anos 1956 e 1998. Nos anos 1970, sobreviveu da televisão e de suas sagas. Por “Onze Samurais”, que fecha uma trilogia, entendemos suas razões. Seu filme contém a vibração cinematográfica de toda a história. Tem Kurosawa ali percorrido, do mesmo modo que Godard, guerra, amor, paz, Shakespeare, Tolstoi.

E, ainda assim, eis um filme inocente, sobre arrogância e descoberta, solidariedade e vingança, sobre o ardor desperdiçado que é viver.

Não se pode existir o tempo todo para fazer filmes assim.

Senhor Kudo, obrigada pelo que nos deu.