Shakira Indelicada no tapete champanhe

Ah, jornalismo. Como justificá-lo moralmente?

Agora, a Vanity Fair faz um reels em que corta o diálogo da jornalista (modelo, atriz?) Ashley Graham até a parte em que ela devolve a resposta tão inteligente de Hugh Grant, em torno da feira de vaidades, como se ele estivesse fazendo um marketing para a revista. Nunca gostei dessa publicação, bela porcaria, lixo sem luxo.

E ainda li na manchete de um site (fechado para não assinantes) que a Graham declarou depois da grande repercussão do incidente: “Minha mãe ensinou a matá-los com bondade”.

Mas ela foi boa? E será mesmo que matou?

De toda forma, é uma figura espirituosa e eu havia gostado quando, ansiosa por uma resposta na direção desejada, perguntou a Grant se não teria sido ele mesmo a fazer o próprio terno. Uma pena que sofra de manipular ostensivamente, algo que, de forma paradoxal, foi a qualidade que a levou às entrevistas no tapete.

Me pergunto como o público ainda aguenta e sustenta direcionadores como ela. Queria que o episódio fosse pedagógico de uma vez, mas duvido que vá acontecer. Seria incrível se a partir do que ocorreu ela afiasse o belo sorriso na contramão, mas por que faria isso se agora a reconhecem e falam dela mundialmente? Sucesso demais.

E pra dizer toda a verdade, verdade mesmo sobre aquele episódio, a rápida troca de perguntas no início se parecia mesmo com um flerte sorridente entre os dois. Tudo ia bem até que ela pretendeu laçar mercadologicamente um homem inteligente.

Estou obcecada por essa vergonha alheia global, como se me dissesse respeito, né? Virei Shakira Indelicada expondo uma atividade que já foi assumidamente minha, como uma expiação.

Fazer o quê?

TUDO AO MESMO TEMPO AGORA NO ZAP


(Uma história baseada em pura realidade)

Hugh Grant não aguentaria dez segundos neste tapete cor de sangue que é o Brasil.

Fui ao mercadinho vizinho de manhã antes da chuva sem levar guarda-chuva, a quarta vez que faço isto na semana e me molho, e me escorrego e quase caio no buraco da calçada que não dá pra ver.

Eu joguei pedra na cruz, é o que concluo. Eu sou como o Hugh Grant. Má. Mal-humorada. Sem paciência pro mundo e pra burrice. Eu mereço. Mas quem dera tivesse aquele talento encarnado que o Grant tem. Daria minha vida, sem nem ligar que o inferno chegasse depois. Tá ouvindo, deus?

Entro no mercadinho, pego as coisas que preciso levar e vou até a caixa livre. Ela está num conversê com a colega que arruma a prateleira.

A caixa é bem doida, notável por isso, fala o que vem à cabeça e acabou. Uma vez no auge da pandemia me mandou tirar a máscara para entender se eu queria crédito ou débito e não tirei. É doida mas jovem, mas magra, mas negra, linda de morrer, e não vou brigar com ela. A colega, nem tanto. Porém, bonita mesmo assim. Basta ser jovem pra ser bonita, dizia minha tia Alzira desde que completou 50 anos. E nem 50 tenho mais.

Essa conversa não para nunca? Bela nota que o ano está passando rápido. E que os jovens continuam morrendo todos os dias, metidos em drogas. Ela se pergunta: Depois de morrer, de que adianta tudo melhorar? Porém, vê uma esperança. Bela leu uma coisa no zap.

Bela leu que vivemos o pior dos tempos, razão pela qual ele vai voltar. Neste ano ainda!

Ai, meu deus, retiro o que pedi. Nem olho pra ela, pra não correr o risco de invocar o Grant Encarnado e lhe responder. Quero juntar tudo no balcão, pagar e sair correndo. Mas ela insiste na conversa e não registra as compras. É quando a colega Menos Bela pergunta, do nada:

– Pior dos tempos?

E me olha diretamente.

Fecho os olhos pra desaparecer, abro-os mas elas continuam lá, incansáveis de mim. Apertei o botão errado? A quantos metaversos tenho direito ainda? Três, um? Já! Respiro.

– Vejam bem – digo a elas, fazendo-me de velhinha multiplicada por seis. – Não é o pior dos tempos. Eu já nasci no pior dos tempos. Antes de mim, os tempos já eram os piores. Então, não se preocupem. Quanto custa o abacaxi?

Muita discordância naquele olhar de máscara abaixo do nariz. Mas estou no caminho certo. Pelo menos, Bela correu pra olhar o preço que pedi.

– São os piores tempos sim, são como eu disse, são como estava escrito! – Bela protesta.

É, não deu certo, então. Ela tem a força. Continua a se mostrar, a se impor ao mercadinho inteiro, como se seus peitos crescessem até as paredes.

De repente, sinto uma coceira nas costas e já sei de tudo. O Grant Encarnado baixou em mim, mesmo eu tendo implorado ao meu deus que não. Bicho sacana. Preciso dizer uma coisa rápida pra mudar o rumo da conversa e humilhar Bela, antes que Menos Bela sucumba e, com ela, o mercado, a cidade toda, o país e a humanidade inteirinhos.

– Tá certo, você tem razão, é o pior dos tempos – digo-lhe. – Mas quem é mesmo que vai voltar?

Vocês entenderam certo. Eu respondo perguntando. E essa pergunta ousada inicia o combate. A essa altura, Grant Encarnado já me toma pelos pés.

– Jesus! – Bela responde.

– Ele vai voltar, né? – assegura-se Menos Bela depois de informar o preço do abacaxi: – 10,50, senhora! Mas na semana passada juro que só custava 7!

É isso. Reclamo do preço e do Brasil, pronto, vai dar certo, não levo o abacaxi e saio correndo.

– Quando soar a última trombeta, o céu vai se abrir inteiro para Jesus passar! – volta Bela. – Vai ser maravilhoso, e vai ser logo mais!

É a guerra instaurada. A máscara infla com o sopro. Não aguentamos mais. Nem eu, nem Grant Encarnado.

– E Jesus vai descer como? Voando? – pergunto, Grant já preso em meu joelho.

– Sim, voando num cavalo branco! – responde Bela.

– Ah, mas não vai mesmo! – e mostro a ela meus punhos mentais.

– A senhora não crê na bíblia? – Bela retruca, desta vez suave, melíflua dos infernos.

– Isto não está na bíblia, meu bem, por favor leia direito…

E enquanto isto vago no metaverso dois. Bela nunca viu uma bíblia na vida. Nunca viu um livro. Ela acha que tudo o que existiu está escrito no zap.

– Nem na luz a senhora acredita? – me pergunta docemente.

– Na luz? Na luz, você diz? (Minhas bochechas arfantes). Acredito sim! Tá cara pra burro!

Meto as compras no saco. Saio correndo. De novo a chuva, de novo o bueiro, de novo o buraco. Meu chinelo ameaça navegar, mas isto nem é o pior. O pior é… Que botão verde aperto? O que faço com Grant Encarnado já agarrado na minha cintura? (Hum!). Preciso correr. No metaverso 17, é Verme contra Jesus. Só resta uma solução. Um tradutor para as massas. Um educador urgente. Lula, paim, venha correndo. Dê um jeito. Ensine essa gente depressa! Nos liberte, meu filho! Ou você vai nos deixar morrer fritos em dez dimensões?

Hugh Grant, nasty but lovely

Com Andie McDowell na
apresentação do Oscar: um humorista porque produz seu humor

Bem, preciso voltar a ele porque não sei como pode existir um humorista pleno assim. Hugh Grant é huge, com os cascos nos pés para duelar nos improvisos. Como no Oscar de 2023 (um resumo com vídeo neste link: https://www.theguardian.com/film/2023/mar/12/hugh-grant-oscars-interview-red-carpet).

Um rancoroso com Hollywood, é certo, desde o maravilhoso episódio com Divine Brown, quando foi flagrado, a meu ver, numa espécie armação para tirá-lo da jogada, já que era então o galã forasteiro daquelas paradas…

Gosto tanto desse senhor que nem consigo vê-lo misógino, o que francamente parece ser, às vezes. Mas já vi Meryl Streep saber tirá-lo da linha, então teve o que mereceu… E esta sua atuação no Oscar ontem, no tapete champanhe e depois, ficou na minha microhistória.

Enfim, sempre separo qualidade humorística de tudo o mais. Comédia é machista pra burro, no geral, como etarista, homofóbica, gordofóbica, tudo o que há de ruim, mas se bem narrada, contextualizada e interpretada com timing, eu jogo o lenço branco, trégua, paz, Totò!

No fundo, vigora minha admiração sem fim por quem sabe escrever e, além de tudo, interpretar, a concepção que tenho do humorista (extraída do Elias Saliba, meu orientador e professor: humorista é quem produz o humor, não quem somente atua, razão pela qual, na concepção dele, Jô Soares é o ator e Max Nunes, o humorista).

O dia em que entrevistei Chico Anysio foi um dos melhores desta minha profissão de m. Ainda bem que ele não era bonito, porque o contágio teria sido fatal. Ainda bem que todo humorista é um melancólico, ou ninguém o deixaria viver no seu canto e florescer. E ainda bem que Chico Anysio não morreu na minha frente! Estava bem mal àquela altura da vida, sem respirador, ainda tendo de cuidar da mulher enquanto desejoso de atender a imprensa… Bem, mas esta é outra história, que se não me engano já contei no blog.

Hugh Grant, meu nasty but handsome, rirei com você por alguns dias, thanks!

Um sol invencível


O fotógrafo carioca Walter Firmo, de 85 anos, deu luz e dignidade aos grandes personagens da cultura do Brasil e também aos invisíveis, glorificados em sua negritude por meio de uma trajetória profissional premiada de sete décadas. Aqui, a entrevista que fiz com ele em dezembro de 2022, a pedido da revista Robb Report.

Walter Firmo, fotografado por mim
com as cores de sua alegria, em um restaurante do centro paulistano

POR ROSANE PAVAM

Repare no céu da bandeira brasileira, suas estrelas intangíveis e o lema de sonho. Walter Firmo é o sol vermelho que mora ali e a gente mal vê. O artista de 85 anos, olhos fixos no interior de seus personagens, amplifica o país num contexto de paredes coloridas, folhagens e janelas, a realçar sua dignidade. Com luz, porque é o sol, Walter Firmo contribui há sete décadas para construir quem somos, a nossa realidade inteira.


Foi em condição solar que o carioca, “chocolatezinho do Irajá”, conforme diz com ironia, encontrou esta repórter em outubro, num restaurante do centro paulistano, região por ele frequentada muito antes da miséria atual vista no entorno. Veio com o boné encarnado e o sorriso matreiro, às vezes com as lágrimas que ele temia chegarem em “jorro”. E narrou histórias de uma vida feita de arte, esta que o Instituto Moreira Salles, de São Paulo, mostrou em “No Verbo do Silêncio, a Síntese do Grito”, a melhor exposição fotográfica a ter início em 2022.

Pixinguinha em plenitude,
na foto de 1967


Ele nasceu de Maria de Lourdes, linda menina branca de 15 anos caída de amores pelo ribeirinho amazônico bom de briga, o negro José, de 25. O prenome veio de Walter Pidgeon, ator canadense que a mãe amava pela elegância. Firmo referiu-se a São Firmino, o santo do dia de seu nascimento, 1o de junho. Um tio sugeriu que abreviassem para Firmo o segundo nome, e isto talvez tenha se colado à criança como um destino. Pois trata-se de alguém firme desde a letra manuscrita com a qual dedica o catálogo da exposição à repórter.

Temperados pela paixão, Lourdes e José deixaram o filho à criação da avó Teresa até os 5 anos, numa casa cujo quintal era ao mesmo tempo sua prisão de segurança máxima e as portas para o imaginar. Vó Teresa era como as zelosas senhoras antigas, prenhe de histórias, e lhe interpretava canções. “Lábios que beijei, mãos que eu afaguei”, canta ele com voz bonita e clara, ao se lembrar dessa influência familiar que lhe deu o ritmo e o compasso das palavras poéticas.

Na festa de São Benedito,
Espírito Santo, 1989


Ele também leu Machado de Assis e Lima Barreto pela vida, embora tenha parado de estudar ao fim do Científico e feito da fotografia, sua universidade. “Trabalho fisicamente com os entornos, com os desenhos. Vou guardando o que vejo, como fazia Machado, que me parece um fotógrafo enrustido. Sabe quando ele descreve a luz que entra pela janela e pousa com sensualidade no espaldar da cadeira? Eu queria escrever assim, mas pelo menos eu tenho ouvidos bons e adjetivo bem.” Ama escrever, mas não é apaixonado por ler: “Como nasce uma pessoa assim?” Um dia pretendeu ser cantor. E até padre, depois de assistir aos salesianos rezarem a missa em latim.

Ele tem 1,60m, mas sua perspectiva é a de um gigante. Um homem para o palco, dada a verve em dirigir o espetáculo, algo que a fotografia
lhe permite fazer sozinho. Ele só se entendeu vítima de racismo em 1967, quando, em Nova York, um colega de trabalho se pronunciou contra a presença de um “negro analfabeto” na sucursal da revista Manchete. Daí para o cabelo black power, de
protesto, foi um pulo. Começou no fotojornalismo porque aos 14 anos, quando se interessou pela Rolleiflex, folheava revistas como a “Life” na banca e via por ali florescer o poder imagético de um estadunidense negro como Gordon Parks ou de um europeu como Ernst Haas. Na revista “O Cruzeiro”, a estrela absoluta vinha do Piauí, de onde aliás partiu sua atual mulher, a doce Lili, 54 anos,
que o emociona há quinze, desde o instante zero em que se conheceram para um trabalho a ser feito no estado.

O Bumba-meu-boi em São Luís, 1994, para destacar as festas populares


Em “O Cruzeiro”, o fotógrafo piauiense a causar imensa admiração em Firmo era José Medeiros. À sua maneira, Firmo queria, como ele, desbravar, conhecer. Fotografou em preto e branco desde a entrada na imprensa, aos 18, no jornal “Última Hora”, até conhecer a obra do estadunidense radicado no Brasil David Drew Zingg, a quem chamava de “mestre” e dele ouvia, em resposta, a mesma qualificação. Zingg era a cor. E em revistas como “Realidade”, “Manchete”, “Veja” e “IstoÉ”, além de atuar por conta própria, Firmo fez da fotografia colorida sua marca sensível, dos retratos às celebrações populares. Muitos prêmios, o primeiro deles em 1964, o Esso pela série de reportagens “100 Dias na Amazônia de Ninguém”, que pautou, escreveu e fotografou para o “Jornal do Brasil”, e um cargo como diretor do Instituto Nacional de Fotografia, da Funarte, entre 1986 e 1991, que lhe deu extensa compreensão artística, tudo isto e mais o fizeram brilhar pela brasilidade. “Já estou pronto para virar enredo de escola de samba. Vai, Firmo!”

Vendedor de sonhos na praia de Piatã, em Salvador, durante a década de 1980

Em 1967, a seguir o repórter Muniz Sodré, fotografou Pixinguinha para a revista “Manchete”. Terminada a entrevista no interior da casa de Ramos, Firmo perguntou se poderia levar a cadeira de balanço do músico para o quintal. Colocou-a sob a árvore, deixou um retrato seu ao lado e fotografou o mestre na cadeira, primeiro de perfil, carregando o saxofone nas mãos, depois de costas, pose original de que ele gosta mais, a exalar a plenitude do santo. Ele santifica seus personagens, negros em sua maioria, com os quais passou à convivência, caso da cantora Clementina de Jesus, de quem nunca perdeu um sorriso.

Integrante da festa de São João,
em Cachoeira, no Recôncavo
Baiano, em 1975

De vez em quando, ele que se entende com “alma ternurinha” dá “o coice” e se impõe. É preciso saber ser duro como foi com o poeta João Cabral de Melo Neto, que não gostava de ser fotografado. Firmo esperou acabar a entrevista que ele dava a José Castello para colocá-lo à janela. E para que o poeta fosse até lá, disse firme, elevando a voz: “Embaixador!” João Cabral concordou prontamente, assim como fizera o artista Arthur Bispo do Rosário, que tampouco queria ser retratado. Em 1985, ele obedeceu a todas as instruções de Firmo sem dizer palavra, até posar diante de um agave que evocava suas chagas emocionais. Firmo também simulou a saída de Madame Satã, figura célebre que deixara a prisão em 1976, por uma abertura na porta de ferro de uma loja do Rio. Os pretos brasileiros foram glorificados em sua fotografia, que surgiu de uma cumplicidade além das palavras. Não importa em que inverno vivessem, Walter Firmo descobriu dentro deles um verão invencível.

A glorificação da negritude na Festa de Bom Jesus da Lapa, na Bahia de 2001

e a cara dura do cavalinho de Tróia de pau?

se eu rezasse toda noite, nesta iria agradecer à minha deusa por Lula existir, em primeiro lugar;

em segundo, mostraria minha gratidão por Lula ter aceitado entrar na disputa e ganhá-la contra tudo e todos, consequentemente nos livrando de mais vexames de verme, esse que mandou três ministérios liberarem as joias do “acerto” da venda da refinaria para os árabes e até o dia 29 de dezembro, mesmo com avião da FAB à espera, havia falhado;

em terceiro lugar eu guardaria uma reza aos funcionários da receita que, felizmente sendo estáveis, recusaram-se a liberar os bens tilintantes de 16,5 milhões não declarados, escondidos num cavalinho de Tróia de pau.

livrai-nos de toda a vergonha alheia, minha nossa senhora, amém!

“Carga residual”, a criação da extrema direita italiana para expulsar imigrantes ilegais

“Carga residual” é a expressão nascida neste governo italiano de extrema direita para qualificar quem não seja menor desacompanhado, mulher ou fragilizado a ocupar as embarcações de migrantes ilegais. Fica decidido, então, que a dita carga residual não possa ter atendimento em solo italiano em caso de naufrágio e deva ser extraditada de imediato.

Além disso, há cálculos para limitar o salvamento marítimo, numa franca oposição ao exercício humanitário de preservação de vidas.

Isto porque, como acredita a premiê Giorgia Meloni, as embarcações que socorrem imigrantes irregulares têm funcionado como “serviço de táxi” para que eles adentrem o território italiano.

Em um caso como o de hoje, no qual trinta pessoas, incluindo crianças, morreram no naufrágio que partiu ao meio uma embarcação a atingir Cortone, na Calábria, o raciocínio contorcido do governo vai culpar as ONGs pelo ocorrido. Isto porque, ao exercer o salvamento, elas sinalizariam aos futuros imigrantes ilegais a possibilidade de acolhimento.

Tudo isto é tão insano que deveria ser examinado por um organismo internacional pronto a punir comercialmente os estados violadores de direitos fundamentais. Mas, sendo o mundo o que é, o único direito assegurado nestes tempos é o de fazer o capital financeiro multiplicar-se acima das nações, o que implica diminuir populações indesejadas. Os miseráveis que esse capitalismo cria continuamente não podem mesmo ser atendidos, restando-lhes uma mal disfarçada solução final.

Um país em porções

Quando eu era criança, uma festa igualitária rolava no rádio. O ouvinte pertencente a qualquer classe social saberia existir naquele momento, fazendo música no Brasil, tanto Chico quanto Caetano, Gonzaguinha quanto Zé Rodrix, Waldyck Soriano e Bethânia, Rita Lee, Raul Seixas, Ivone Lara, Tonico e Tinoco, Originais do Samba, Clara Nunes, Gal, Moraes Moreira, Beth Carvalho, Roberto Ribeiro…

Sabíamos desses e de tantos outros! E o público para cada um e para todos encontrava-se nas intersecções.

Ontem peguei um uber no momento em que o gentil motorista de boné, situado na Band, acompanhava as dez canções mais pedidas do dia. Apurei meus ouvidos e nada. Nunca soube daqueles sucessos, de qualquer banda a interpretá-los, nenhum mísero nome de compositor!

Me dei conta então, dolorosamente, do quanto estamos separados nos últimos anos por esta indústria agro-cultural incessante… A atualidade que ouço, e ouço bastante, não está lá, embora mais que merecesse estar. Ela não entra na Bandeirantes, na rádio popular. Está escondida, sequestrada, inalcançável aos ouvidos gerais.

Somos mesmo um país aos pedaços, servido em porções.

Old but gold

Quando Madonna subiu ao palco para receber um prêmio, antes da pandemia, fez um belo discurso. Não sou fã incondicional dela, mas aprecio sua inteligência e o que disse fez bastante sentido pra mim.

Nunca foi fácil fazer o que fez sendo mulher, declarou. A um Prince ou um Bowie eram aceitas com aplauso certas atitudes e encenações, como a da sexualidade. Mas, nela, isto jamais coube como razoável. E precisou comprar a briga com o mundo para se expressar. De oportunista para baixo foi o que ouviu, além de ter lidado, no começo de sua vida em Nova York, com os candidatos a estupradores na porta de casa, quando destrancada.

Acompanhei Madonna como fenômeno desde o início e entendi o que disse, porque em certas partes de seu discurso ela falou pelas mulheres de nossa geração. No jornalismo brasileiro sofríamos quase igual, embora Madonna, por óbvio, tenha circundado as circunstâncias de forma espetacular.

A parte mais forte do discurso, para mim, foi aquela em que ela se disse vítima de uma nova perseguição diuturna, o etarismo. Aos 60 anos, ao contrário do que aconteceu com Bowie ou com astros do rock bem mais velhos, como Jagger, não lhe era aceito performar como estrela (e, pensei eu, namorar gente jovem também). Envelhecer aos olhos do público, fazendo o que faz, tornou-se um pecado mortal.

Acompanho seu Instagram e sei bastante do que ela mostra há alguns anos. Seu dia a dia carinhoso com os quatro filhos adotados, dançando e posando. Tem namorados cada vez mais jovens, pretos meninos, com quem vai à roda gigante no aniversário dos filhos, para às vezes passar muito mal. Suas dores nas costas inviabilizaram, alguns anos atrás, que ficasse confortável de pé, e ela precisou se exercitar na banheira a certa temperatura apenas para se mover.

Sobre suas plásticas, elas se sobrepõem há alguns anos, como aconteceu com Jane Fonda, e me acostumei com seu rosto novo, sempre muito maquiado e cuidadosamente posado. Nem me parece tão estranho quando o comparo ao de outras divas do público drag, como Amanda Lepore. Um rosto de estrela, digam o que quiserem.

A foto que fizeram dela no Grammy e tanto surpreendeu as pessoas é cruel. Uma tele que se aproxima demais com uma intenção. Ela está certa quando diz que essa lente distorceria qualquer rosto. Para mim, numa foto, sempre há um fotógrafo por trás. Quem é o autor em questão? Não sabemos. Boa tentativa, meu caro.

Mais uma vez, então, Madonna está certa ao dizer que o que querem tirar dela é ruim. Anulá-la, velha demais para o rock’n roll. Após os 45 anos, é como se a mulher não tivesse mais o direito de ocupar determinados palcos, especialmente se se comportar como não é de uso para uma senhora de certa idade. Qual o problema de ter o rosto modificado? Ela quer assim. Ozzy Osbourne também quis. Mas não, é como se ela, especialmente, não pudesse. Como se fosse inferior a nós ao manter essa louca pretensão de modificar-se, nós que sustentamos nossas rugas com orgulho, até carinho.

Quer saber? Gosto mais dela hoje, velha e insistente, do que antes. Estou cansada de saber o que o estrelato exige das pessoas. Plástica mal feita não me oprime. Aguardo seu próximo movimento. Viva e deixe viver.

free madonna

que bobagem condenar as minas pelas plásticas que fizeram.
as tatoos.
os piercings.
aceitem que todos nós uma hora ou outra usaremos máscaras, colares, maquiagem, chapéus, não necessariamente para suavizar a passagem do tempo…
e se for pra isso, qual o problema?
cada um tem o próprio jeito de ler a vida e contornar seus infortúnios.