Noto que todo o mundo pandêmico voltou a uma espécie de condução rotineira, e que os viventes lá fora aprofundam-se em dois comportamentos. Ou se adaptam bem aos cuidados higiênicos contra o vírus ou infelizmente suicidam-se, daquele jeito rápido-lento, ao ignorá-los. Mas todos produzem. Até os que no início achavam importante parar, nem cobrar-se durante este período, produzem incessantemente agora.
Eu também produzo. Mas não incessantemente. Não concretizo de modo tão fácil o que ando pensando. Porque sou lenta. Naturalmente. Me traduzo num reflexo. Sou de gastar tempo com a risada, de modo a que ela me cure da vontade de parar tudo, de desistir.
Hoje pude testemunhar o sorriso de Hannah Arendt na entrevista que o perfil do Instagram @hannaharendtbr legendou em português (https://m.youtube.com/watch?v=PG8BYwv9IBQ&feature=youtu.be). Tão linda! Senti uma paz imensa ao saber que ela o advogava. E que foi até mesmo perseguida por sorrir. Aquela certeza de que três minutos antes da morte ainda daria sua risada…
Então, no meu caso, antes de recomeçar de algum ponto perdido, sempre preciso ouvir o que diz meu oráculo da alegria. Meu coração intuitivo. Ou qualquer produção se fará errada, corrigível. E precisarei voltar ao início.
Tudo em minha vida precisei fazer minimamente alegre. O jornalismo, por exemplo. Me lembro que era redatora da Folha quando um repórter que se considerava importante veio até minha mesa perguntar, inconformado: “Do que você tanto ri? E pra quê?” Minha alegria o impedia que advogasse sua sisudez, sinônimo aquiescido de seriedade profissional. Continuei rindo depois disso. Até por pena.
Pedalo por pedalar, vivo pelo gosto de viver, estudo porque preciso… Imagine rir escrevendo o doutorado, se é possível! Imagine, além disso, estudar humor!
Não sei o que esta quarentena terá feito de mim ao final, além de mais gorda uns cinco ou seis quilos, com a liberdade grisalha testada e adquirida em minha cabeça. Mas suspeito que não sairei tão triste desta experiência, se tiver a sorte imensa de sair.
Meu filho tem me achado bonita. Diz que não se lembrava dos meus cabelos compridos. Tenho vontade de presenteá-los a ele, aos meus, à família e aos amigos da arte (vocês sabem quem são). Sem essa gente de outras nuvens, o meu mundo, sempre tão voltado para dentro, antes mesmo de o isolamento forçado acontecer, jamais seria feliz como tem sido.
Creio que haja tantas ideias sobre como o humor deva funcionar quanto piadas de loira burra.
Nunca conheci uma loira burra, mas fico com uma ideia.
Minha ideia é de que o humor funciona apenas quando momentaneamente (o momento sublime da tirada, da piada, do dito) liberta o oprimido de sua condição, aliviando-o do fardo de viver. Não acredito no humor do coronel, do opressor se rindo de quem é oprimido ou de quem luta por ele. Isto pra mim não é humorismo. Talvez assassinato, extermínio.
“O humor deve visar à crítica, não à graça”, me ensinou o Chico Anysio.
Um passeio pela Pinacoteca de São Paulo contraria a pretensão de que as exposições devam ou possam suportar os limites fascistas-doria-estrumianos de breve moral
Somos todos moralistas. A moral é uma tentação que praticamos. Mortal.
Cada moral é contraposta a outra no decorrer do tempo. Eis por que o moralismo diz respeito a nós, seres humanos, não à arte.
Quando vejo a violenta Barbie à toa que é o atual prefeito de São Paulo discorrer sobre os limites do aceitável dentro do fazer artístico, a implicar nele, portanto, uma moral (ou seja, uma duração no tempo), sei que ele está apenas interessado em exercer a política, esta prática imanente, rentável e ligeira. Doria não transcende, não é artista.
Saudade, óleo sobre tela de Almeida Júnior, 1899
Fui à Pinacoteca de São Paulo na última semana, porque não poderia, naquele momento, pertencer a outro lugar. Lá sorvo, de tempos em tempos, minha peculiar Monalisa que é a tela Saudade, de Almeida Júnior (1850-1899). Eu a visito pessoalmente porque somente quando me coloco próxima da pintura visualizo as águas a escorrer como ágatas pelo rosto do personagem que, à janela, sente a ausência de algo ou alguém. A jovem terá saudade do homem a quem pertence o chapéu pendurado à esquerda? Ou apenas lamentará não mais vivenciar uma situação, um animal, uma criança?
A lágrima não tem moral. Apenas sabemos que a mulher em Saudade sente um vazio emotivo, convulsivo como pedra decorativa incomum, deixado por quem passou. Saudade é do coração, cordial e violenta como o Brasil.
Na Pinacoteca, quando paro em Torso de Menina, de Eliseu Visconti (1866-1944), ainda vivencio o impacto. A tela nos movimenta. Uma entre várias experimentações do pintor (ligado ao art nouveau e ao pontilhismo) na qual esboça um nu de matriz impressionista. O personagem retratado em 1895, três anos após uma bolsa de estudos lhe ser concedida em Paris, é uma menina incomodada diante de quem a vê. Ela tem os cabelos curtos e escuros, o corpo retorcido. Encena uma pose com a mão direita na cintura, embora sentada e encostada na parede, como quem se vê obrigada a posar (sem olhar) para alguém.
Torso de menina, óleo sobre tela de Eliseu Visconti, 1895
Asseguram Kethlen Kohl e Rosângela Miranda Cherem no artigo A tela e a carne em Eliseu Visconti:
” as sobrancelhas levantadas est muito perto da testa e o olhar sem alegria sugere uma mistura de espanto desd a boca bochecha ainda s menina mas longe parecer esbo um sorriso. essa com vestido abaixo cintura embora seu pequeno corpo indique que os seios crescer. provavelmente filha escravos serve como objeto curioso ao pintor encontra se transformando em outro virando mulher. diria prefeito deste esc tempo assimila arte exemplar museu p ou crian negra obrigada expor n constituiria assunto para controv>
Duas figuras femininas com paisagem ao fundo, grafite e nanquim sobre papel, 1928
A retrospectiva No subúrbio da modernidade – Di Cavalcanti 120 anos, que se dá na mesma Pinacoteca, traz muitas das imagens do pintor a evocar os prostíbulos. Duas figuras femininas com paisagem ao fundo, nanquim e grafite sobre papel, de 1928, é menos prostituição do que encontro, uma natural confidência de amizade entre mulheres. Di as coloca nuas quase por acaso. O toque que não praticam entre si sugere a ocorrência de um momento posterior, prestes a se dar com efusão, e também delicadeza.
Isto pode no museu, prefeito? Onde está o limite do que se deve suportar? Onde, o tempo?
A fazedora de anjos, óleos sobre tela de Pedro Weingärtner, 1908
Talvez a mais violenta representação durante aquela visita à Pinacoteca tenha estado no tríptico A fazedora de anjos, óleos sobre tela que Pedro Weingärtner (1853-1929) apresentou em 1908. Pintor, gravador, litógrafo, desenhista e professor, filho de imigrantes alemães, Weingärtner trabalhou inicialmente como caixeiro-viajante e depois como litógrafo. Em 1879, viajou por conta própria para Hamburgo, na Alemanha, e estudou no Liceu de Artes e Ofícios. Depois, seguiu para Paris. A pintura era seu lugar para evocar a modernidade, ainda que controlada pela figura clássica das sombras.
O tríptico A fazedora de anjos não foi explicado por ele. No primeiro quadro, uma jovem visita o que parece constituir um baile, exposta ao prazer. No segundo, divaga com um bebê ao colo, observada por uma mulher cujo olhar duramente a condena, como se a si própria coubesse cuidar da criança gerada pela jovem. No terceiro quadro, uma velha, talvez a protagonista dos quadros anteriores, amargura um pesadelo.Fazedora de anjos é quem ignora seus filhos? Quem os entrega a alguém? Quem os aborta espiritualmente, dando-se às divagações do prazer?
Todas as narrativas sugeridas por estas representações pictóricas só poderão interessar àqueles que somos, donos da imaginação. O papel da arte é evocar, não moralizar. Ela nos liberta a pensar, a supor e a compor recriações sem os limites que o tempo nos impõe.
Uma aluna de Letras da USP que trabalha como vendedora em uma loja me mandou esta página do Guia do Estudante 2017, publicação da editora Abril preparatória ao exame de Português do Enem. Ela se dizia muito contente em ler ali um texto que escrevi em junho de 2015. Também me senti radiante ao testemunhar, pelo whatsapp, sua felicidade em encontrar publicado algo escrito por mim. Sempre achei difícil demais o que ela faz, trabalhar enquanto estuda seriamente e cuida sozinha de um filho… Que ela tivesse me visto como exemplar em qualquer sentido me deixava sem palavras.
Com alguma alegria, portanto, fui até a banca mais próxima percorrer o exemplar de 18,90 reais no qual meu texto se encontrava, antecipadamente agradecida que o tivessem mencionado em um material didático de tão amplo uso. Meu artigo fora bem duro de fazer, e pouco reconhecido à época, especialmente pela revista onde eu trabalhava. Mas a verificação da maneira como se viu reeditado pelo guia (malgrado eu soubesse se tratar especificamente de um guia) esmoreceu um pouco meu ânimo positivo.
Da maneira que o recorta, a publicação acaba por mencionar apenas um livro comentado por mim no texto, um clássico de Isaiah Berlin, As Raízes do Romantismo (Três Estrelas). O outro livro que descrevo, após entrevista com Michael Löwy, um dos autores de Revolta e Melancolia (Boitempo), fica assim esquecido nesse contexto em que procuro descrever historicamente a percepção romântica. A publicação entende que fiz uma resenha, enquanto meu texto, intitulado A dor revolucionária, misturou os gêneros jornalísticos. (Pude ouvir, em entrevista, o que Löwy tinha a nos dizer sobre sua concepção, a diferir respeitosamente, de algum modo, daquela de Berlin.) Igualmente estranhei a inclusão de um poema de Bandeira ao lado do excerto do artigo, de modo a tematizar o desejo de finitude e isolamento do período. Por mais que me esforce, não consigo ligar o maravilhoso, seco poeta irônico, que um crítico certa vez descrevera como um “parnasiano cinza”, àquele ideal romântico por mim descrito.
Como disse antes, compreendo que se trate de um guia com objetivos específicos, para o qual meu texto talvez caiba apenas aos pedaços, especialmente aqueles a ressaltar os comportamentos e os modos de pensar de um período, a cada dia mais estranhamente assemelhados ao nosso. E me sinto estimulada ao imaginar que o estudante do Ensino Médio possa ter contato com este assunto por meio de passagens de um texto meu. Expostas as ressalvas, agradeço aos editores do guia pela menção, esta que nos torna (e a nossas ideias) um pouco mais vivos.