Me ponho a ler o texto de um desses curadores/historiadores da arte que gostam de meter seu pitaco sobre fotografia.
A certa altura, o pensador diz que no trabalho de determinada fotógrafa “não se percebia nenhum cacoete da fotografia direta, por exemplo, ainda muito valorizada naquele período”.
Chego a ter pena.
Fotografia direta, “cacoete”?
“Ainda muito valorizada”?
Talvez esses críticos/historiadores/curadores não passem mesmo de avaliadores de mercado.
O matemático Carl Størmer e seu hábito de clicar escondido que antecipou um campo para a arte fotográfica
Aos 19 anos, o estudante de matemática norueguês Carl Størmer (1874-1957) comprou uma câmera oculta. Era tão pequena que a lente se encaixava na casa de botão de seu colete, com um cordão a descer até o bolso, permitindo que ele acionasse o mecanismo secretamente.
Uma paixão o levou à fotografia. Quando era jovem na Universidade de Oslo, o matemático, que posteriormente se especializou no estudo das auroras boreais, atraiu-se por uma desconhecida, mas sua timidez não lhe permitiu familiarizar-se com ela. Desejoso de ao menos ter uma foto dessa mulher, decidiu tirá-la sem o seu conhecimento. A partir disso, adquiriu o hábito de fotografar as ruas de Oslo e chegou a registrar celebridades como Ibsen. A atividade lhe rendeu 500 imagens entre 1893 e 1897.
feita nos anos 1980, esta imagem me abriu uma possibilidade para a fotografia e para a vida.
eu era jovem e impetuosa. (talvez me reste algum ímpeto, às vezes.)
nos meus 20 anos, emocionei-me ao conseguir esta imagem para um trabalho de faculdade.
minha intenção era somente clicar a bela janela do bixiga, bairro onde eu morava, com a olympus portátil que uma colega me emprestara. mas eis que esta senhora apareceu. pedi-lhe que se virasse pra mim e ela não se virou. ficou assim, olhando o infinito, por um bom tempo. minha timidez me perguntava se eu deveria clicá-la sem que me autorizasse. minha ousadia decidiu por mim. a senhora não se importou com a foto que eu fiz.
somente depois descobri que fotografia de rua é feita principalmente assim. com o senso claro de que algo está sendo tirado de quem não nos vê. ou, como dizia meu querido e divertido flavio damm: “aproximar-se como um gato, fugir como um rato”, eis o que um fotógrafo de rua deve fazer.
só assim, meio caçadores, meio ladrões, obtemos a imagem límpida, não preparada, desnuda, a verdade por um segundo, principalmente a nossa, e então para sempre.
e será nosso dever devolvê-la ao universo como uma leitura digna, divertida ou dramática, da situação vivida. uma oferta à humanidade.
quem acolheu com assombro esta foto (e as outras do trabalho) foi meu então professor, tornado amigo para sempre, carlos moreira, para mim um dos mais extraordinários fotógrafos do mundo. me deu nota dez.
carlos me ensinou toda a base do que sei, em tantas conversas que acabávamos por fazer, durante curiosos e intensos encontros que aconteciam entre nós de dez em dez anos, a maioria deles gravados.
ultimamente, a seu pedido, eu vinha escrevendo um livro sobre sua vida. nos dávamos bem, ele me contava quase todas as coisas. mas acho difícil, por uma série de razões, que esse livro saia um dia.
choro em pensar que não tenho mais o carlos a meu lado. suas conversas sobre fotografia eram aulas para a vida. pura filosofia, em estado de beleza.
sempre soube que sofreria com sua partida, que fará dois anos logo mais, embora tudo dele ainda viva em mim.
Morre com pneumonia aos 92 anos Flávio Damm, um fotógrafo para nossa história do instante e do humor
Uma comemoração da Revolução dos Cravos em Lisboa, 25 de abril de 2008
Flávio Damm (1918-2020) era meu amigo. Não que ele soubesse exatamente disso, porque amigos não lhe faltavam e ele não me conhecia pessoalmente. Mas eu o entendia assim porque, quando lhe telefonava da redação, aflita por um raciocínio inteligente que pudesse incluir nas minhas reportagens sobre fotografia, ríamos às vezes por mais de uma hora durante a qual ele enfileirava episódios anedóticos. Flávio soltava sem pudor linhas admiradas ou duras acerca de fotógrafos do passado, como seu ídolo José Medeiros ou o correspondente de guerra Luciano Carneiro, que não sabia invejar secretamente.
Não raro, após essas longas ligações, ele me enviava de maneira gentil fotos suas autografadas, como esta acima, de Lisboa, naquele Portugal que visitava sempre. Cidade da história, da qual ele extraía um fado de alegria.
Era então, melhor dizendo, minha amizade à distância no jornalismo, alguém cujos livros eu resenhava e em torno de quem sempre procurava uma desculpa a resultar num telefonar. Seja um fotógrafo, pense sobre o que faz, e eu não largo você nunca mais…
Flávio me deu uma definição muito prática para o que, na sua opinião, seria um fotógrafo de rua, no caso ele próprio: “Eu me aproximo como um gato e fujo como um rato”. A foto de rua (e ele nunca se esqueceu disso, como todos os grandes) é um roubo explícito, necessário – e galante, contudo.
Há alguns anos, Flávio, que na revista Cruzeiro experimentara a passagem gloriosa e sofrida do uso de câmeras reflex (cujos negativos, quadrados, eram do apreço de Jean Manzon) para o de ágeis Leica (e Manzon de início vetara seu uso), nos últimos tempos vivia ensimesmado com o fim da fotografia. Bem, ensimesmado é pouco. Furioso mesmo.
Ele ouvira dizer que em O Globo não se usariam mais máquinas fotográficas, mas câmeras de filmar. Isto daria então ao editor o poder de escolher o frame que lhe aprouvesse do trabalho de quem filmava para publicação no jornal. Seria demais se isto de fato se desse e eu no fundo desconfiava dessa ocorrência, porque se tratava de acrescentar mais uma atribuição ao editor de jornal, ele que já mergulhava em tantas imagens a decidir num dia só. De um jogo de gato e rato, tudo passaria então à atribuição de lebres atordoadas…
Flávio foi um precursor em tudo, não só porque levou ao mundo as primeiras imagens do exílio de Getúlio Vargas ou esteve longamente com Cândido Portinari, tornando-se seu retratista quase exclusivo e dando até mesmo ao único filho o nome do pintor. Foi precursor porque, insistente capturador de breves momentos bem-humorados na cidade áspera, transformava-a por vezes numa vila de frescor, como aquela Paris de Robert Doisneau ou Édouard Boubat.
Vou sentir muita falta de sua risada, de sua narrativa precisa de detalhes e datas. Principalmente, de sua reserva memorial e analítica para uma arte sobre a qual repousa um silencioso desprezo crítico e de apreciação. Amigo, fique em paz.