“Tempo Ruy”, a resistência vital do diretor Ruy Guerra

O primeiro, belo e poético longa-metragem de Adilson Mendes é obra madura sobre um dos mais importantes diretores do Brasil

Ruy Guerra, olhar direto



Cinema sobre cinema. Assim se pode resumir Tempo Ruy, o filme do diretor Adilson Mendes sobre o diretor Ruy Guerra, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Com montagem de Fábio Costa Menezes e fotografia de Saulo Nicolai e Kae Rodrigues, Adilson Mendes voa como um pássaro poético sobre a trajetória de um relegado da historiografia, o moçambicano tornado brasileiro pelo cinema Ruy Guerra. É seu primeiro longa-metragem, mas nem parece.

O diretor de “Tempo Ruy”,
Adilson Mendes

Historiador formado na Unesp, com habilitação em cinema pela USP, Mendes aprofundou-se em curadoria e história, com ênfase em história do cinema e patrimônio audiovisual. Foi pesquisador da Cinemateca Brasileira, onde trabalhou em curadorias, edições e restaurações. Organizou o livro Ruy Guerra – Arte e Revolução e na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, no ano passado, ministrou, ao lado de Ruy Guerra, o curso on-line “O Trabalho de Ruy Guerra”. Sua única obra anterior como cineasta foi o curta Eu Posso Ir.

Mendes conheceu Ruy Guerra quando participou da equipe da Cinemateca responsável pela restauração de Os Fuzis, uma obra-prima brasileira possivelmente sem pares. A crise de 2013, que atingiu a instituição, impediu a finalização do restauro. E Mendes foi a pessoa encarregada de viajar até o Rio para contar isso a Ruy Guerra. “Dei sorte e nosso santo bateu. E na pandemia estreitamos os laços”, ele conta.

O filme foi rodado durante a pandemia naquele pedaço de mundo onde Guerra vive ao lado de seu enfermeiro, Gerônimo Quirino, um personagem apresentado em sequência memorável. É como se, por meio dela, estivesse ilustrada a própria trajetória atlântica de Guerra rumo à pasárgada brasileira, onde, misturado à paisagem e seus desígnios, o moçambicano escolheu aplicar as lições de cinema que primeiro aprendeu com os franceses.

Em seu recolhimento, com humor

Ruy Guerra fala e pontua bem o que diz, como se o tempo realmente lhe pertencesse. Autor de livros, poemas e canção popular, ele lê por todo o filme. Tem o mau humor divertido e no seu coração não parece haver rancor nem mesmo por Glauber Rocha, que rompeu com ele por imaginá-lo espião da ditadura portuguesa, ou algo nesta linha sem sentido. Mas Guerra, como bem recorda, despediu-se dele em funeral.

O filme persiste em imagens litorâneas estendidas, em reflexos e sombras do cinema mudo, e todo o tempo parece encenar um sereno adeus. 

Um cineasta reconhece outro e, aos 90 anos de idade, Guerra diz a Mendes que demora a morrer. Isto, como é de supor, o faz presenciar a perda um a um de todos os grandes amigos, como Gabriel García Márquez, de quem diz se lembrar todos os dias. Ele suspeita que esta seja a maneira que a vida encontrou de lhe dizer que talvez seja possível perdê-la sem lamentar. Mas Guerra, indiferente ao que o tempo rui, sempre preferirá viver um pouco mais. 

A seguir, as respostas que Adilson Mendes deu às minhas perguntas:

Como se deram as conversas para a realização deste filme?

O convívio diário com Ruy Guerra durante a pandemia fez com que ficássemos amigos e a ideia do filme surgiu como forma de ajudá-lo a existir durante esse período difícil. A amizade forte permitiu a liberdade criativa.

Sentiu necessidade de procurar outros personagens envolvidos em sua história? Ou ele lhe pediu que se concentrasse apenas em seus depoimentos e cartas?

Achei que seria apropriado fazer um filme huis clos com ele em sua casa. Um caso isolado com possibilidade de generalização. Uma estrela solitária capaz de iluminar uma constelação inteira: a cultura brasileira, que agora está sendo tragada por uma nebulosa. E o brilho de Ruy é a resistência vital.

Me fale um pouco sobre a escolha da trilha musical, que me parece tão acertada, ao intensificar as passagens, os belos travellings.

A trilha é fruto do enorme talento de Dino Vicente. O trabalho dele foi fundamental para a estruturação do filme. O título do filme traz a palavra “tempo” no sentido musical. Por isso, a música deu ossatura à massa gelatinosa das imagens e da voz de Ruy.

Esse seu estilo de documentário, que explica sem se detalhar ou identificar (como acontece numa emocionante sequência em câmera lenta em torno do enfermeiro de Guerra, e pode indicar, além da fragilidade física do diretor, sua trajetória afro-atlântica), foi desenvolvido a partir do interesse em documentários específicos? Quem são os documentaristas que mais lhe influenciam?

Durante a década e meia em que trabalhei na Cinemateca mergulhei na história do cinema. E certamente a tradição documental me marcou, especialmente a de Georges Franju, que também marcou demais a sensibilidade de Ruy.

Manancial inesgotável

Como você vê Ruy Guerra no panorama do cinema brasileiro? Crê que ele não foi suficientemente visto ou valorizado? Quais são os filmes essenciais da cinematografia dele, a seu ver, e por quê?

Ruy é manancial inesgotável. Sua coragem de se renovar a cada filme é inspiradora para qualquer cineasta que queira fazer um cinema de combate. Para mim, Ruy é o autor do único filme brasileiro: Os Fuzis. Quando observamos a fortuna crítica de Ruy, notamos que sua obra repercutiu mais na França do que no Brasil. Os clássicos da historiografia do cinema moderno o ignoram ou passam rápido por ele, sempre reproduzindo o belíssimo texto de Roberto Schwarz sobre Os Fuzis, “O cinema e Os fuzis”, de 1966.

Tem um próximo projeto cinematográfico do qual possa me falar?

No momento desenvolvo alguns outros filmes, ficção e documentário. O mais avançado, que sairá no começo de 2022, trata da entrada do MST no mercado financeiro.

Adilson Mendes, com o MST
para o próximo filme

TEMPO RUY

Diretor: Adilson Mendes

Brasil

2021   cor   72 min.   

Documentário