Morre com pneumonia aos 92 anos Flávio Damm, um fotógrafo para nossa história do instante e do humor

Flávio Damm (1918-2020) era meu amigo. Não que ele soubesse exatamente disso, porque amigos não lhe faltavam e ele não me conhecia pessoalmente. Mas eu o entendia assim porque, quando lhe telefonava da redação, aflita por um raciocínio inteligente que pudesse incluir nas minhas reportagens sobre fotografia, ríamos às vezes por mais de uma hora durante a qual ele enfileirava episódios anedóticos. Flávio soltava sem pudor linhas admiradas ou duras acerca de fotógrafos do passado, como seu ídolo José Medeiros ou o correspondente de guerra Luciano Carneiro, que não sabia invejar secretamente.
Não raro, após essas longas ligações, ele me enviava de maneira gentil fotos suas autografadas, como esta acima, de Lisboa, naquele Portugal que visitava sempre. Cidade da história, da qual ele extraía um fado de alegria.
Era então, melhor dizendo, minha amizade à distância no jornalismo, alguém cujos livros eu resenhava e em torno de quem sempre procurava uma desculpa a resultar num telefonar. Seja um fotógrafo, pense sobre o que faz, e eu não largo você nunca mais…
Flávio me deu uma definição muito prática para o que, na sua opinião, seria um fotógrafo de rua, no caso ele próprio: “Eu me aproximo como um gato e fujo como um rato”. A foto de rua (e ele nunca se esqueceu disso, como todos os grandes) é um roubo explícito, necessário – e galante, contudo.
Há alguns anos, Flávio, que na revista Cruzeiro experimentara a passagem gloriosa e sofrida do uso de câmeras reflex (cujos negativos, quadrados, eram do apreço de Jean Manzon) para o de ágeis Leica (e Manzon de início vetara seu uso), nos últimos tempos vivia ensimesmado com o fim da fotografia. Bem, ensimesmado é pouco. Furioso mesmo.
Ele ouvira dizer que em O Globo não se usariam mais máquinas fotográficas, mas câmeras de filmar. Isto daria então ao editor o poder de escolher o frame que lhe aprouvesse do trabalho de quem filmava para publicação no jornal. Seria demais se isto de fato se desse e eu no fundo desconfiava dessa ocorrência, porque se tratava de acrescentar mais uma atribuição ao editor de jornal, ele que já mergulhava em tantas imagens a decidir num dia só. De um jogo de gato e rato, tudo passaria então à atribuição de lebres atordoadas…
Flávio foi um precursor em tudo, não só porque levou ao mundo as primeiras imagens do exílio de Getúlio Vargas ou esteve longamente com Cândido Portinari, tornando-se seu retratista quase exclusivo e dando até mesmo ao único filho o nome do pintor. Foi precursor porque, insistente capturador de breves momentos bem-humorados na cidade áspera, transformava-a por vezes numa vila de frescor, como aquela Paris de Robert Doisneau ou Édouard Boubat.
Vou sentir muita falta de sua risada, de sua narrativa precisa de detalhes e datas. Principalmente, de sua reserva memorial e analítica para uma arte sobre a qual repousa um silencioso desprezo crítico e de apreciação. Amigo, fique em paz.