Ser escritor na China, ou como transpor o mar

Em documentário na Mostra Internacional, Jia Zhangke ouve três escritores chineses sobre a arte no país a partir dos anos 1950

Jia Pingwa: “Escrever poesia não significa viver uma vida poética”

Nadando até o mar se tornar azul é mais que um título de filme, antes um verso concreto, dito com alguma naturalidade pelo escritor Yu Hua ao final deste belo documentário de Jia Zhangke. O autor conta ao cineasta que realmente, em sua vida, nadou em um mar amarelo até que o enxergasse azul… 

Adepto de uma fotografia que traduz a reflexão do artista entrevistado, focalizando seu rosto enquanto todo o entorno parece borrar-se, o cineasta caminha com calma para desvendar esse tão bem falado horizonte chinês. Os depoimentos parecem ter sido muito desejados pelos depoentes. Há intensidade, risos e lágrimas em tudo o que dizem ao diretor.

A escritora Liang Hong: as emoções pesam

Existiria um modo melhor que usar a literatura das últimas décadas, desde aquela imediatamente posterior à revolução, nos anos 1950, para esclarecer esse horizonte? Talvez sim, mas talvez, igualmente, ninguém tenha pensado nisso antes de Jia Zhangke.

O cineasta vale-se tanto do depoimento intenso e bem-humorado de Hua como da memória do célebre autor morto Ma Feng e dos depoimentos de Jia Pingwa e da escritora Liang Hong, tão emotiva, para recompor a história do fazer literário no país. É como se, durante as conversas com o cineasta, os escritores nos ensinassem coisa demais sobre ser chinês. O valor da solidariedade. A intensidade de desejar a literatura, mesmo que ela lhe tenha sido vetada pelas circunstâncias do trabalho braçal. Tentar reescrever o final e o início de um belo livro cujas páginas foram arrancadas pela revolução cultural. Tornar-se escritor na China! O equivalente a transpor o mar.

Jia Zhangke: boa conversa e inusual fotografia para traduzir quem escreve

Ainda assim, não será tudo. Tornar-se um poeta estará longe de dar um salto verdadeiro na existência. “Escrever poesia não significa viver uma vida poética”, lembra-nos Jia Pingwa. E o que ele aconselha para que isto se dê? Ele não diz. Mas podemos ler um de seus versos. “Lance um olhar frio sobre o mundo”, escreve Jia Pingwa sobre as pedras. 

Tentar imaginar o final e o início de livros cujas páginas foram arrancadas pela revolução cultural tornou-se um exercício para Yu Hua

Nadando até o mar se tornar azul
Dir.: Jia Zhangke
China

112 minutos

2020

https://mostraplay.mostra.org/film/nadando-ate-o-mar-se-tornar-azul/

Silêncio, ação!

“Masters in Short”, presente na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, costura homenagens ao cinema silencioso

Em “A Visita”, de Jia Zhangke, uma dupla cômica usa máscaras para esconder palavras

Este filme de episódios, em sua maior parte, homenageia o silêncio dentro da arte. Uma homenagem para lá de justa, já que se tem privilegiado a palavra no cinema e deixado para segundo plano o movimento, seu sentido. Masters of Short seria essencialmente harmônico das origens cinematográficas não houvesse a seu término, em “Escondida”, as palavras sem fim do diretor Jafar Panahi. Mas estas operam numa constância tal que até nos fazem esquecê-las… Curioso perceber como, por meio delas, ao observar o movimento dentro de um tradicional automóvel iraniano, operamos na vibração mágica dos mudos.

Como todo filme de episódios, este é irregular e diverso. Começa Jia Zhangke com A Visita, uma graça rápida sobre a hesitação do toque na era pandêmica, relembrando a ação das duplas cômicas que aperfeiçoaram o cinema silencioso. Depois, com “O Adivinhador” e “Os Caçadores de Coelhos”, de Guy Maddin, Evan e Galen Johnson, nos vemos diante de mínimas superproduções que escancaram a paródia aos filmes monumentais do início soviético, em suas situações de comicidade e sonho.

“Uma Noite na Ópera”, de Sergei Loznitsa, parece ser o experimento mais radical e minimalista do filme. Em seu curta, o diretor edita os telejornais antigos que registraram, silenciosos, os momentos a anteceder um concerto de Maria Callas na Ópera Nacional de Paris, em 1958. Ao teatro acorrem, banhados em flash e sorrisos, as estrelas da época, Charles Chaplin, Brigitte Bardot, Grace Kelly e Rainier, Charles De Gaulle, a rainha Elizabeth e Philip… Loznitsa nos coloca dentro do teatro, mas, principalmente, de um tempo. E somos presenteados com a voz mixada de Callas ao fim.

Não bastasse esse sonho memorial, o belo encerramento de Panahi evocará a tragédia feminina e presente da mulher iraniana, escondida por trás de um pano, mas ainda viva.

Masters in Short

Vários

2020

1h11

https://mostraplay.mostra.org/film/masters-in-short/