(Uma história baseada em pura realidade)
Hugh Grant não aguentaria dez segundos neste tapete cor de sangue que é o Brasil.
Fui ao mercadinho vizinho de manhã antes da chuva sem levar guarda-chuva, a quarta vez que faço isto na semana e me molho, e me escorrego e quase caio no buraco da calçada que não dá pra ver.
Eu joguei pedra na cruz, é o que concluo. Eu sou como o Hugh Grant. Má. Mal-humorada. Sem paciência pro mundo e pra burrice. Eu mereço. Mas quem dera tivesse aquele talento encarnado que o Grant tem. Daria minha vida, sem nem ligar que o inferno chegasse depois. Tá ouvindo, deus?
Entro no mercadinho, pego as coisas que preciso levar e vou até a caixa livre. Ela está num conversê com a colega que arruma a prateleira.
A caixa é bem doida, notável por isso, fala o que vem à cabeça e acabou. Uma vez no auge da pandemia me mandou tirar a máscara para entender se eu queria crédito ou débito e não tirei. É doida mas jovem, mas magra, mas negra, linda de morrer, e não vou brigar com ela. A colega, nem tanto. Porém, bonita mesmo assim. Basta ser jovem pra ser bonita, dizia minha tia Alzira desde que completou 50 anos. E nem 50 tenho mais.
Essa conversa não para nunca? Bela nota que o ano está passando rápido. E que os jovens continuam morrendo todos os dias, metidos em drogas. Ela se pergunta: Depois de morrer, de que adianta tudo melhorar? Porém, vê uma esperança. Bela leu uma coisa no zap.
Bela leu que vivemos o pior dos tempos, razão pela qual ele vai voltar. Neste ano ainda!
Ai, meu deus, retiro o que pedi. Nem olho pra ela, pra não correr o risco de invocar o Grant Encarnado e lhe responder. Quero juntar tudo no balcão, pagar e sair correndo. Mas ela insiste na conversa e não registra as compras. É quando a colega Menos Bela pergunta, do nada:
– Pior dos tempos?
E me olha diretamente.
Fecho os olhos pra desaparecer, abro-os mas elas continuam lá, incansáveis de mim. Apertei o botão errado? A quantos metaversos tenho direito ainda? Três, um? Já! Respiro.
– Vejam bem – digo a elas, fazendo-me de velhinha multiplicada por seis. – Não é o pior dos tempos. Eu já nasci no pior dos tempos. Antes de mim, os tempos já eram os piores. Então, não se preocupem. Quanto custa o abacaxi?
Muita discordância naquele olhar de máscara abaixo do nariz. Mas estou no caminho certo. Pelo menos, Bela correu pra olhar o preço que pedi.
– São os piores tempos sim, são como eu disse, são como estava escrito! – Bela protesta.
É, não deu certo, então. Ela tem a força. Continua a se mostrar, a se impor ao mercadinho inteiro, como se seus peitos crescessem até as paredes.
De repente, sinto uma coceira nas costas e já sei de tudo. O Grant Encarnado baixou em mim, mesmo eu tendo implorado ao meu deus que não. Bicho sacana. Preciso dizer uma coisa rápida pra mudar o rumo da conversa e humilhar Bela, antes que Menos Bela sucumba e, com ela, o mercado, a cidade toda, o país e a humanidade inteirinhos.
– Tá certo, você tem razão, é o pior dos tempos – digo-lhe. – Mas quem é mesmo que vai voltar?
Vocês entenderam certo. Eu respondo perguntando. E essa pergunta ousada inicia o combate. A essa altura, Grant Encarnado já me toma pelos pés.
– Jesus! – Bela responde.
– Ele vai voltar, né? – assegura-se Menos Bela depois de informar o preço do abacaxi: – 10,50, senhora! Mas na semana passada juro que só custava 7!
É isso. Reclamo do preço e do Brasil, pronto, vai dar certo, não levo o abacaxi e saio correndo.
– Quando soar a última trombeta, o céu vai se abrir inteiro para Jesus passar! – volta Bela. – Vai ser maravilhoso, e vai ser logo mais!
É a guerra instaurada. A máscara infla com o sopro. Não aguentamos mais. Nem eu, nem Grant Encarnado.
– E Jesus vai descer como? Voando? – pergunto, Grant já preso em meu joelho.
– Sim, voando num cavalo branco! – responde Bela.
– Ah, mas não vai mesmo! – e mostro a ela meus punhos mentais.
– A senhora não crê na bíblia? – Bela retruca, desta vez suave, melíflua dos infernos.
– Isto não está na bíblia, meu bem, por favor leia direito…
E enquanto isto vago no metaverso dois. Bela nunca viu uma bíblia na vida. Nunca viu um livro. Ela acha que tudo o que existiu está escrito no zap.
– Nem na luz a senhora acredita? – me pergunta docemente.
– Na luz? Na luz, você diz? (Minhas bochechas arfantes). Acredito sim! Tá cara pra burro!
Meto as compras no saco. Saio correndo. De novo a chuva, de novo o bueiro, de novo o buraco. Meu chinelo ameaça navegar, mas isto nem é o pior. O pior é… Que botão verde aperto? O que faço com Grant Encarnado já agarrado na minha cintura? (Hum!). Preciso correr. No metaverso 17, é Verme contra Jesus. Só resta uma solução. Um tradutor para as massas. Um educador urgente. Lula, paim, venha correndo. Dê um jeito. Ensine essa gente depressa! Nos liberte, meu filho! Ou você vai nos deixar morrer fritos em dez dimensões?