Um passeio pela Pinacoteca de São Paulo contraria a pretensão de que as exposições devam ou possam suportar os limites fascistas-doria-estrumianos de breve moral
Somos todos moralistas. A moral é uma tentação que praticamos. Mortal.
Cada moral é contraposta a outra no decorrer do tempo. Eis por que o moralismo diz respeito a nós, seres humanos, não à arte.
Quando vejo a violenta Barbie à toa que é o atual prefeito de São Paulo discorrer sobre os limites do aceitável dentro do fazer artístico, a implicar nele, portanto, uma moral (ou seja, uma duração no tempo), sei que ele está apenas interessado em exercer a política, esta prática imanente, rentável e ligeira. Doria não transcende, não é artista.

Fui à Pinacoteca de São Paulo na última semana, porque não poderia, naquele momento, pertencer a outro lugar. Lá sorvo, de tempos em tempos, minha peculiar Monalisa que é a tela Saudade, de Almeida Júnior (1850-1899). Eu a visito pessoalmente porque somente quando me coloco próxima da pintura visualizo as águas a escorrer como ágatas pelo rosto do personagem que, à janela, sente a ausência de algo ou alguém. A jovem terá saudade do homem a quem pertence o chapéu pendurado à esquerda? Ou apenas lamentará não mais vivenciar uma situação, um animal, uma criança?
A lágrima não tem moral. Apenas sabemos que a mulher em Saudade sente um vazio emotivo, convulsivo como pedra decorativa incomum, deixado por quem passou. Saudade é do coração, cordial e violenta como o Brasil.
Na Pinacoteca, quando paro em Torso de Menina, de Eliseu Visconti (1866-1944), ainda vivencio o impacto. A tela nos movimenta. Uma entre várias experimentações do pintor (ligado ao art nouveau e ao pontilhismo) na qual esboça um nu de matriz impressionista. O personagem retratado em 1895, três anos após uma bolsa de estudos lhe ser concedida em Paris, é uma menina incomodada diante de quem a vê. Ela tem os cabelos curtos e escuros, o corpo retorcido. Encena uma pose com a mão direita na cintura, embora sentada e encostada na parede, como quem se vê obrigada a posar (sem olhar) para alguém.

Asseguram Kethlen Kohl e Rosângela Miranda Cherem no artigo A tela e a carne em Eliseu Visconti:
“As sobrancelhas levantadas estão muito perto da testa e o olhar sem alegria sugere uma mistura de espanto e desdém. A boca e a bochecha ainda são de menina, mas estão longe de parecer esboçar um sorriso. Essa menina está com o vestido abaixo da cintura, embora seu pequeno corpo indique que os seios estão a crescer. Provavelmente filha de escravos, serve como um objeto curioso ao pintor que encontra um corpo se transformando em outro, uma menina virando mulher.”
O que diria o prefeito deste pequeno escândalo que o tempo assimila como arte exemplar em museu público? Ou uma criança negra obrigada a se expor a um pintor não constituiria assunto para controvérsia?

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retrospectiva No subúrbio da modernidade – Di Cavalcanti 120 anos, que se dá na mesma Pinacoteca, traz muitas das imagens do pintor a evocar os prostíbulos. Duas figuras femininas com paisagem ao fundo, nanquim e grafite sobre papel, de 1928, é menos prostituição do que encontro, uma natural confidência de amizade entre mulheres. Di as coloca nuas quase por acaso. O toque que não praticam entre si sugere a ocorrência de um momento posterior, prestes a se dar com efusão, e também delicadeza.
Isto pode no museu, prefeito? Onde está o limite do que se deve suportar? Onde, o tempo?

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ez, a mais violenta representação durante aquela visita à Pinacoteca esteve no tríptico A fazedora de anjos, óleos sobre tela que Pedro Weingärtner (1853-1929) apresentou em 1908. Pintor, gravador, litógrafo, desenhista e professor, filho de imigrantes alemães, Weingärtner trabalhou inicialmente como caixeiro-viajante e depois como litógrafo. Em 1879, viajou por conta própria para Hamburgo, na Alemanha, e estudou no Liceu de Artes e Ofícios. Depois, seguiu para Paris. A pintura era seu lugar para evocar a modernidade, ainda que controlada pela figura clássica das sombras.
O tríptico A fazedora de anjos não foi explicado por ele. No primeiro quadro, uma jovem visita o que parece constituir um baile, exposta ao prazer. No segundo, divaga com um bebê ao colo, observada por uma mulher cujo olhar duramente a condena, como se a si própria coubesse cuidar da criança gerada pela jovem. No terceiro quadro, uma velha, talvez a protagonista dos quadros anteriores, amargura um pesadelo.
Fazedora de anjos é quem ignora seus filhos? Quem os entrega a alguém? Quem os aborta espiritualmente, dando-se às divagações do prazer?
Todas as narrativas sugeridas por estas representações pictóricas só poderão interessar àqueles que somos, donos da imaginação. O papel da arte é evocar, não moralizar. Ela nos liberta a pensar, a supor e a compor recriações sem os limites que o tempo nos impõe.
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