Ao recuperar as cartas à noiva Felice Bauer, biógrafo expõe as apreensões do escritor e suas conquistas literárias de início
O sorriso, o chapéu coco, o insuspeito humor de quem provocara riso nos amigos ao ler o primeiro capítulo de “O Processo”
Em 1912, findo o réveillon, o escritor Frank Kafka (1883-1924) decidiu fazer um de seus costumeiros balanços de vida. Para tanto, escreveu as reflexões em seu diário, aquele que preenchia especialmente durante horas tranquilas, as noturnas, nas quais o silêncio parecia reinar na casa onde morava com a família, contígua à loja de produtos de luxo administrada pelos pais e irmãs, em Praga. Tinha 28 anos. Trabalhava pela manhã numa corretora de seguros, descansava à tarde, estava a um ano de escrever “O veredicto”, o primeiro texto a concretizar sua concepção literária, e pensava que o insucesso amoroso não poderia atormentá-lo mais. “Quando ficou claro em meu organismo que a escrita era a tendência mais produtiva do meu ser”, escreveu, “tudo o mais acorreu ao seu encontro, esvaziando todas aquelas capacidades que, de início, dirigiam-se para as alegrias do sexo, da comida, da bebida, da reflexão filosófica e da música”.
É quase certo que Kafka tivesse um organismo literário, por assim dizer. Mas por que a literatura excluiria necessariamente sua realização no amor, ainda mais naquele momento em que mal pusera seus escritos à prova pública? O motivo não seria religioso, considera o biógrafo alemão Reiner Stach em “Kafka: Os anos decisivos” (Todavia). Neste livro extenso, tantas vezes primoroso, a revirar com clareza erudita até mesmo a necessidade de as biografias existirem, considera-se que o fracasso literário não é uma opção para Kafka, enquanto o amoroso, ele talvez pudesse suportar. Um escritor, ele dizia, nunca estava suficientemente sozinho para escrever. De modo a continuar produzindo com energia, até mesmo contra a birra do pai, que não queria vê-lo dormir depois do almoço, ele poderia encontrar qualquer desculpa interior, fosse contra o amor ou contra o consumo de café e carne, embora a realidade às vezes teimasse em contradizer essas determinações.
Felice Bauer, a primeira noiva
Pouco depois de avaliar que a paixão seria inalcançável para ele, uma vez que seu “organismo” nascera para a escrita, Kafka se enredou amorosamente de forma quase inexplicável por uma trabalhadora doce e obscura de classe média, Felice Bauer, mais interessada na obra do dramaturgo August Strindberg que na dele próprio, e dedicada à família de maneira profundamente compulsória, mais do que a si mesma. Ela era próxima do amigo Max Brod, um dos solteiros de seu grupo social de escritores (e aquele que, além de escrever sua biografia, recusaria o pedido do amigo para que queimasse seus originais). O envolvimento de Kafka com a jovem distante, moradora em Berlim, acabou por consumir muitos daqueles momentos de impulso criativo que ele esperava reservar para a escrita. O autor de “A Metamorfose” não parecia mesmo caber na autoimagem de celibatário infeliz.
Esta biografia dos anos iniciais, que se faz a partir do espólio de Felice, descoberto por Reiner Stach nos Estados Unidos, inclui as cartas do escritor à amada (sem o contraponto das respostas de Felice, que Kafka destruiu), sempre entremeadas pela crença segundo a qual, para segui-lo, sua noiva deveria se prontificar a viver o inferno em vida. O raciocínio de Kafka, explicitado até mesmo ao pai dela, era simples, e caminhava pelo entendimento pequeno-burguês enraizado em seu meio social. Seria possível compartilhar o leito com quem não via outra razão para a existência exceto escrever, ademais sem ganhar dinheiro suficiente para isso?
O biógrafo Reiner Stach, com o ímpeto de historiador cultural
O biógrafo Stach, de 71 anos, é treinado no entendimento literário, filosófico e matemático. Seu poder de investigação parece infindo, embora ele veja no leitor médio o seu objeto, razão pela qual, ao escrever, jamais ceda à obscuridade. Como historiador cultural, Stach considera não apenas os fatos que cercaram a vida do escritor judeu em língua alemã na antiga Tchecoslováquia, mas também o conceito de sucesso e de fracasso literários naquele palco onde Kafka, em busca de concretizar sua visão, desconsiderou a gravidade da Primeira Guerra Mundial (é celebre a entrada em seu diário na qual diz ter ido nadar à tarde depois de decretado o conflito de manhã), distanciou sua literatura do sionismo militante praticado pela figura controversa de Brod e exerceu o humor aprendido no teatro iídiche mesmo em textos improváveis de sua autoria, como “O Processo”, cujo primeiro capítulo ele lera habilmente em voz alta de modo a provocar a risada dos amigos.
O flerte obsessivo com Felice foi uma prova muito dura. No verão de 1912, deu-se seu encontro com ela, e a difícil decisão de cortejá-la de maneira quase totalmente epistolar. Dois anos depois, aconteceu o rompimento do noivado. Nas duas vezes, diz seu biógrafo, Kafka sentiu estar sendo empurrado para a margem de sua própria existência. Nas duas vezes, ele mobilizou uma poderosa vontade de entrar nos moldes para combater a dissolução mental. Stach compreende estar lidando com uma mente poderosa e não busca rivalizar com ela, antes compreendê-la, algo seguro de que vai fracassar. Ele sabe que tudo o que percebe, Kafka aplica no que escreve, às vezes composições inteiras primeiramente deitadas nos diários que vão se tornar pequenos livros. Seu biografado está imbuído da perfeição, ciente de que sua missão é distinta de todos à volta, até mesmo do escritor Robert Musil, que o aceita no meio literário com reservas. Kafka era único no que fazia e podia provar.
Os melhores momentos da biografia situam-se na constatação da diferenciação deste saber. O que torna Kafka tão distinto de todos os artistas que o cercavam? Não era somente sua linguagem direta, enxuta, moderna, que certa vez obrigou um editor a aumentar o tamanho dos tipos e o entrelinhamento das páginas para apresentar ao mercado literário um volume de tamanho razoável contendo seus textos. A grandeza de Kafka estava no entendimento total que ele tinha de uma situação antes de relatá-la. Ao contrário do romancista polonês de língua inglesa Joseph Conrad (1857-1924), por exemplo, que certa vez disse ter construído a protagonista Winnie Verloc, de “O agente secreto”, a partir de observações coletadas ao acaso, Kafka começa a produzir a partir de um reservatório de ideias “que já está cheio”.
“A Metamorfose”, longe de ser seu livro predileto
Em seus diários, pode-se ler a evolução dos pensamentos que vão resultar em um futuro texto. Os diários comprovam que os campos de tensão, as metáforas, os gestos e os detalhes já estão prontos, frequentemente até na forma exata que terão no futuro. “Kafka não trabalha o abalo sofrido, ele trabalha o material acumulado que foi liberto pelo abalo”, observa Reiner Stach. “Assim se explica que as referências e associações entre os elementos visuais e linguísticos de seus textos tenham uma densidade tão única e desafiadora. Tudo parece corresponder a tudo. É como se Kafka não precisasse inventar ou desenvolver mais nada e pudesse usar toda a sua força criativa na integração, na perfeita articulação de todos os componentes.”
Mais que isso, ele constrói uma tensão que não será resolvida pela saída tradicional, a morte. A tensão em Kafka provém de uma perspectiva inusual para seus contemporâneos. É uma perspectiva que expõe apenas o que está dentro do horizonte de percepção do protagonista. O leitor entra em um estado de identificação cada vez mais forte com esse personagem, como se estivesse “sob o efeito de um campo gravitacional”, no dizer de Stach. É o caso de “A Metamorfose”, um texto que Kafka escreveu enquanto permanecia obsedado pela conclusão de outro texto, “O desaparecido”, e que não sentia a menor urgência em editar, tão espontâneo fora escrevê-lo e concluí-lo. “A Metamorfose” nascera da sensação de que nem mesmo sua única confidente, a irmã Ottla, aceitava sua necessidade de se distanciar de um empreendimento familiar, uma fábrica de amianto na qual a família desejava ter seu empenho, justamente nas horas vespertina de descanso. Ele chegara a um ponto de desvalorização pessoal sem volta, como uma barata pisada, conformada com seu destino. Kafka sempre quis ser publicado, mas jamais desejou aparecer. Especialmente, aparecer com este livro foi uma espécie de fim.
Esta resenha foi publicada originalmente pelo site do caderno Aliás do Estadão em 11 de janeiro de 2023
Ganhei da amada Lulina no meu aniversário. Demorei pra engrenar, embora seja tão direto e simples. Descrever o aborto, comparar o exame da gravidez com o da aids, essa secura, essa distância, irrelevância, tudo isso que nos torna humanos, esse exercício existencial pra nos fortalecer, é difícil, mas feito sem assumido desejo de perfeição, sem rancor. Tão bonita essa ilusão, tão francesa. Annie Ernaux acaba de ganhar o Nobel de Literatura, porque a autoficção nasceu pra vencer. Neste livro, a cada golpe corresponde uma tranquilidade. Um mar de sangue em que há uma ilha de sal. A tradução de Isadora de Araújo funcionou pra mim como um dez.
Às vezes sinto que Kafka vive em mim. Hoje, por exemplo. Enquanto me encontro à espera da eleição para presidente do Brasil, amanhã, abre-se no meu colo esta narrativa de traduzida por Modesto Carone e incluída no primeiro livro do grande escritor, “Contemplação”, de 1912. Com vocês, “Para a Meditação de Grão-Cavaleiros”:
Franz Kafka aos 22 anos, em 1905
Para a Meditação de Grão-Cavaleiros
Nada, pensando bem, pode induzir alguém a querer ser o primeiro numa corrida.
A glória de ser reconhecido como o melhor cavaleiro de um país é um prazer forte demais — no momento em que a orquestra dispara — para que na manhã seguinte seja possível evitar o remorso.
A inveja dos adversários, gente mais astuta, bem mais influente, tem de nos doer na estreita ala através da qual agora cavalgamos depois daquela planície que pouco antes estava vazia à nossa frente, com exceção de alguns cavaleiros arredondados que faziam carga, pequenos, contra a fímbria do horizonte.
Muitos dos nossos amigos correm para retirar o prêmio e só por cima dos ombros é que nos gritam dos guichês distantes o seu hurra!; mas os melhores amigos não apostaram em nosso cavalo, temendo que, em caso de perda, tivessem de ficar zangados conosco; agora porém que o nosso cavalo foi o primeiro e eles não ganharam nada, dão-nos as costas quando passamos e preferem olhar ao longo das tribunas.
Firmes nas selas, os concorrentes atrás de nós procuram avaliar a desgraça que os atingiu e a injustiça que de algum modo lhes foi infligida; assumem um ar bem-disposto como se fosse preciso iniciar uma nova corrida, agora séria, depois desta brincadeira de criança.
Para muitas damas o vencedor parece ridículo, porque ele se enfatua e no entanto não sabe o que fazer com os eternos apertos de mão, continências, mesuras e cumprimentos à distância, enquanto os vencidos mantêm a boca fechada e, absortos, dão palmadas nos pescoços dos seus cavalos, que na maioria relincham.
Finalmente do céu que ficou turvo começa a chover.
Nesta reportagem publicada em 21 de agosto de 2008, Lygia Fagundes Telles fala sobre o roteiro feito em parceria com Paulo Emilio Salles Gomes, relançado em livro, que muda o foco narrativo de “Dom Casmurro”
Os diretores de cinema apareciam de mochila nas costas para visitar Lygia Fagundes Telles e Paulo Emilio Salles Gomes naquele ano de 1967. Ela era, como é ainda, uma das grandes escritoras do Brasil, e ele desfrutava o título de maior crítico de cinema em terras nacionais. A Vila Mariana onde moravam, dizia Paulo Emilio, fora um charco originalmente, e por esta razão ele apelidara seu apartamento paulistano de Sapos. Um dia, o diretor Paulo César Saraceni chegou ali munido não só de mochila, mas de um olhar oblíquo e dissimulado. Com ele, Saraceni os convenceria a transformar em roteiro de cinema o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.
“Este Capitu nos deu uma tarefa difícil”, disse Paulo Emilio a Lygia, quando Saraceni, em quem ele vira aquele olhar da protagonista do livro, deixou Sapos para trás. O casal não começou imediatamente a trabalhar na adaptação do romance de 1900 no qual Bentinho, apelidado dom Casmurro, desconfia que sua amada o trai com o amigo Escobar. Seria preciso convencer Lygia de certas coisas antes, ela que era formada na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e fazia julgamentos a partir de evidências.
Quando leu o livro de Machado de Assis pela primeira vez, ainda universitária, Lygia se convencera de que o protagonista era um homem “inseguro e invejoso”, desmerecedor de confiança, ainda mais porque não outra voz, além da sua, falava no romance. Na segunda leitura, contudo, ela mudaria o pensamento por completo. Sim, Capitu seria a amante de Escobar. Ele era um homem muito mais atraente do que Bentinho, para começar. E havia alguns “indícios jurídicos” muito fortes a serem considerados pela escritora para que ela estabelecesse a culpa deste Leviatã.
Em uma cena do livro, Bentinho se cansa do espetáculo de teatro a que assiste, volta para casa e lá está Escobar com Capitu. Não havia motel para encontros naquele tempo, então é claro eles faziam ali o que não poderiam fazer em outro lugar. Depois, havia outra coisa. O menino Ezequiel, embora exímio imitador de todos, remedava perfeitamente Escobar, o que fora notado por ninguém menos que a própria Capitu. O velório de Escobar, por fim, sepultara qualquer chance de redenção à mãe de Ezequiel. Dona Sancha, a viúva, chorara tanto na ocasião quanto a traidora. As lágrimas de Capitu formaram mais um daqueles mares de ressaca, capazes de arrastar um observador, dois ou três, para dentro de si.
Estas certezas todas, apresentadas com eloqüência de advogada já na rua Sabará onde os dois passaram a morar, deixaram incrédulo o marido da escritora. Paulo Emilio era um grande professor, mas, se entrasse nesta discussão à maneira de Lygia, não convenceria a talentosa mulher de seu ponto de vista. O negócio era agir como padre: “Você precisa se limpar, você não pode julgar Capitu”, disse ele a Lygia, certo de que as provas que ela acumulara se mostrariam inúteis. O que ele pregou à esposa no momento seguinte a convenceu em definitivo: “Se o triângulo amoroso existe ou não, isto não interessa a você. Tem de haver a dúvida, ou haverá traição a Machado de Assis.”
O escritor narrara para intrigar, e teria esclarecido a trama ao final, fosse esse o seu desejo de ficcionista. O que ele parecia almejar, contudo, era que ficássemos discutindo aqui por longo tempo sobre um enigma maravilhosamente urdido e sem solução. Tão essencial é este livro que Lygia, por exemplo, tem-no como o primeiro de Machado, seguido de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. É uma tendência que de certa forma a Universidade de São Paulo segue: Dom Casmurro como a melhor fabulação, Memórias, como a experimentação maior.
Se não poderia culpar Capitu em seu roteiro, Lygia enfocaria o sofrimento terrível de Bentinho. Que outra coisa faz este personagem dentro do livro, a não ser penar? O roteiro seria, neste ponto, sobre o sentimento de ser traído, não sobre a traição. E seus autores fariam mais uma coisa interessantíssima, ousadíssima, para falar na língua de superlativos do agregado José Dias: anulariam o foco narrador. No roteiro, não é Bentinho quem conta a história. É um terceiro que urde a trama, iniciada na lua de mel de Capitu e contada livremente pelo tempo de vida dos personagens.
Nascido desta escolha, o livro que originou filme homônimo de Saraceni em 1968 resulta suave, mas intrigante. E é capaz de impacientar quem aguarda respostas claras ou anseia sempre pelo ponto de vista roubado. Goffredo Telles Neto, o filho de Lygia, morava com ela e Paulo Emilio naquele ano de produção crucial, e tomou as folhas datilografadas por Lygia para saber o que tanto elas tramavam. O Jovem, como o apelidara Paulo Emilio, leu e ficou sem entender aonde a escritora queria chegar. “Mamãe, dá sua opinião de uma vez! Ela traiu ou não?”, ele a inquiriu. E a autora foi sincera com o filho: “Eu não sei, eu não sei!”
Lygia tem 85 anos. Para ela, ainda hoje, a traição é “a dor maior”. Os tiros que de vez em quando os ciumentos desferem sobre as namoradas, segundo ela tem notícia a partir da leitura “destas revistas”, ainda prosseguem acontecendo. Seu ponto de vista, portanto, parece validar-se todos os dias. A traição incomoda. É eterna, enquanto o homem é breve. Paulo Emilio morreu em 1977 e o único filho de Lygia, Goffredinho, há dois anos. Lygia entende de que o sofrimento trata.
Ela dá entrevista no apartamento que habita há um bom tempo nos Jardins paulistanos, em cuja entrada há palmeiras imperiais. As palmeiras são bonitas e resistem à poluição, aos carros que buzinam, à gente que passa, vinda da rua Oscar Freire chique. Lygia não arreda pé dali, apenas para eventos aos quais os amigos insistem em convidar. O livro “O Demônio do Meio-Dia – Uma Anatomia da Depressão”, de Andrew Salomon, ainda repousa em um canto de sua sala, mas parece não se relacionar à pessoa que dá a entrevista.
A escritora é pessoalmente assistida pela neta, a professora de português Lúcia Telles. Aos 29 anos, Lúcia trabalha sobre cartas de Paulo Emilio para um mestrado. E ajuda Lygia em tudo, até quando uma palavra lhe falta. A certa altura da conversa com a CartaCapital, sugere à avó que catequisar é o vocábulo certo para designar quem deseja transmitir a mensagem cristã. Com a neta ao lado, Lygia está bem. Ela liga a televisão minúscula onde a avó assiste a Ciranda de Pedra, uma novela que a diverte, sem qualquer relação com seu romance de 1954, segundo Lygia sabe muito bem. Ela também sorri, e fala como atriz, ao invocar seu muito querido Machado de Assis e a própria literatura. Queria tanto que seu Capitu fosse filmado de novo!
Está indignada, por ora, que a imitem e ainda cometam a ousadia de lhe mandar os originais com as imitações para ler. Rubem Fonseca lhe contou que isto também vem acontecendo com ele. A literatura de Lygia é inconfundível, forçoso notar que não a imitariam direito. Ela tem um conto que o filho não teve tempo de filmar, Potyra, sobre um vampiro que deseja morrer no Brasil. Quem sabe, entre os contos e o romance novos que prepara, não caiba uma roteirização desta peça ficcional, em companhia da neta constante?
Esta escritora se diverte, apesar de tudo. Eleva a voz como uma atriz e pontua com graça as frases perfeitas. Está lúcida e grande, e seu olhar ainda encara o interlocutor como quem o arrasta.
O escritor e produtor de cinema narra com especial humor sua sina no desenho brasileiro
A bela, fluida e bukowskiana autopornografia de Otto Guerra
Dos livros lindos que recebo.
Você lê esta autobiografia do desenhista e produtor de cinema Otto Guerra de uma sentada só (ops).
“Nem doeu (autopornografia)” prova o que o seu humor fluido-surreal-alucinante porno-bukowskiano pode fazer por nós num país tão desgraçado quanto este.
Podemos rir!
Mas não rimos dele só porque somos maus. Rimos porque a saga deste escritor nem difere da nossa tanto assim.
E porque podemos, estimulados pelo homem, quebrar realmente tudo.
A editora do novo livro de Otto Guerra é a Mmarte (mmarteproducoes.com) e os editores, Márcio Jr e Márcia Deretti.
Não sei se acontece com vocês. Mas eu sou do tipo devagar. Demoro a perceber que realmente não sou bem quista em certos ambientes. Devo achar, por alguma razão misteriosa, talvez fundada em minha educação, que mereço ser considerada sempre. E quando acontece de os laços se desfazerem inequivocamente, fico impressionada. O susto demora a acalmar.
Acontece no trabalho. Na vida com amigos. Aconteceu nos namoros. Por que não percebo e não dou no pé? Acho que sempre vão me chutar antes.
Uma vez foi exatamente assim com Mário Vargas Llosa. Nunca fui fã do homem. E o escritor… eu preferia todos os latino-americanos antes dele. Adorei a análise que fez de Flaubert. De Madame Bovary. Reconheceu-se nela, mesmo sem o dizer. Escreve bem porque lê bem. Mas é isto. Pra mim, falta um toque pra me alcançar como leitora.
E então aconteceu de eu ir entrevistá-lo. Nem estava a fim. Tinha medo daquela figura, do seu cabelo liso, dos dentes. Ele começava a falar pelos cotovelos na imprensa elogiando os Tigres Asiáticos. Toda aquela sorte de bobagens partida do escritor-candidato. E então pensei: se eu conseguir que ele seja honesto comigo, vai ser bom, não vai? Vou gostar, não vou?
E fui. O problema era que eu trabalhava no JT. E ninguém no mundo editorial morria de vontade de frequentar aquelas páginas. A editora já tinha escolhido os quatro de sempre, Veja, Estadão, Folha e Globo, a quem ele concederia as entrevistas brasileiras. Mas uma boa alma na assessoria decidiu, talvez por eu ter feito algumas boas entrevistas antes, que eu poderia pegar o táxi com ele até o aeroporto.
No táxi? Tá bom. Pelo menos seria uma entrevista diferente. Perguntei-lhe o que pude, literariamente falando. Me lembro de ele gostar de trocar ideias sobre Melville, sobre Moby Dick. Conversávamos até animadamente quando de repente eu cheguei com os Tigres, uma pergunta que Renato Pompeu me ajudou a formular. Sua mulher o tempo todo olhava pela janela, o cabelo pintado de preto, os grandes óculos de mesma cor. Mas ué, o Llosa não gostava das bonitas? Não brigou com Garcia-Marquez por isso?
Claro que não perguntei sobre a desavenças com seu antigo amigo, nem sobre suas preferências femininas. Mais sóbria que eu, naquele momento, impossível. Mas depois dos Tigres ele se calou.
Chegamos ao aeroporto e continuei ao lado deles. Achei que pudesse retomar o fio. Até que a repórter fotográfica que fazia o papel de acompanhante/assessora, pelo lado da editora, olhou pra mim e berrou: “Não tá vendo que tá importunando? Dá o fora!” A mulher era (ainda é) um cão. (Depois soube de outras pessoas parecidas na fotografia. Logo na fotografia, que amo.)
Dei o fora.
Me lembro do casal imperturbável. E que ele, de costas, tinha um redemoinho no cabelo.
Anos depois, um amigo peruano de meu filho, também conservador, me disse algo que não me saiu da cabeça. O problema com Llosa é que ele “fala pelas feridas”.
Adorei ouvir. E me reconciliei de imediato comigo. De quebra, tive pena da pobre moça que me agrediu.
Preciso de muitos insights assim para curar eu mesma minhas feridas – e não falar por elas. Demora, né? Mas eu consigo. Vou conseguir.
Na guerra, na escrita ficcional, no ensaio literário ou na tradução, este grande pensador, morto há cinco anos, negou a covardia
Boris Schnaiderman durante entrevista que realizei com ele em 2011, registrada pela fotógrafa Olga Vlahou: um sorriso sempre
Neste 18 de maio de 2021, completam-se cinco anos desde a morte do crítico, escritor e tradutor Boris Schnaiderman, que hoje teria 104 anos. A seguir, reúno o obituário que escrevi em 2016 à entrevista realizada no ano anterior em torno de seu último livro, “Caderno Italiano”.
Em foto de Olga Vlahou, o professor Schnaiderman, sua esposa Jerusa e esta jornalista, há dez anos
POR ROSANE PAVAM
O sorriso brasileiro, a alma russa, uma doçura no trato, a rara retidão. Morto em decorrência de pneumonia um dia após completar 99 anos, numa quarta-feira, dia 18 de maio de 2016, em São Paulo, Boris Schnaiderman viveu de traduzir. No título de um livro lançado em 2011, equiparou seu ofício a um “ato desmedido”, este para o qual, com modéstia peculiar, nunca se via pronto, embora o entendesse necessário, exigente de sua ousadia. Não somente verteu ao português os clássicos da literatura russa, libertando-a das más versões anteriores, como, por seu gosto e humor, preferiu exercitar a “tradução vivida”. Um ser humano, dizia, existe para traduzir aquilo que caminha em seu íntimo. E o tradutor deve ser um ético, um fiel, a quem não competirá desfazer do texto alheio, ainda que confuso. “Antes o obscuro que o óbvio, o frouxo”, proclamava, numa citação a Guimarães Rosa.
Tinha princípios e lutava por eles. Nos anos 1940, após a entrada do Brasil no grande conflito mundial, deu-se conta, sem o apoio dos pais ou dos amigos, que era preferível lançar-se à óbvia guerra, temeroso dela, do que acovardar-se na frouxidão. Não somente a terra a acolher sua família fugida dos pogroms, nos anos 1930, merecia sua batalha, como toda a humanidade. Na Itália, Schnaiderman lutou pela democracia, enquanto no Brasil havia a ditadura. E ele, que condenava todos os autoritarismos, até mesmo os atuais, vivia de inconformismo por saber que as duras batalhas da FEB eram ridicularizadas. “As pessoas não se lembram de que o Brasil participou da Segunda Guerra.” No ano passado, lançou Caderno Italiano, no qual deu sua visão dos combates, desta vez intitulando os combatentes, sem mesclá-los ficcionalmente como fizera em um dos mais belos textos da literatura brasileira, Guerra em Surdina.
Nos últimos tempos, revia suas traduções e esboçava as memórias da infância ucraniana, aquelas que lhe permitiriam contar a vida a partir de suas andanças em Odessa e seu testemunho, aos 8 anos, das filmagens de O Encouraçado Potemkin. Alguns meses antes de morrer, ainda tomava sua cachaça, recolhia a correspondência por baixo da porta, andava acompanhado pela Higienópolis onde morava e silenciava, os olhos sorridentes, diante de tudo o que lhe dissesse, com inteligente formosura, a esposa Jerusa Pires Ferreira.
A seguir, a íntegra da entrevista realizada com o escritor e professor em sua residência paulistana na tarde do dia 4 de setembro 2015, por ocasião do lançamento de Caderno Italiano.
Por cerca de uma hora e meia, Schnaiderman falou com calma e pausadamente, empenhado em ressaltar a participação brasileira na guerra. Sentado em uma cadeira na sala repleta de livros de seu apartamento, não se recusou a responder uma pergunta sequer.
Meu filho Bernardo Tagliari, Boris Schnaiderman e eu em foto que Carol Carquejeiro realizou durante a última entrevista que o professor me deu, em setembro de 2015
“Caderno Italiano”, seu novo relato sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra, tem o formato documental, ao contrário de “Guerra em Surdina”, de 1964. Quanto tempo de escrita o novo livro lhe tomou?
Pouco tempo. Cerca de um ano e meio. Quando escrevi Guerra em Surdina, havia limitações. Certas pessoas ficariam muito ofendidas, outras viriam a público desmentir o que escrevi. E coisas assim bem desagradáveis. Mas agora, passados esses anos todos, quase todo mundo já morreu, não há mais impedimento. E eu resolvi vir a público principalmente porque está tudo muito esquecido. Demais. Demais. As pessoas não se lembram de que o Brasil participou da Segunda Guerra Mundial. Os jornais noticiam quando há as datas e tal, mas o povo de modo geral esqueceu. Era uma contradição lutar pela democracia lá fora enquanto havia ditadura aqui. Fiquei perplexo porque esperava um desastre completo desta participação brasileira. Os soldados não tinham motivação para lutar. No entanto, lutaram. Uma coisa estranhíssima. Desempenharam muito bem, quando parecia que tudo iria resultar num desastre. E não.
Foi difícil tomar a decisão de participar dessa guerra?
Eu quis lutar. Foi antes ainda da minha convocação, não é, a minha vontade de ir para a guerra. Eu estava completamente arrasado com as notícias que chegavam da Europa. Já se sabia daquilo que depois chamariam de holocausto, aliás um nome muito inadequado para o que houve. A palavra holocausto significa o sacrifício a uma divindade. E esse sacrifício era em prol do quê? Não tinha um objetivo. Então, o nome me parecia completamente inadequado. Aliás, na França houve todo um movimento de intelectuais contra a designação desse massacre como holocausto.
Como o sr. avalia a participação brasileira na Segunda Guerra?
Fiquei perplexo porque esperava um desastre completo. No entanto, os brasileiros se saíram bem, realmente bem. Agora vêm essas conversas de que afinal de contas era uma linha de frente secundária, nem Stalingrado, nem o desembarque na Normandia… Tudo bem, mas não tinha nada de secundário naquele combate! Afinal de contas, um exército alemão foi imobilizado na Itália, uma coisa importante. Aliás, o fato de existir uma frente na Itália facilitou o desembarque aliado na Normandia.
A FEB teve algumas derrotas. O primeiro ataque ao Monte Castello resultou num fracasso completo, mas houve poucos insucessos. Incrível o que se conseguiu. A tomada de Montese, em abril de 1945, foi uma coisa extraordinária. Quer dizer, eu só participei calculando tiro. Mas os homens da infantaria lutaram de rua em rua e de casa em casa. Não se pode diminuir isso de modo nenhum. Eu continuo perplexo, sem compreender bem como foi possível que o combate se desse. Aqueles homens falavam mal da guerra, diziam que Getúlio Vargas tinha sido enganado pelo ministro Oswaldo Aranha, que nós havíamos sido vendidos por dólares (e era verdade). Eles tinham consciência disso, no entanto lutaram. Uma surpresa para mim.
A grande maioria dos soldados era da camada mais pobre da população. Os estudantes foram à rua pedir guerra na avenida, tal, mas na hora do vamos ver, eram bem poucos lutando. Havia alguns estudantes, claro. Eu fiz parte da Central de Tiro. No meu grupo de artilharia, havia vários estudantes convocados. Tínhamos uma situação concreta. Eu era um pacifista convicto, mas me convenci de que era necessário lutar.
Os soldados de divisões diferentes eram tratados de maneira semelhante por seus superiores durante a guerra?
Na artilharia, a diferença entre o soldado e o oficial era muito mais sentida. Na infantaria, a relação entre soldados e oficiais era muito melhor. Na artilharia, havia assim como que uma barreira entre os oficiais e os praças. Uma coisa que vem de longe, não é? De uns se acharem superiores aos outros. Não vinha de alguma especialidade exigida de quem calculava. O cálculo de tiro era uma função como outra qualquer.
Em“Caderno Italiano”, o sr. menciona uma discriminação importante no exército americano. Como a percebia?
No exército americano, havia um racismo entranhado. E no nosso, não. Os americanos nos diziam: “Vocês é que estão certos. Brancos, amarelos, negros, mulatos, todos misturados. Vocês é que têm razão! Mas nós não podemos. Nós não conseguimos. Para nós, negro não é gente.” Uma coisa terrível. Estivemos muito em contato com a oitava divisão negra americana, mas nessa divisão negra americana os oficiais eram brancos. Isto por si acarretava uma situação deprimente para nós. Admiro muito o escritor Rubem Braga. Gosto muito das crônicas de guerra dele, porque conseguiu captar com muita sensibilidade as situações humanas. Mas ele não menciona a questão racial no exército durante a Segunda Guerra. Nunca conversei com o Rubem Braga sobre isto. Só o vi uma vez, de longe, durante os combates. Eu fui o primeiro a calcular um tiro de artilharia na minha divisão. E o Rubem Braga estava lá para ver.
Tem certeza de que o cálculo de artilharia era uma coisa simples de fazer?
Muito simples, bastante simples. Era um cálculo feito na base das curvas de nível. Eu ficava diante de uma prancheta. Nela, estava o mapa da região, com as curvas de nível. E o cálculo era feito na base dessas curvas. Não usava réguas de cálculo, calculava no papel mesmo. O exército brasileiro teve toda uma formação pela missão francesa que veio ao Brasil. Nossa organização era baseada no exército francês. Mas depois fomos incorporados ao exército americano e tudo mudou. Em tempos de paz, no Rio de Janeiro, fomos treinados para usar o canhão de 75mm, adotado pelos franceses. E nesse sistema era o capitão comandante da bateria quem fazia os cálculos. Quando fomos incorporados ao exército americano, eles passaram a ser feitos por uma central de tiro. Um grupo de sargentos e cabos, comandado por um capitão, calculava. Mas no nosso sistema, o francês, éramos nós mesmos a fazer esses cálculos. Os americanos trabalhavam sob uma organização quase empresarial. A gente foi preparado de um modo no Brasil e deparou com tudo diferente na guerra. Fomos aprender lá mesmo. Improvisando.
O exército brasileiro oferecia a possibilidade de leituras aos soldados nos intervalos dos combates? O sr. escreveu cadernos naquele período?
Nós recebíamos alguns livros, sim. A Legião Brasileira de Assistência, organização presidida pela mulher do Getúlio, oferecia livros. Poucos, geralmente. E era muito individual, isso: ela ajudava uns, não ajudava outros. Por meio desses livros pude me interessar por Alphonse Daudet, para depois me decepcionar com suas posições, que conheci mais tarde. De Knut Hamsun, eu também gostava muito, e novamente só depois soube que aderira ao nazismo. Fiquei perplexo com as posições do Daudet, com o que aconteceu com o Hamsun.
E eu não conseguia escrever durante a guerra. Comprei um caderno e fiquei anotando umas coisas, mas por muito pouco tempo. Não valeu de nada.
Nem desenhei. Sou muito ruim de desenhar.
Pode não ter valido nada naquele momento, mas valeu depois, por certo.
Acho importante contar o que aconteceu. Acho importante lembrar. As pessoas saberem o que foi. Um livro sobre os acontecimentos não é uma coisa fácil de ser feita. Guerra em Surdina, eu levei muito tempo para colocar no papel, saiu 19 anos depois de eu ter voltado da guerra. Eu tentava e não vinha nada. A ideia era escrever assim que o conflito acabasse, mas eu não conseguia. Eu tinha lido muita literatura de guerra, mas minha experiência era completamente diferente de tudo o que eu havia lido.
O sr. sente falta de escrever ficção? “Guerra em Surdina” é um dos mais belos romances da literatura brasileira.
Uma tentativa de romance… Eu sempre quis fazer ficção. Mas não sou ficcionista. Minha autobiografia me arrasta mais.
Sua infância não valeria um livro?
Tenho vontade, sim, de escrever sobre a infância. Estou escrevendo agora. Eu tive esta sorte. Estou com 98 anos e continuo capaz de fazer as coisas. Então houve essa vantagem. Estou tentando contar minha vida desde a infância. Estou tentando, mas é muito difícil, porque aparece o problema, não é? Mostrar o podre das pessoas ou não mostrar?
O sr. deve ter muitas histórias a oferecer, como aquela em torno de seu testemunho sobre um clássico do cinema, aos 8 anos.
Acho que sou o único sobrevivente das filmagens de O Encouraçado Potemkin. Todo mundo morre. As pessoas foram morrendo e eu sobrevivendo. Talvez seja o único sobrevivente daquela cena. Isto foi em 1925. Em Odessa, onde eu vivia. Acontece que as crianças em Odessa tinham muito mais liberdade e circulavam muito mais pela cidade do que as nossas. Não havia quase trânsito. As potências ocidentais estavam bloqueando a Rússia, quase não circulavam carros na cidade. Só os veículos coletivos. Agora, automóveis particulares, não havia. Simplesmente não havia.
Então existia muito movimento pelas ruas. Eu andava pela cidade toda. Gostava muito daquele espaço da escadaria de Odessa, entre a parte alta e o porto. E uma vez eu estava sozinho na escadaria quando vi um movimento estranho. Era a filmagem do Encouraçado Potemkin. De repente, aqueles homens atiravam os chapéus para o alto… E apareciam aquelas mulheres com umas toaletes que não se usavam mais, muito estranhas para mim. Não me lembro bem, mas devo ter visto o próprio Eisenstein. E o cinegrafista dele, que filmava, o Tisse. Mas me recordo mesmo é das cenas. Vi os chapéus atirados para o alto, aquelas damas todas lá, saudando os marinheiros revoltados. Aquelas damas em toaletes muito estranhas, não é?
Odessa era uma cidade diferente das outras?
A disposição topográfica de Odessa é semelhante à de Salvador. Fica num platô. E na parte baixa há o porto e as praias. Suas ruas são bem paralelas, planejadas pelo primeiro governador. É um pouco diferente de outras cidades russas. Digo russa porque era ucraniana, mas, para mim, era tudo Rússia… Eu só falava russo, em volta todo mundo falava russo. Quando ia à feira, ouvia a conversa dos vendedores numa língua que eu não compreendia. Era o único contato que eu tinha quando criança com a língua ucraniana. Toda a vida restante se passava em russo. Odessa é uma cidade praticamente russa. Mas quando eu chego à Rússia (até recentemente, porque agora não estou mais viajando), todo mundo me conhece como odessita, por causa do sotaque. Nasci em Úman, uma cidade relativamente perto de Kiev, capital da Ucrânia. Mas para mim era tudo Rússia.
Seus pais não ensinaram aos filhos a língua de família?
Em casa, meus pais não falavam a língua dos judeus da Europa Oriental, o iídiche. Exceto quando queriam que nós, eu e minha irmã Berta (que foi engenheira civil), deixássemos de compreender alguma coisa. Então eu fazia um esforço e acabava compreendendo, porque em casa só se falava russo. Eu me interessei pela literatura iídiche, mas sempre em tradução. Não tinha livro em iídiche em casa. Meus pais abandonaram a língua, sei lá, por inércia. Precisavam viver em um meio no qual todo mundo falava russo… Mas eu tinha uma avó, mãe de meu pai, que veio morar conosco e só falava iídiche com ele. Quase não se comunicava com a gente, só falava com meu pai.
E seu pai reagiu mal à sua opção por uma carreira literária.
Aconteceu o seguinte. Quando tinha uns 12, 13 anos, disse aos meus pais que iria estudar agronomia. Tinha uma fantasia com uma vida no campo, essas coisas. Vim para o Brasil quando tinha 8 anos, em 1926, e sentia muita saudade de Odessa. Mas depois, aos 15, passei por uma crise. Eu me abrasileirei completamente. Fiquei lendo literatura portuguesa e brasileira, romances, poesias, Machado de Assis, José de Alencar. E resolvi que não iria fazer mais agronomia, que me ocuparia de literatura. Escrevi uma carta para os meus pais, caprichei na redação o mais que pude. Disse que não queria mais ser agrônomo. E minha mãe me chamou para conversar. Disse que literatura era muito bom, mas que precisava ser feita nas horas vagas, aos sábados e domingos, de noite. E me contou que a pessoa necessitava ter uma ocupação rentável enquanto fazia literatura… Eis por que, para satisfazer a família, fui para essa coisa de agronomia.
O sr. só conversou sobre isso com sua mãe?
Não falei com meu pai, era tudo com minha mãe. Escrevi uma carta para eles, que não era a terrível carta de Kafka ao pai, pelo contrário, tinha o tom amistoso. E eu era bem mais criança… Muito recalcada, retraída… Criança imigrada era assim. Não falava com as outras. Cheguei aqui, as frutas eram diferentes, eu não conhecia banana, mamão, coco. E meus pais tinham saudade da Rússia.
Como a família veio parar no Brasil?
Acontece que meu pai era comerciante. No regime comunista, não havia muito espaço para ele, um homem hábil, com as costas quentes. Ele se dava muito bem com as autoridades. Mas se ele tivesse ficado, teria sido fuzilado. Porque aquelas pessoas que o protegiam, o favoreciam, foram todas fuziladas como trotskistas. Sua fuga não foi questão de habilidade. Aconteceu que ele tinha um primo, Pedro, que estudava na Escola Politécnica de Odessa. Estudava e trabalhava ao mesmo tempo, para ajudar a família. O pai dele faleceu e ele se tornou arrimo de família. Um dia, foi expulso da universidade por ser de família burguesa. Revoltou-se e resolveu emigrar. Emigrou sozinho até a fronteira com a Romênia, onde contrabandistas, mediante certa quantia, ajudavam a pessoa a ultrapassar a fronteira. Atravessou a fronteira com a Romênia, ficou quase sem dinheiro e conseguiu chegar a Viena. Lá, dormiu em banco de praça para não pagar hotel e foi correndo de embaixada em embaixada para obter um visto de entrada em algum país. Conseguiu um para o Brasil.
As pessoas saíam da Rússia com um destino em mente. E, para atingi-lo, conseguiam o que se chamava Passaporte Nansen. Diplomata norueguês, Nansen trabalhava para a Liga das Nações e providenciava passaportes para os que saíam da Rússia. Com seu Passaporte Nansen, Pedro veio para o Brasil, onde passou muitas dificuldades. Trabalhou na construção civil como pedreiro, mas conseguiu se firmar. E escreveu umas cartas entusiasmadas para nós.
Meus pais então resolveram emigrar para o Rio de Janeiro. Mas de modo diferente das outras pessoas, que em geral saíram fugidas. Nós saímos com passaporte soviético, de capa vermelha, com letras douradas, a foice e o martelo dourados. Depois, no Brasil, tive problemas com isso. Imagine usar esse passaporte durante o Estado Novo! Eu consegui a naturalização brasileira após muito esforço. Não tinha recursos, portanto não podia contratar advogado nem despachante. Ia pessoalmente de repartição em repartição, mas consegui. Todos na família conseguiram.
Minha naturalização saiu em 1941. Mas me formei engenheiro agrônomo em 1940. Para registrar meu diploma, precisava estar naturalizado e ter prestado serviço militar. Então tratei de me alistar. Eu podia fazer linha de tiro, que era um tipo de instrução mais suave, ou o quartel. Quis o quartel, me chamariam para lutar. Foi uma complicação. Eu morava em Copacabana e tentei me inserir nas fortalezas do litoral. Não me aceitaram. Só consegui ser aceito num quartel em Campinho, depois de Cascadura. Eu acordava às 4 horas da manhã, tomava ônibus, bonde e trem e chegava em Campinho. Fiz lá o curso de sargento e fui convocado à guerra como terceiro-sargento. Dei baixa como segundo-tenente. Fomos todos promovidos depois da guerra.
O sr. se considera próximo do marxismo?
Passei por um período marxista. O que me distanciou muito do movimento comunista foi o pacto germano-soviético, em 1939. Fiquei com muita raiva, aquilo me afastou por muitos anos, mas depois voltei.
O cinema em algum momento foi fidedigno em relação aos acontecimentos que o sr. presenciou na Itália durante a Segunda Guerra?
Tive um tio que dizia não acreditar no Roma, Cidade Aberta, do Roberto Rossellini. Uma bobagem muito grande, porque eu testemunhei o que o filme mostrou em 1945. Vi que os italianos lutaram contra o fascismo. Os partigiani realmente se empenharam a fundo, com grandes perdas humanas e tudo. Uma injustiça muito grande dizerem que não fizeram nada. Quando nós entramos no norte da Itália, ele já havia sido tomado pelos partigiani. Tenho a maior admiração pela contribuição dos italianos na luta contra o fascismo. E Roma, Cidade Aberta me pareceu fiel. Vi Paisà na época do lançamento, 1946, mas não me lembro bem dele. A população italiana estava arrasada. Uma situação de degradação completa. Quando chegamos em Nápoles, era trágico.
Qual é o seu sentimento, hoje, sobre a guerra?
A guerra, a gente não esquece. Neurose de guerra todo mundo tem. Quem passou por aquela experiência tem neurose de guerra, é inevitável.
Como o sr. escreveu “Caderno Italiano”? Ainda usa a máquina de escrever?
Escrevo a máquina, não aprendi computação, não consigo. Por quê? Qual é a vantagem? Até hoje existem oficinas para máquinas de escrever, e eu mando a minha para eles. Sabe que há muita gente escrevendo desse modo ainda? Tanto que a gente ainda compra fita de máquina. O computador mudou o tipo de correspondência, não é? É imediata. Hoje em dia quase não escrevo cartas. A Jerusa [Pires Ferreira, sua esposa] manda as mensagens pelo computador. Ela está completamente computadorizada.
O sr. ainda escreve cartas? Pensa em publicar sua correspondência?
Minhas correspondências nunca foram publicadas. Nem quero que sejam. Eu guardo todas as cartas que recebo, mas hoje em dia quase não escrevo cartas. Não posso me queixar. Fico trabalhando, fico escrevendo, lendo, de vez em quando saio, acompanhado de alguém. Acordo cedo. Recebo muito livro, inclusive não há espaço para tantos deles em meu apartamento. No momento, revejo traduções antigas. Traduções novas, não mais.
Fui aluna de Alfredo Bosi na Universidade de São Paulo durante a graduação em Letras. E, em maio de 2010, por ocasião do lançamento de seu livro “Ideologia e Contraideologia”, pela Companhia das Letras, fiz a primeira de duas entrevistas com ele. Republico então esta conversa inaugural como minha homenagem ao grande intelectual, morto hoje por Covid-19.
Alfredo Bosi por Masao Goto Filho em 2010, na casa da Granja Viana: rejeição aos ideólogos que apresentavam como interesse geral a necessidade de pequenos grupos e o entendimento de que o populismo havia sido um mal necessário para o Brasil
POR ROSANE PAVAM
A ampla casa da Granja Viana, em Cotia, onde mora o professor emérito da Universidade de São Paulo Alfredo Bosi, assistiu a momentos cruciais da história brasileira. No final dos anos 70, por exemplo, o terraço da casa abrigou reuniões fraternas com padres de esquerda, sindicalistas e intelectuais que resultariam na criação do Partido dos Trabalhadores. Desde algum tempo, portanto, o autor de Ideologia e Contraideologia (Companhia das Letras, 448 págs., R$ 58) dedica-se, como o partido em seu início, a contestar o status quo.
A nova obra de Alfredo Bosi surge no cenário das publicações brasileiras como um dos mais importantes estudos sobre o combate à dominância ideológica. Para realizá-lo, o historiador descreve seis séculos de história do pensamento a partir da Renascença. Analisa, entre outras, as obras de Francis Bacon, Montesquieu, Condorcet, Hegel, Simone Weil, Antonio Gramsci, Celso Furtado, Joaquim Nabuco e Machado de Assis. Bosi os vê como opositores às ideias que construíram a escravidão, a pobreza, a incultura, o estalinismo, a estupidez. Com elegância e síntese, Bosi demonstra nas entrelinhas do livro os mecanismos de sua própria resistência intelectual.
É paciente e metódica a fala deste paulistano de 73 anos que, durante entrevista de duas horas, por vezes fecha os olhos na direção do interlocutor, como se meditasse ou orasse junto a ele, à procura dos termos exatos que definiriam um pensamento. Quando a frase certa lhe surge entre os retratos familiares distribuídos pelas paredes da sala, especialmente os de sua mulher, a renomada pesquisadora Eclea, seus olhos se abrem e ele sorri.
Que estudos motivaram este livro? Como ele lhe surgiu?
O tema da ideologia e da contraideologia já aparece de outras maneiras na minha História Concisa da Literatura Brasileira, de 1970. Durante a ditadura, eu estava motivado pela ideia de que a nossa tinha sido uma cultura oprimida desde a colonização. Ao longo de 400 anos de história, eu encontraria exemplos de narrativas resistentes ao lado daquelas conformistas. Não foi difícil achar, às vezes em um mesmo texto, ambas as posições. Ao estudar os anos 30, época de ouro do romance brasileiro, verifiquei graus de tensão diferentes entre o autor e seu universo. Nos momentos de acomodação, vi algo que denominei tensão mínima. No outro extremo, havia narrativas conflituosas, de tensão máxima, como as de Graciliano Ramos. Percebi, concomitantemente, momentos de conformismo, de reprodução da ideologia dominante, e de resposta negativa, de interrogação. A monumental História da Literatura Ocidental de Otto Maria Carpeaux me ensinou a ver assim. Por sua formação dialética na Alemanha pré-nazista, Carpeaux tinha sensibilidade para as diferenças internas dos períodos.
Um segundo momento de gênese da minha pesquisa foi aquele em que escrevi O Ser e o Tempo da Poesia, em meados dos anos 70. Ainda havia ditadura. Consagro o capítulo “Poesia e Resistência” às formas de resistência que a poesia, sobretudo a lírica, desenvolveu. Quando os ensaios marxistas voltaram à baila, a partir dos anos 80, favoreceram a eclosão dos trabalhos sobre ideologia, contraideologia e utopia na literatura. Meu livro se situa nessa trajetória e tem motivações na realidade nacional.
Que distinção o sr. faz entre ideologia e contraideologia?
Ambas se articulam como um conjunto de ideias e valores. A diferença é que a ideologia generaliza interesses particulares e os dá como se fossem universais. Por exemplo, a ideologia da competitividade corresponde à luta econômica que a burguesia trava nos meios do poder financeiro e industrial. Mas os ideólogos do capitalista procuram demonstrar que a competição é uma necessidade universal, até fundada na biologia, em Darwin. Para convencer os seus destinatários retoricamente, já que se trata de uma arte de persuadir, os ideólogos criam um discurso justificador universal para esconder seus interesses. Os editoriais dos grandes jornais e das revistas de grandíssimas tiragens são peças ideológicas perfeitas. No caso da contraidelogia, a intenção é o bem comum. O escritor contraideológico, que combate a ideologia da competitividade, por exemplo, procura demonstrar que ao lado do que seria o instinto competitivo existe uma tendência solidária. O discurso contraideológico visa ao bem comum, não particulariza interesses.
O título de seu livro exclui a designação utopia. Esta é uma palavra condenada?
A origem do termo, significando o não-lugar, remete a um ideal extremo, que seria o oposto do lugar onde estamos. É uma forma extremada de contraideologia. Mas a contraideologia, tal como a concebo, pode ter aspectos reformistas. O economista Celso Furtado tinha propostas reformistas sólidas. Defendia a reforma agrária, a intervenção do Estado na economia. Ele estudava as coisas da maneira como estavam e procurava remover as causas a médio prazo. Falava em repartição de rendas, em imposto progressivo, algo que se realizou nos países escandinavos. O pensamento reformista é também o do historiador e político Joaquim Nabuco, que mesmo dentro do liberalismo percebe a insuficiência daquele modelo e luta contra a escravidão. Seu liberalismo já propunha leis de reforma agrária no século XIX. Nabuco pensava ser possível a união pelas leis sociais. Essas leis vieram ao Brasil somente depois da Revolução de 30, com Lindolfo Collor, um grande homem sem qualquer relação com seu desastrado neto. Como ministro do Trabalho, percebeu ser preciso outorgar leis trabalhistas como as europeias. Essas leis foram contrastadas pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, que não queria a implantação do salário mínimo em 1934. A contraideologia crítica, que muitas vezes nos parece pouca coisa, requer luta.
Onde estariam as mentes contraideológicas reformistas na atualidade brasileira?
Aqui seria preciso fazer uma análise minuciosa das iniciativas do governo nos últimos oito anos, até antes, para verificar se esta cunha contraideológica está não apenas na universidade, se ela penetrou na mentalidade de alas políticas. Conhecemos as interessantes iniciativas do governo Lula como o Bolsa Família. Agora, o Estado contempla o doador do trabalho, aquece a economia pela via do consumidor popular. Esta é uma ideia reformista, crítica da posição contrária, que contempla o empresário, o banqueiro. Não sou economista, mas vejo como as coisas estão acontecendo. E espero que continuem acontecendo.
O sr. vê uma ação contraideológica do pensador Antonio Gramsci em relação ao partido que ele ajudou a fundar, o PCI italiano?
Gramsci entra em meu livro na sua aproximação com a socialista francesa Simone Weil. Ela defendia que o operário tivesse cultura para reivindicar não só melhor salário, mas outro estilo de vida e participação política. Ela era informada sobre o comunismo russo de 1933, por isso acreditava que o país não faria uma revolução do operariado, mas às custas dele. Gramsci não a conheceu, embora já dissesse que todo homem era um intelectual. Mostro, no livro, as semelhanças de seu projeto com o de Weil. Ela seria mais radical, quase utópica, ao passo que ele tinha os pés no chão. Fez a universidade popular de Turim e dava aulas para operários.
Gramcsi era um herético marxista?
Ele ia além do marxismo. Achava que a militância, o proselitismo político, não deveria se dissociar da formação cultural operária. Outra ideia dele era que a educação não fosse muito especializada em seu início. Receava que, atuando como especialista na fábrica muito cedo, o jovem não tivesse a chance de dialogar com outras pessoas em termos de cultura. A ideia de uma formação anterior à especialização técnica é uma conquista de Gramsci. Ele contrariava a ideia capitalista de que a divisão do trabalho deveria ser feita de forma absoluta.
O sr. vê o Partido Comunista Italiano e o Partido dos Trabalhadores heréticos no seu início?
No caso do PCI, havia a crença de que a Revolução Russa, de 1917, seria o modelo da revolução operária. Os primeiros anos do partido, fundado em 1921, foram ortodoxos. Somente quando o stalinismo se intensificou, nos anos 30, percebeu-se que o caminho escolhido na Rússia tinha sido o da ditadura do partido. A formação do PT, que eu segui de perto, foi muito estimulante no final dos anos 70. Eu estava ligado à Pastoral Operária, próxima da esquerda católica. Trabalhei em Osasco inspirado no padre francês Domingos Barbé, que morava em uma pequena comunidade proletária na qual eu dava aulas de história. No terraço de minha casa, em 1979 e 1980, vinham aqui o padre e uma série de operários para discutir o que seria um partido de trabalhadores. De um lado havia a pastoral, de outro, os sindicatos do ABC paulista. E uma terceira força era a de intelectuais, muitos da USP.
A esquerda católica, os sindicatos e os intelectuais criaram o partido. Nos anos 80, apareceu a Central Única dos Trabalhadores, um racha nos sindicatos contra o peleguismo. Essa divisão me desagradou. Sempre gostei do Leonel Brizola, o populismo foi um mal necessário para o Brasil. O PT nasceu, então, de pessoas simples que trabalhavam em creches e paróquias, que faziam “mosquitinhos”, tiras de papel espalhadas pelas fábricas. Até hoje, aquelas senhoras que distribuíam os panfletos me dizem: “Nós fundamos o partido, professor! Nós jogamos os mosquitinhos!” E, agora, o partido está longe delas.
Por que esse distanciamento ocorreu?
O PT foi fundado como um partido democrático de esquerda, sem estrutura partidária clássica. Quando chegou ao poder, não pôde mais adotar o esquema dos pequenos grupos, já que concorria com outros partidos. Não quero dar uma mensagem pessimista neste momento eleitoral, mas o partido perdeu as características de aglutinação de forças sociais de esquerda. Ele se transformou num partido que eu diria ser de centro-esquerda, afastado da constelação que o criou. Hoje, o que importa é que aquelas mesmas forças que o constituíram estejam vivas e participantes. Estamos numa democracia representativa, não participativa. A força que fazem esses movimentos para bater à porta dos partidos mostra que eles, os movimentos, não são um partido.
O sr. pode nos dar um exemplo de posições ideológicas e contraideológicas que tenha observado recentemente?
Posso citar aquelas em torno da luta ambiental. Quando a expansão capitalista se tornou ameaçadora para a natureza, surgiu a contraideologia que propunha limites à expansão industrial. Celso Furtado, nos anos 70, hesitou em aderir o ambientalismo. Como economista do desenvolvimento, teve dúvidas a ideia de um crescimento com limites. Convenceu-se ao ver a violência contra a natureza aumentar. O ambientalismo, que se assemelhava a uma contraideologia extremada para ele, passou a ser visto como uma contraideologia racional. E ele aderiu à ideia do desenvolvimento sustentável. Hoje, fico preocupado ao ver, por parte da oposição ao atual governo e dentro dele, esses defensores do desenvolvimento econômico puro e duro colocarem em descrédito a luta ambientalista.
O sr. dedica o último capítulo de seu livro a Machado de Assis. O ceticismo do escritor é um pensamento contraideológico moderno?
Machado apresentou críticas agudas à rotina existencial escravista do século XIX. Mas de 1880 até 1908, ano em que morreu, a análise dos seus textos me dá a ver que detectou um limite para seu liberalismo democrático. Viu os homens como egoístas fundamentais atrás de sua conservação, de seu interesse, de suas paixões. Na maturidade, ele trabalhou de maneira jocosa, irônica, essa crítica à sociedade. O moderno em Machado pode ser observado em ambos os fios. Ele é moderno ao exercer o liberalismo democrático. E é moderno também em verificar os limites da ciência, das filosofias progressistas.
Por que usamos indistintamente os termos moderno e contemporâneo para designar certas tendências do pensamento?
“Contemporâneo” tem uma denotação cronológica, não diz nada do ponto de vista teórico, ao passo que o termo “moderno” se enriqueceu sobretudo depois da Revolução Francesa, com conteúdos ligados à emancipação das ideias feudais e dogmáticas. O moderno tem pelo menos duas conotações, de crítica ao passado e de libertação. Nós continuamos usando as duas palavras porque suas conotações nos interessam de perto.
Como o sr. vê a literatura moderna ou contemporânea?
Gosto de Ferreira Gullar. Reconheço em seus poemas uma força crítica em relação aos males do presente e uma análise profunda do sentimento do homem comum. Ele verbaliza sua angústia. Mas, veja, estou falando do poeta, não do cronista, nem de suas ideias políticas.
E há alguma ficção internacional contemporânea que lhe interesse?
A de Julio Cortázar. Ele tem uma força dramática que não há em Jorge Luis Borges, um contemplador irônico do mundo, um homem de grande erudição. Mas o drama, que me interessa de perto, o conflito entre os personagens, Cortázar mostra de maneira experimental, como um grande escritor contemporâneo, eu diria.
Naqueles anos 1980 era possível frequentar duas faculdades simultaneamente na USP, e foi assim que, enquanto cursava Jornalismo, um pouco decepcionada com tudo, buscava Letras também. Moradora do Crusp, ia à aula do segundo curso com muito prazer, como quem desce após o jantar para cumprir um exercício.
Tive sorte e azar. Professores ruins de Literatura Portuguesa e Inglesa, mais ou menos insignificantes de Linguística e Português. Em Teoria Literária a coisa era diferente. Não cheguei a Antonio Candido, mas João Adolfo Hansen, Alfredo Bosi e João Luiz Lafetá foram meus professores.
Hansen era maravilhoso. A aula desse grande estudioso da sátira e do poema barroco surgia para mim como uma espécie de show teatral de humor hipnotizante. Certa vez, o professor comemorou rindo muito ao saber que o dicionário de latim deixado por ele no xerox havia sido roubado. Quem se interessaria por esse assunto a ponto de surrupiar um dicionário?
Bosi era o oposto, carisma nenhum. Sentava-se e lia a aula sentado no púlpito. E eu anotava. Devo ter aprendido alguma coisa, tinha 19 anos, não me lembro. O seu jeito de padre, pude reviver três décadas depois enquanto jornalista. Falava comigo de perfil, como se me ouvisse no confessionário, enquanto Eclea Bosi atravessava diversas vezes a sala sem me olhar.
O Lafetá era o melhor. Dava uma aula perfeita, enquadrada. E sorria, infantil, com suas próprias conclusões aparentemente tiradas naquele instante, enquanto andava pela sala. Ele e Hansen eram fumantes o tempo todo, e eu, que sofrera por anos ao aspirar a fumaça produzida por meu pai na sala onde ele estudava e eu dormia, nem sentia o cheiro ruim.
Lafetá, entre esses todos, cuidava de seu aluno. Ele o percebia, como sentia os textos, as intenções do autor estudado, sua tessitura. E eu me encontrava nisso. Estou penando para me lembrar do livro que destrinchou pra nós em aulas seguidas e sorridentes, mas não consigo.
Sei que nos pedia dois trabalhos de análise literária como avaliação do curso. Guardei por anos a folha em que avaliou o meu primeiro. Ele se disse feliz com minha sensibilidade, que classificou de brilhante, mas enquanto me dava 10 afirmava temer que eu me tornasse uma “crítica impressionista”.
Querido Lafetá, nem crítica literária me tornei! E me perdoe por ter cultivado a sintonia com os textos mais do que a pesquisa em literatura, esta que a vida rotineira e a necessidade de sobrevivência me fizeram perder de vista. Também me perdoe por entender hoje que você via em mim um pouco a si mesmo, lutando para se manter na pesquisa e construir uma coerência de scholar enquanto a leitura lhe banhava de impressões.
Creio que impressionista fui e impressionista me tornei, sem me aborrecer com isso, antes me beneficiar dessa percepção e morrer por ela, por assim dizer. E agradeço a esses três pela dignidade com que envolveram a transmissão de seu saber.