Tenho mais livros que os possa ler. E não conto isso para as mentalidades marie kondo, para quem livros, como roupas, devemos acumulá-los ao mínimo denominador de uso. Entendo e respeito que sua experiência com os livros seja diferente da minha.
Eu não uso livros desse modo. Eles não se esgotam, para mim, como um quimono ou um sapato. Exceto, é claro, se suas costuras forem frágeis.
No tempo em que fiz pós, meu hábito de juntar livros permitiu a conclusão de capítulos, visto que eu trabalhava e cuidava dos filhos enquanto estudava, portanto sem tempo para bibliotecas.
Até hoje, ser afortunada a ponto de dispor de mais livros que os possa ler me abriu possibilidades para temporadas ruins, como esta, pandêmica. Nesses momentos, é só percorrer as estantes para redescobrir um gosto guardado, interrompido, e se ocupar das iluminações.
Sei que em razão disso as minhas serão, no mais das vezes, leituras novas-antigas, visto que não estarei atrás do que emerge no momento. Por mais que meus amigos se entusiasmem com as novidades literárias, não sei compará-las, sem prejudicá-las, com a visão do passado.
Qual foi o último novo livro ficcional brasileiro que me fisgou pelo sabor? Melhor nem dizer. Leio os primeiros capítulos e não me entusiasmo. Por certo estou ultrapassada em informações, por certo preciso ler mais e mais.
No entanto, acompanho com ânimo novas pesquisas históricas. Os livros sobre a aventura intelectual me proporcionam o prazer da descoberta que não encontrei nos ficcionais.
É tudo uma questão de limitação pessoal. Se eu fosse um Borges, nem precisaria de biblioteca em casa, pois a teria toda em minha cabeça.
Uma vez o escritor argentino se declarou insultado com a observação de Vargas-Llosa, que, ao visitá-lo em Buenos Aires, anotou com surpresa (ou terá sido superioridade) o número limitado de livros nas estantes. Como se acúmulo de publicações significasse saber! Adoro recordar isso porque conheci de perto a figura pequena que Vargas Llosa é.
A meu modo sou pequena também, razão pela qual minha biblioteca é razoavelmente grande, capaz de deter em parte os pesadelos que vivo no presente.
A seguir, a resenha que fiz deste importante livro de história cultural para o suplemento Aliás, do Estadão, publicada em 11 de julho de 2021.
Há uma informação logo na primeira frase que foi modificada de meu texto original. No artigo publicado, imprime-se que Orwell morreu em 1949, mas foi em janeiro de 1950. E “1984” foi publicado em 1948.
George Orwell (1903-1950) publicou 1984 em 1948, um ano e meio antes de morrer com tuberculose. A obra, que ao sair foi comparada a um terremoto, a um feixe de dinamite e ao rótulo numa garrafa de veneno, revelou-se caleidoscópica, e a cada temporada histórica uma diferente interpretação do livro se sobressaiu. Durante a Guerra Fria, este que se tornou o último texto ficcional do escritor inglês foi lido como um romance sobre o totalitarismo, com a tendência de a crítica ocidental ligá-lo unicamente à barbárie stalinista. Na década de 1980, o volume, já compreendido como um clássico, parecia alertar sobre as tecnologias de vigilância, embora Milan Kundera e Harold Bloom o entendessem como um romance ruim. O escritor Anthony Burgess, que construiu Laranja Mecânica à sua luz, chegou a defini-lo como “o código apocalíptico de nossos piores medos”. E atualmente, em meio ao império global das informações falsas, 1984 tornou-se um dos mais poderosos livros em defesa da verdade.
Ainda que seja possível admitir sua imaginação ficcional limitada, como queriam Bloom e Kundera, o romance exibe intacto o poder da escrita persuasiva, em um fluxo de observações a expressar o profundo incômodo de seu autor, conforme escreve o historiador cultural inglês Dorian Lynksey, de 47 anos, nas espetaculares 488 páginas de O Ministério da Verdade. A sua é uma investigação muito bem fundamentada de história cultural, que insere as ideias e seus artífices no contexto de produção, sem perder de vista o leitor comum. A linguagem clara arma-se para reproduzir a atmosfera mental na qual foi composta a dura sátira que, mesclada a uma história de amor, virou peça radiofônica, encenação televisiva e filme homônimo por Michael Radford, além de traduzida para mais de 60 línguas.
A trama ficcional parece conhecida, a ponto de uma de suas situações, a da eterna vigilância, ter sido parodiada em um reality show de sucesso, onde o punitivo Quarto 101 virou Confessionário. Mas talvez poucos a tenham lido realmente, o que vale uma rememoração. Em 1984, o protagonista Winston Smith passa os dias reescrevendo exemplares antigos do jornal The Times no Ministério da Verdade, de modo a tornar os fatos inventados do passado uma justificativa à opressão presente. Um dia, apaixona-se, o que é proibido. Ele e Julia, seu amor, precisam driblar a impressão de que a memória os engana. Tentam acessar o mundo anterior à imposição da “novafala” (a tradução a preferiu à conhecida “novilíngua”), recurso vocabular de modificação constante que dá sentido ao “duplipensar”, ou o pensar uma coisa enquanto se propõe outra distinta.
O sistema de duplicidade em que vivem é estabelecido pelo Grande Irmão, que tudo controla e vê. Seu objetivo ao construir “despessoas” é interromper tanto a ciência quanto a história. Ao desejar o fim desse mundo no qual “guerra é paz”, “liberdade é escravidão” e “ignorância é força”, Winston também sabe que seu final logo virá, embora não calcule que esse apagamento se dará por meio da renúncia horripilante a seu amor por Julia. Enquanto isso, os cientistas continuarão a projetar teletelas e helicópteros-espiões, a inventar novas armas e dispositivos de tortura, a realizar cirurgias plásticas radicais e a tentar abolir o orgasmo, ao mesmo tempo em que nada farão para melhorar a qualidade de vida geral.
É o mundo terrível como o vemos conhecendo? Sim e não. A novafala de Donald Trump, por exemplo, exemplificou o sim, uma vez que sob o ex-presidente estadunidense foram admitidos “fatos alternativos” em lugar de “fatos”. O livro não deseja retratar apenas aquele universo de constante tensão e cancelamento imaginado pela sanha stalinista. 1984 é também um retrato do fascismo e de todos os regimes políticos a sufocar a liberdade e a convergir o poder na direção de um “coletivismo oligárquico” do qual os trabalhadores se veem, na verdade, excluídos. Orwell, um homem de esquerda, investiu contra todos os totalitarismos. “Por trás de Stalin se esconde o Grande Irmão”, escreveu o crítico E. M. Forster em 1951, “mas o Grande Irmão também se esconde por trás de Churchill, Truman, Gandhi e qualquer outro líder usado ou inventado pela propaganda”.
O cineasta Radford, que adaptou a trama às telas aceleradamente, para que estreasse em 1984, a vê como um “mito grego”, por meio do qual é possível até mesmo “examinar a si mesmo”. Mas é curioso como tantos, desde a apresentação do livro ao público, tenham preferido tratá-la como uma obra falha no sentido de cravar profecias. Orwell disse muitas vezes que não previa nada com seu escrito, certamente nada que envolvesse ciência, ao contrário do que elaborara com bastante sucesso seu antecessor H.G. Wells. O autor de 1984 apenas fazia uma leitura “provável” do futuro, baseada tanto na sua experiência como combatente na Guerra Civil Espanhola quanto naquela de ávido leitor, tanto de história política quanto das ficções utópicas, entre elas Nós, de Ievguêni Zamiátin, que conheceu depois de haver iniciado seu romance e na qual parcialmente se baseou.
A experiência ao lado dos anarquistas foi uma daquelas a contribuir para a fama de “idealista estabanado” com a qual o escritor e amigo Henry Miller o presenteara. Nascido Eric Arthur Blair na Índia em 1903, um descendente da baixa classe média que havia cursado a elitista escola Eton, Orwell era um “revolucionário apaixonado”, segundo o amigo Cyril Connolly. E somente quando colocado na pele daqueles caídos abaixo do sistema de classes sentia experimentar um “igualitarismo”. Havia escrito Na Pior em Paris e Londres, de 1933, em que usou pela primeira vez o pseudônimo que o tornaria famoso, com esse objetivo, e três anos depois se encontrava ao lado dos anarquistas no Aragão. Os anarquistas queriam a revolução além da queda do general Francisco Franco, motivador do conflito. Mas os comunistas estavam ali apenas para expulsá-lo do poder. Apesar de pertencer ao grupo anarquista, Orwell, alguém a cultivar o não como quem se alimenta à vasta mesa da contrariedade, acreditava que os comunistas estavam certos em seu objetivo.
Com o tempo, o escritor percebeu, estupefato, que não somente os fascistas eram uma ameaça, mas também os comunistas adeptos de Stalin. Eles haviam expandido mentiras em cascata para desabonar os anarquistas. Mentiram, por exemplo, que eles haviam se associado a Franco para solapar a revolução. Eram os comunistas os transmissores das fake news sobre Trotsky que culminaram em seu assassinato. E haviam obrigado o próprio Orwell a fugir para Paris em meio ao conflito, uma vez que lutava ao lado dos anarquistas. Por que Orwell criticava o comunismo com mais vigor que o fascismo? Porque ele o tinha conhecido de perto, e porque o apelo do comunismo, a seu ver, era mais traiçoeiro, uma vez que também ele apagava a verdade, como num pesadelo. Mas a política não o enojava. Ele até mesmo a introduziu na sua distopia (termo criado por John Stuart Mill em 1868 que Orwell, aliás, jamais usou), diferenciando-a daquela de Aldous Huxley, que não mencionava a manipulação política em seu Admirável Mundo Novo, de 1932.
O que mais perturbava Orwell, um “guerreiro puritano” segundo seu editor Fredric Warburg, era a retórica brutalizante. O escritor, cujos admiradores foram tão díspares quanto a escritora Margaret Atwood e o músico David Bowie, via a Inglaterra como uma “terra de esnobismo e privilégio governada sobretudo pelos velhos e pelos imbecis”. E em todo avanço científico assimilado pelo poder o autor de 1984 constatava acelerar-se a tendência para o nacionalismo e a ditadura. Para ele, que deixou de examinar o sexismo ou o racismo em seu romance, a tecnologia jamais seria capaz de construir paraísos, ao contrário do que estabelecia o senso comum das ficções utópicas. Até porque, como diria o líder trabalhista e ex-premiê britânico Clement Attlee, citado por este estudo, “a maioria de nós seria muito infeliz nos paraísos alheios”.
É JORNALISTA, PESQUISADORA E AUTORA DE ‘O SONHO INTACTO’ E ‘O CINEASTA HISTORIADOR’
Os melhores e breves momentos de um jornalista são vividos em extrema dificuldade. Ou somos habitados pela ousadia ou não saímos de casa. Dói abrir a porta para a guerra no quinto andar. As desculpas não interessam. Tenha ou não sapatos para a neve, o fuzil precisa caber no ombro e é melhor remendar o furo do capacete. Esteja lá, forte e atento. Tenha sorte.
Entrevistar V.S. Naipaul, morto ontem, aos 85 anos, foi uma dessas horas de guerrear. Ele era impossível. Amargo. Pinicava. A “New Yorker” disse que uma jornalista tinha caído aos prantos diante dele. E a Companhia das Letras não queria me incluir entre os entrevistadores deste Prêmio Nobel sobre seu novo livro. Eu trabalhava no pequeno Jornal da Tarde, que credencial era essa? Mas havia uma pessoa querida na assessoria da editora, a Ruth Lanna. E ela me ajudou a entrar.
Não fiz nada demais antes do dia da entrevista, apenas li o livro. Acho bom ler o livro antes de entrevistar. E muito mais eu não poderia fazer, o tempo era curto. Tinha sido tão bom ler. Me transportei até Balzac, que eu percorria muito na época, 1994.
Naipaul estava em São Paulo para a promoção do livro. Fiquei aliviada. Telefone é do outro mundo. E cara a cara tenho menos medo desses enfrentamentos culturais ou do meu inglês imperfeito, eu diria ruim.
Entrei na sala e ele me olhou de cima abaixo. Analisava meus olhos como um diretor de escola ou um dirigente da polícia secreta. Com uma curiosidade a mais. Eu soltei a língua. Não me lembro direito o que perguntei, mas o comparei a Balzac. “Em que página do meu livro você encontrou a comparação?” Abri a página e a li em português. Ele era casado então com uma argentina. Não achou difícil entender. Divertiu-se.
E nos divertimos. “Não sei por que jornalistas acham difícil me entrevistar. É só ler até a página 100.” Perguntei de sua vida em Trinidad. “Lá não há pessoas tão finas e cultas como você e o Luis Schwarcz.” Ri só por dentro, mas ele ali falava sério. “Em São Paulo, a única coisa terrível é o trânsito.” Perguntei por que fora jornalista: “Pelas viagens.” (Dizer isso pra mim, que viajei tão pouco na profissão… Foi a única vez em que me envergonhei diante de alguém mais inteligente do que eu.)
Continuamos a conversar e ele não queria que o papo acabasse. Do nada me convidou pra jantar. Deus meu. Disse que não podia, porque eu ainda precisava escrever o texto. “Vocês têm muito pouco tempo”, admirou-se. Mas não era pelo tempo. Escrevemos o que podemos, mesmo, em prazos impossíveis. Meu medo era que tudo desse errado num jantar. (Contei essa história a uma ex-amiga, e ela concluiu que ele estava interessado em mim. E cometi o erro de relatar isto também durante uma palestra para jornalistas iniciantes. Gente ruim.)
A reportagem saiu e vai neste pdf V. S. Naipaul (1). Não se esqueçam de que escrevi rápido realmente e que o espaço a mim concedido no jornal resultou bem pequeno.
O Luis Schwarcz me contou que no dia seguinte deu a notícia ao escritor: “A melhor matéria foi a da Rosane.”
Aos 134 anos do nascimento do grande escritor, o retrato até hoje supreendente que dele fez o biógrafo Max Brod: “Nós, os amigos, morremos de rir quando ele nos fez conhecer o primeiro capítulo de O Processo. E ele mesmo ria tanto que por momentos não podia continuar lendo. Bastante assombroso, se se pensa na terrível seriedade desse capítulo. Mas acontecia assim.”
“Assinalo o que se esquece facilmente quando se contempla a obra de Kafka: sua dobra de alegria do mundo e da vida”, escreveu Max Brod
Um sorriso na contramão.
Franz Kafka tinha grande senso de humor, escreveu o amigo e biógrafo Max Brod.
A seguir, na tradução que fiz de alguns dos trechos da edição em espanhol de Kafka, pela Emecé Editores de Buenos Aires, 1951, Brod explora este aspecto usualmente negado na personalidade e na obra do grande escritor.
Sobre conviver com seu humorismo:
Com renovada experiência adverti que os cultores de Kafka, aqueles que somente o conhecem por seus livros, têm uma imagem totalmente falsa dele. Creem que também no trato fosse triste, desesperado. Pelo contrário. Era bom estar com ele. A plenitude de seus pensamentos, que expunha quase sempre em tom festivo, o convertia pelo menos (e me refiro unicamente ao grau mais baixo) em uma das pessoas mais interessantes que conheci, apesar de sua modéstia e sua calma. Falava pouco; em reuniões grandes se calava frequentemente durante horas inteiras. Mas, quando dizia algo, prestava-se imensa atenção nele. Porque era transcendental, dava em que pensar. E na conversação íntima soltava às vezes assombrosamente a língua, chegando a entusiasmar-se, a se tornar encantador. As piadas e as risadas não tinham fim. Ria à vontade e cordialmente, e fazia rir os amigos. E mais: em situações difíceis era possível confiar sem reparos em sua experiência do mundo, em seu tato, seu conselho, porque bem poucas vezes errava. Era um amigo maravilhosamente útil. Só se sentia desorientado e desvalido consigo mesmo, impressão esta que, por conta de seu autodomínio, dava muito poucas vezes em seu trato pessoal, embora se aprofundasse nela indubitavelmente por meio de seus Diários. Um dos motivos que me impulsionam a escrever estas recordações é o seguinte: da leitura de seus livros e, sobretudo, dos Diários, pode-se chegar a ter uma imagem totalmente distinta dele, muito mais lúgubre do que aquela cotidiana. A biografia de Kafka que nosso círculo conserva na memória deve ser adicionada a seus escritos e reclama sua inclusão no julgamento total.
Sobre o sentido de humor em Kafka:
Que um ser puro não possa tocar o impuro é tanto sua força quanto sua debilidade. Força, porque significa sentir a distância entre ele e o absoluto, senti-la até o fim. Mas esta mesma distância é algo negativo, é debilidade. De modo que a força do ser puro só se pode manifestar enquanto o ser puro persiste em não querer escamotear sua distância do absoluto, em extremar sua debilidade através de lentes de mil aumentos. Porém, enquanto quer manter sua posição, não pode nem deve admitir que sua força é precisamente essa. Se origina assim um duplo fundo, e onde há duplo fundo há humorismo. Sim, ainda que em meio ao horror de tal perseverança, de tal persistência na mais perigosa de todas as atitudes (pois se trata de vida ou morte), brota um sorriso amável. E um sorriso novo, que caracteriza a obra de Kafka, um sorriso próximo às questões últimas, quase, diríamos, um sorriso metafísico; e às vezes quando ele lia alguns contos àqueles de nós que éramos seus amigos, crescia esse sorriso e lançávamos uma sonora gargalhada. Mas logo nos calávamos. Não era um sorriso destinado a seres humanos. Somente aos anjos é lícito rir dessa maneira (anjos que não se deve imaginar os anjinhos, angelotes, de Rafael; não, anjos, serafins masculinos com três gigantescos pares de asas, seres demoníacos entre o homem e Deus).
Agora, bem, qual é a razão para que o homem não chegue ao verdadeiro em si, por que, não obstante animado de ótima vontade, equivoca seu caminho, como aquele médico rural que seguiu os “sons enganosos da campainha noturna”? Kafka não se via inclinado por seu caráter a fazer promessas ou concessões à vida feliz. Admirava quem era capaz de fazê-lo; ele mesmo permanecia em suspense. Mas em suspense seria vazio e deserto, como se ele não houvesse sentido o absoluto como algo indescritível em si. Em meio a sua insegurança se pressente uma distante segurança, a única que pode fazer possível, a de sustentar a insegurança. Já disse que esse rasgo positivo se percebe acaso com menos firmeza em seus escritos (razão pela qual muitos os acham deprimentes) que em sua serenidade pessoal, no suave, discreto, nunca precipitado, de seu caráter. Mas quem lê sua obra com atenção também vislumbra repetidamente, através de zonas sombrias, o núcleo luminoso, ou melhor, suavemente radiante. Na superfície, no que se relata há desgarramento e desespero; mas a serenidade e a extensão com que se expõe o argumento, a acidez enamorada do detalhe, quer dizer, da vida real e da descrição fiel, o humorismo resultante da construção das orações comprimidas por tantos giros estilísticos que seu efeito é muitas vezes análogo ao curto-circuito (os devedores “se voltaram pródigos e dão uma festa no jardim de uma osteria, enquanto outros interrompem um momento seu voo à América e assistem à festa”), tudo alude já por sua forma ao “indestrutível” em Kafka, à natureza humana comum que ele conheceu.
Tal humorismo se fazia particularmente claro quando era Kafka mesmo quem lia suas obras. Por exemplo, nós, os amigos, morremos de rir quando ele nos fez conhecer o primeiro capítulo de O Processo. E ele mesmo ria tanto que por momentos não podia continuar lendo. Bastante assombroso, se se pensa na terrível seriedade desse capítulo. Mas acontecia assim.
Claro, não era uma risada boa e prazerosa. Contudo, havia a partícula de um riso bom, junto às cem partículas de desassossego que não pretendo negar. Só quero assinalar o que se esquece facilmente quando se contempla a obra de Kafka: sua dobra de alegria do mundo e da vida.
Uma raiz para seu peculiar humorismo:
As exigências que Kafka impunha a si mesmo eram as mais rigorosas. Quase nunca acreditava satisfazê-las. Não era, contudo, nenhum “crítico cultural” no sentido corrente. Pois muito do que ocorria ao seu redor, muitas pessoas bem medíocres com quem travava conhecimento, lhe pareciam realizadas, dignas de admiração por sua efetividade e força, e até agraciadas por Deus. A única certeza nele era a de não haver ninguém com uma consciência mais ardentemente firme que ele acerca da “distância de Deus”. Porém, nesse estar consciente de tal distância, Kafka, de puramente piedoso, não via virtude, senão unicamente insegurança, quer dizer, debilidade. No entanto, como a condição prévia de toda a vida era para ele a faculdade de sentir claramente e sem rituais nem dissimulações místicas a distância de Deus (a distância da perfeição da conduta reta), seu elogio e sua admiração pelo homem corrente (pelo homem “pedestre”, como disse Kierkegaard) tinham em si frequentemente algo de ironia suave, não premeditada, brincalhona e ao mesmo tempo comovente. Sua bondade, por assim dizer, caridosa, cedia de forma fictícia a dianteira aos vencedores cotidianos. Conhecem o abismo como eu e, no entanto, se balançam felizes sobre ele. Deveras o conheciam? A cômica hipótese da premissa iluminava a tragédia pessoal em sua vida, era uma das raízes de seu peculiar humorismo.