Quando Madonna subiu ao palco para receber um prêmio, antes da pandemia, fez um belo discurso. Não sou fã incondicional dela, mas aprecio sua inteligência e o que disse fez bastante sentido pra mim.
Nunca foi fácil fazer o que fez sendo mulher, declarou. A um Prince ou um Bowie eram aceitas com aplauso certas atitudes e encenações, como a da sexualidade. Mas, nela, isto jamais coube como razoável. E precisou comprar a briga com o mundo para se expressar. De oportunista para baixo foi o que ouviu, além de ter lidado, no começo de sua vida em Nova York, com os candidatos a estupradores na porta de casa, quando destrancada.
Acompanhei Madonna como fenômeno desde o início e entendi o que disse, porque em certas partes de seu discurso ela falou pelas mulheres de nossa geração. No jornalismo brasileiro sofríamos quase igual, embora Madonna, por óbvio, tenha circundado as circunstâncias de forma espetacular.
A parte mais forte do discurso, para mim, foi aquela em que ela se disse vítima de uma nova perseguição diuturna, o etarismo. Aos 60 anos, ao contrário do que aconteceu com Bowie ou com astros do rock bem mais velhos, como Jagger, não lhe era aceito performar como estrela (e, pensei eu, namorar gente jovem também). Envelhecer aos olhos do público, fazendo o que faz, tornou-se um pecado mortal.
Acompanho seu Instagram e sei bastante do que ela mostra há alguns anos. Seu dia a dia carinhoso com os quatro filhos adotados, dançando e posando. Tem namorados cada vez mais jovens, pretos meninos, com quem vai à roda gigante no aniversário dos filhos, para às vezes passar muito mal. Suas dores nas costas inviabilizaram, alguns anos atrás, que ficasse confortável de pé, e ela precisou se exercitar na banheira a certa temperatura apenas para se mover.
Sobre suas plásticas, elas se sobrepõem há alguns anos, como aconteceu com Jane Fonda, e me acostumei com seu rosto novo, sempre muito maquiado e cuidadosamente posado. Nem me parece tão estranho quando o comparo ao de outras divas do público drag, como Amanda Lepore. Um rosto de estrela, digam o que quiserem.
A foto que fizeram dela no Grammy e tanto surpreendeu as pessoas é cruel. Uma tele que se aproxima demais com uma intenção. Ela está certa quando diz que essa lente distorceria qualquer rosto. Para mim, numa foto, sempre há um fotógrafo por trás. Quem é o autor em questão? Não sabemos. Boa tentativa, meu caro.
Mais uma vez, então, Madonna está certa ao dizer que o que querem tirar dela é ruim. Anulá-la, velha demais para o rock’n roll. Após os 45 anos, é como se a mulher não tivesse mais o direito de ocupar determinados palcos, especialmente se se comportar como não é de uso para uma senhora de certa idade. Qual o problema de ter o rosto modificado? Ela quer assim. Ozzy Osbourne também quis. Mas não, é como se ela, especialmente, não pudesse. Como se fosse inferior a nós ao manter essa louca pretensão de modificar-se, nós que sustentamos nossas rugas com orgulho, até carinho.
Quer saber? Gosto mais dela hoje, velha e insistente, do que antes. Estou cansada de saber o que o estrelato exige das pessoas. Plástica mal feita não me oprime. Aguardo seu próximo movimento. Viva e deixe viver.
há muito tempo a cultura deixou de ser um santuário, sinto dizer. poucos produtos nas estantes se pareciam com livros de fato. e os vendedores mal entendiam o que faziam. além de tudo, o principal:
que bobagem condenar as minas pelas plásticas que fizeram. as tatoos. os piercings. aceitem que todos nós uma hora ou outra usaremos máscaras, colares, maquiagem, chapéus, não necessariamente para suavizar a passagem do tempo… e se for pra isso, qual o problema? cada um tem o próprio jeito de ler a vida e contornar seus infortúnios.
Durante toda a vida tive motivos para me decepcionar com o que sou, com minha fraqueza e certas atitudes que tomei. Mas agora depois de tantos anos tem sido corrente a grande decepção com o outro. Tão grande. Sem que eu alcance compreendê-lo.
E é muito pior quando acontece assim. Porque, com a gente mesma, temos tempo de amadurecer as origens do erro. Quando o alvo é o outro, quando mal o reconhecemos e podemos identificar seus motivos, tudo se complica. É uma luta se livrar da decepção.
Não se trata de perdoar antes de tudo. Nunca liguei pra essa chantagem do perdão, como se ao perdoar o outro, o infeliz, encontrasse eu mesma a felicidade. Não. Trata-se de compreender. É a compreensão, não exatamente o perdão, a minha luta interna, a mais difícil.
O genocídio dos ianomâmis, tramado meticulosamente por quatro anos, rasgou minha alma por um bom tempo. Diversas vezes ao dia, fantasio. Na minha imaginação estou no galho chacoalhando a Danares até ela admitir, pisando no pescoço de verme para ver sua língua desmilinguida se desmanchar e enchendo de sabão a boca sem lábios do marreco, até que se afogue.
Mas, enquanto incendeio em silêncio, procuro pensar que Lula e seus ministros estiveram lá entre os ianomâmis para ver e resolver a situação, não só emergencialmente. Fujo do arrepio de pensar que por pouco ele não teria sido nosso presidente e sorrio constatando que felizmente ele existe, está lá e está forte.
Também não paro de pensar no que o Daniel Alves fez com uma mulher que, do nada, ele achou por bem unilateralmente possuir, como um porco no saloon do Dirty Harry. Que ódio da existência monstruosa de tais seres inchados pelo futebol. Esses, minha imaginação infantilizada só pensa em socar, mas sem sujar as mãos – apenas segurando as molas com luvas do Looney Tunes. De novo, que bom que o porco estava na Espanha e que o país foi incapaz de brincar em serviço, como a Itália fez. E que fibra a dessa vítima, jogando na cara que não quer acordo, dinheiro nenhum, só justiça e acabou.
Espero que os “mas” nessas situações me ajudem a relaxar. Arre que a gente precisa seguir vivendo. Que eu afaste esses fantasmas do meu coração, possa dormir de novo e amém.
Gina Lollobrigida e Aldo Fabrizi em “Vita da cani”, de Steno e Monicelli, 1950
“Vita da Cani”, com Gina Lollobrigida e Aldo Fabrizi, é um filme maravilhoso sobre o qual me risca o coração escrever. De 1950, dirigido por Steno e Mario Monicelli, vem centrado nos apuros de uma companhia de variedades mambembe diante da chegada do cinema. Fabrizi, que foi um dos maiores atores do mundo inteiro, interpreta o dono da companhia, a fazer surgir o talento da jovenzinha Lollo. Ela o ama, ele tb a quer, mas sabe que se a dançarina se prender a sua miséria, vai se apagar… Há uma sequência mágica com Fabrizi diante da tela em que é projetado um filme, justamente no espaço em que a companhia se apresenta. Vocês que entendem dessas coisas, baixem esse monumento. E nos passem pelo Google drive pf rs.
Ao recuperar as cartas à noiva Felice Bauer, biógrafo expõe as apreensões do escritor e suas conquistas literárias de início
O sorriso, o chapéu coco, o insuspeito humor de quem provocara riso nos amigos ao ler o primeiro capítulo de “O Processo”
Em 1912, findo o réveillon, o escritor Frank Kafka (1883-1924) decidiu fazer um de seus costumeiros balanços de vida. Para tanto, escreveu as reflexões em seu diário, aquele que preenchia especialmente durante horas tranquilas, as noturnas, nas quais o silêncio parecia reinar na casa onde morava com a família, contígua à loja de produtos de luxo administrada pelos pais e irmãs, em Praga. Tinha 28 anos. Trabalhava pela manhã numa corretora de seguros, descansava à tarde, estava a um ano de escrever “O veredicto”, o primeiro texto a concretizar sua concepção literária, e pensava que o insucesso amoroso não poderia atormentá-lo mais. “Quando ficou claro em meu organismo que a escrita era a tendência mais produtiva do meu ser”, escreveu, “tudo o mais acorreu ao seu encontro, esvaziando todas aquelas capacidades que, de início, dirigiam-se para as alegrias do sexo, da comida, da bebida, da reflexão filosófica e da música”.
É quase certo que Kafka tivesse um organismo literário, por assim dizer. Mas por que a literatura excluiria necessariamente sua realização no amor, ainda mais naquele momento em que mal pusera seus escritos à prova pública? O motivo não seria religioso, considera o biógrafo alemão Reiner Stach em “Kafka: Os anos decisivos” (Todavia). Neste livro extenso, tantas vezes primoroso, a revirar com clareza erudita até mesmo a necessidade de as biografias existirem, considera-se que o fracasso literário não é uma opção para Kafka, enquanto o amoroso, ele talvez pudesse suportar. Um escritor, ele dizia, nunca estava suficientemente sozinho para escrever. De modo a continuar produzindo com energia, até mesmo contra a birra do pai, que não queria vê-lo dormir depois do almoço, ele poderia encontrar qualquer desculpa interior, fosse contra o amor ou contra o consumo de café e carne, embora a realidade às vezes teimasse em contradizer essas determinações.
Felice Bauer, a primeira noiva
Pouco depois de avaliar que a paixão seria inalcançável para ele, uma vez que seu “organismo” nascera para a escrita, Kafka se enredou amorosamente de forma quase inexplicável por uma trabalhadora doce e obscura de classe média, Felice Bauer, mais interessada na obra do dramaturgo August Strindberg que na dele próprio, e dedicada à família de maneira profundamente compulsória, mais do que a si mesma. Ela era próxima do amigo Max Brod, um dos solteiros de seu grupo social de escritores (e aquele que, além de escrever sua biografia, recusaria o pedido do amigo para que queimasse seus originais). O envolvimento de Kafka com a jovem distante, moradora em Berlim, acabou por consumir muitos daqueles momentos de impulso criativo que ele esperava reservar para a escrita. O autor de “A Metamorfose” não parecia mesmo caber na autoimagem de celibatário infeliz.
Esta biografia dos anos iniciais, que se faz a partir do espólio de Felice, descoberto por Reiner Stach nos Estados Unidos, inclui as cartas do escritor à amada (sem o contraponto das respostas de Felice, que Kafka destruiu), sempre entremeadas pela crença segundo a qual, para segui-lo, sua noiva deveria se prontificar a viver o inferno em vida. O raciocínio de Kafka, explicitado até mesmo ao pai dela, era simples, e caminhava pelo entendimento pequeno-burguês enraizado em seu meio social. Seria possível compartilhar o leito com quem não via outra razão para a existência exceto escrever, ademais sem ganhar dinheiro suficiente para isso?
O biógrafo Reiner Stach, com o ímpeto de historiador cultural
O biógrafo Stach, de 71 anos, é treinado no entendimento literário, filosófico e matemático. Seu poder de investigação parece infindo, embora ele veja no leitor médio o seu objeto, razão pela qual, ao escrever, jamais ceda à obscuridade. Como historiador cultural, Stach considera não apenas os fatos que cercaram a vida do escritor judeu em língua alemã na antiga Tchecoslováquia, mas também o conceito de sucesso e de fracasso literários naquele palco onde Kafka, em busca de concretizar sua visão, desconsiderou a gravidade da Primeira Guerra Mundial (é celebre a entrada em seu diário na qual diz ter ido nadar à tarde depois de decretado o conflito de manhã), distanciou sua literatura do sionismo militante praticado pela figura controversa de Brod e exerceu o humor aprendido no teatro iídiche mesmo em textos improváveis de sua autoria, como “O Processo”, cujo primeiro capítulo ele lera habilmente em voz alta de modo a provocar a risada dos amigos.
O flerte obsessivo com Felice foi uma prova muito dura. No verão de 1912, deu-se seu encontro com ela, e a difícil decisão de cortejá-la de maneira quase totalmente epistolar. Dois anos depois, aconteceu o rompimento do noivado. Nas duas vezes, diz seu biógrafo, Kafka sentiu estar sendo empurrado para a margem de sua própria existência. Nas duas vezes, ele mobilizou uma poderosa vontade de entrar nos moldes para combater a dissolução mental. Stach compreende estar lidando com uma mente poderosa e não busca rivalizar com ela, antes compreendê-la, algo seguro de que vai fracassar. Ele sabe que tudo o que percebe, Kafka aplica no que escreve, às vezes composições inteiras primeiramente deitadas nos diários que vão se tornar pequenos livros. Seu biografado está imbuído da perfeição, ciente de que sua missão é distinta de todos à volta, até mesmo do escritor Robert Musil, que o aceita no meio literário com reservas. Kafka era único no que fazia e podia provar.
Os melhores momentos da biografia situam-se na constatação da diferenciação deste saber. O que torna Kafka tão distinto de todos os artistas que o cercavam? Não era somente sua linguagem direta, enxuta, moderna, que certa vez obrigou um editor a aumentar o tamanho dos tipos e o entrelinhamento das páginas para apresentar ao mercado literário um volume de tamanho razoável contendo seus textos. A grandeza de Kafka estava no entendimento total que ele tinha de uma situação antes de relatá-la. Ao contrário do romancista polonês de língua inglesa Joseph Conrad (1857-1924), por exemplo, que certa vez disse ter construído a protagonista Winnie Verloc, de “O agente secreto”, a partir de observações coletadas ao acaso, Kafka começa a produzir a partir de um reservatório de ideias “que já está cheio”.
“A Metamorfose”, longe de ser seu livro predileto
Em seus diários, pode-se ler a evolução dos pensamentos que vão resultar em um futuro texto. Os diários comprovam que os campos de tensão, as metáforas, os gestos e os detalhes já estão prontos, frequentemente até na forma exata que terão no futuro. “Kafka não trabalha o abalo sofrido, ele trabalha o material acumulado que foi liberto pelo abalo”, observa Reiner Stach. “Assim se explica que as referências e associações entre os elementos visuais e linguísticos de seus textos tenham uma densidade tão única e desafiadora. Tudo parece corresponder a tudo. É como se Kafka não precisasse inventar ou desenvolver mais nada e pudesse usar toda a sua força criativa na integração, na perfeita articulação de todos os componentes.”
Mais que isso, ele constrói uma tensão que não será resolvida pela saída tradicional, a morte. A tensão em Kafka provém de uma perspectiva inusual para seus contemporâneos. É uma perspectiva que expõe apenas o que está dentro do horizonte de percepção do protagonista. O leitor entra em um estado de identificação cada vez mais forte com esse personagem, como se estivesse “sob o efeito de um campo gravitacional”, no dizer de Stach. É o caso de “A Metamorfose”, um texto que Kafka escreveu enquanto permanecia obsedado pela conclusão de outro texto, “O desaparecido”, e que não sentia a menor urgência em editar, tão espontâneo fora escrevê-lo e concluí-lo. “A Metamorfose” nascera da sensação de que nem mesmo sua única confidente, a irmã Ottla, aceitava sua necessidade de se distanciar de um empreendimento familiar, uma fábrica de amianto na qual a família desejava ter seu empenho, justamente nas horas vespertina de descanso. Ele chegara a um ponto de desvalorização pessoal sem volta, como uma barata pisada, conformada com seu destino. Kafka sempre quis ser publicado, mas jamais desejou aparecer. Especialmente, aparecer com este livro foi uma espécie de fim.
Esta resenha foi publicada originalmente pelo site do caderno Aliás do Estadão em 11 de janeiro de 2023
O poeta, professor e pensador da geração beatnik Claudio Willer, morto aos 82 anos neste 13 de janeiro de 2023, lamenta na reportagem abaixo, que fiz com ele em agosto de 2012, o uso não autorizado da sua tradução para um poema de Allen Ginsberg
Willer, alguém para quem a poesia significava vivenciá-la e um tradutor consciente da dificuldade de seu ofício
Claudio Willer tem asas nos pés. Asas porque poeta. Pés porque a poesia, como ele a entende, deve ser perseguida com o próprio corpo, o ritmo marcado no chão. Aos 72 anos, nascido em São Paulo, filho de judeu austríaco e mãe católica alemã, este gói cuja avó foi morta pelos nazistas representa o pensamento beat do Brasil. Não exatamente aquele de Jack Kerouac ou Allen Ginsberg, estilizado nos filmes, mas sua ambição libertária, a de experimentar a vida como poesia.
Willer é beatnik calmamente, mesmo quando em sua fala surgem inimigos como a acomodação da cena cultural brasileira, a mediocridade burguesa ou, recentemente, a usurpação de seus direitos de tradutor. “Você sobrevive de eu fumar?”, pergunta ele um pouco depois de pedir à esposa Maninha, pintora surrealista, que abra as janelas do apartamento onde me recebe na Vila Madalena. É que o cigarro o levará à palavra certa.
O autor de Estranhas experiências, poesia cursou Psicologia e Sociologia, mas, na São Paulo retratada pelo diretor Ugo Giorgetti em Uma Outra Cidade, decidiu-se por viver dos versos libertadores ou indiretamente deles, traduzindo quem os compõe, analisando sua obra ou alinhavando sua filosofia, como faz em um pós-doutorado tardio. A sua cidade de juventude, “provinciana pro melhor e pro pior”, foi seu início. Nas ruas ele andava a pé, na piscina da Associação Cristã de Moços nadava dois mil metros e nas mesas de bar poderia tomar “porres homéricos” enquanto transcorresse a leitura coletiva de O Poeta de Nova York, de Garcia Lorca, ou da Ode Marítima, de Fernando Pessoa.
O poeta percorrera um caminho curto do surrealismo à “rebeldia romântica” sem dar a mínima para os versos de João Cabral de Melo Neto ou de qualquer outro formalista da poesia. “Desde o começo, o beat me interessava como mensagem no seguinte sentido, o de estar acontecendo uma rebelião juvenil. Era um movimento rebelde coletivo, com aquele impacto, provocando enorme escândalo.” Além da poeta Hilda Hilst, que se tornou sua amiga mesmo depois de ele a ter “enterrado” em um performático “necrológio”, amava a “anarquia individualista” de Roberto Piva, a veia teatral de Décio Bar, o talento de Antonio de Franceschi ou a verve de Rodrigo de Haro.
“O Claudio sempre foi político e basicamente uma pessoa de grande generosidade. Equânime, ele divide e organiza as coisas, com muita bondade”, disse De Haro a Camila Hungria e Renata D’Elia, autoras de Os Dentes da Memória, livro sobre esta turma beatnik que, a bem da verdade, nem mesmo se intitulava assim. Culto, com domínio da língua inglesa, foi Willer, segundo o editor Massao Ohno, quem trouxe a poesia dos americanos ao grupo. Por necessidade social, espiritual ou poética, ele e os amigos de 20 anos não só escreviam ou declamavam poesias, como invadiam “os casarões de Higienópolis”, bebiam no Paribar da praça Dom José Gaspar e eventualmente quebravam o consultório do psiquiatra que tivesse levado um amigo à internação.
Willer não foi, portanto, menino fácil, embora a “burguesia filisteia” contra a qual ele e seus amigos lutavam igualmente apresentasse um corpo de dificuldades. Naquela São Paulo burguesa havia autoritarismo nas escolas, o trânsito vivia congestionado e as filas de ônibus eram comuns. O sexo estava confinado em zonas e as mulheres se dividiam entre as noivas intocadas e as prostitutas. Depois do final da década de 1960, com a chegada da contracultura, os burgueses locais “queimaram os próprios miolos” com cocaína “em vez de encher o saco da gente”. E mesmo Willer passou a entender a vida de outro modo. Existir pela poesia se tornou perigoso. Como lembra Roberto Piva em Uma Outra Cidade, os meninos da periferia que nos anos 1960 liam Baudelaire e tinham “os rostos rurais dourados queimados de sol” haviam sido substituídos por “pálidos criminalóides”, perambulando feito zumbis.
Aquele Willer beatnik transformou-se no pensador do beat que fala em universidades, tem bolsa da Fapesp e vive de muitos cursos. Ele acha que poderiam lhe estender um tapete vermelho maior. Ou, pelo menos, respeitar o caminho que trilhou. Willer é o tradutor de Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, e de Uivo e Outros Poemas, de Allen Ginsberg. Para traduzir Ginsberg, usou mais de duas décadas de experimentos. Em 1984, a L&PM publicou Uivo sob a consultoria do próprio Ginsberg, que endossou, entre outras, a tradução de leaping towards the poles of Canada & Paterson por pulando nos postes dos pólos do Canadá & Paterson.
Por conta de tantas dificuldades enfrentadas, Willer estrilou ao ver a sua tradução ser aplicada sem autorização à legenda brasileira do semidocumentário Uivo, dirigido por Robert Epstein, durante a Mostra Internacional de Cinema de 2010. “Reclamar com o Leon Cakoff ainda bem que não reclamei, porque ele morreria logo depois. Deixei por isso mesmo, mas mandei um email para meu editor, Ivan Pinheiro Machado, que não se interessou pelo assunto.” Em julho deste ano, ao assistir ao filme no canal Cinemax, Willer viu sua tradução mais uma vez em cena, sem créditos ou agradecimentos. Lá estava o verso I saw the best minds of my generation como ele o traduzira, Eu vi os expoentes da minha geração. “Mas, desta vez, como se tratava de tevê, o pessoal foi cretino. Em vez de usar a palavra ‘caralho’, como eu a escrevi, puseram ‘pênis’. Em lugar de ‘adoçaram as trepadas’, ficou ‘adoçaram as vaginas’. E a expressão ‘ofertaram seu ânus’ substituiu ‘deixaram-se enrabar’.”
O poeta expôs a situação em seu blog. Isa Carvalho, coordenadora da empresa 4 Estações, me diz que, em função do pouco tempo disponível para a legendagem durante a mostra, a tradutora Ludmila Breitman usou a versão contida no blog poemasbeatnick.blogspot.com.br, que não creditava a autoria: “Ela pede desculpas pelo problema causado e nós, como coordenadores, vamos reforçar essa questão na reunião com todos os tradutores esse ano.” Muito diferente foi a reação do canal HBO-Max (que programa novas sessões dias 12, 15 e 25 de agosto e 1 de setembro). A HBO não informa que empresa fez a legendagem. E diz: “A HBO adquire os direitos dos filmes que vão ao ar nos seus canais com todas as liberações necessárias para a exibição. Não foi registrado até o momento nenhum problema de direitos com o filme O Uivo, que está sendo exibido no canal Max. Sendo assim, a HBO não possui comentários sobre qualquer questão envolvendo o filme.” A editora do livro resume em uma frase sua posição oficial: “A L&PM não foi consultada sobre a utilização da tradução”. Neste momento, Claudio Willer se contenta com a repercussão do caso no blog. “Mas se essa versão passasse no cinema, eu fazia sair de cartaz. Se fosse comercializada em DVD, eu fazia prender.” Eis os pés com asas do poeta próximos da porta, perigosamente.
PS:
O pensador Claudio Willer, que viveu pela poesia, era uma pessoa de quem qualquer um prezaria se aproximar. Um personagem da cidade ou de “Uma Outra Cidade”, como no documentário de Ugo Giorgetti em que a cena de sua juventude literária, ao lado de Roberto Piva e de outros, ganhava detalhe.
Um dia, encontrei uma boa desculpa para entrevistá-lo, quando ele se irritara ao ver sua tradução para “O Uivo” usada sem autorização ou respeito. Depois da entrevista acima, nós nos falamos várias outras vezes, sem registro. E ele gentilmente aceitou o convite para a noite de autógrafos de um livro que eu escrevera, “O cineasta historiador”. Ainda em 2022, esteve presente numa roda virtual em comemoração ao ciclo de filmes documentais de Ugo Giorgetti dentro do Festival É Tudo Verdade, a última vez em que nos falamos.
Willer, sem você perdemos a alegria, mas por você continuaremos a resistir.
Claudio Willer ao meu lado em 2015, enquanto lhe redijo uma dedicatória do livro que acabara de lançar
E tem também que eu sinto uma frustração danada de não conseguir explicar as coisas para as pessoas queridas, como a faxineira que trabalha pra mim. Hoje veio me perguntar se a turma fez bagunça em Brasília domingo por causa do Bolsonaro ou da passagem de ônibus que o Lula aumentou. Juro.
Todos ao seu redor dizem que a passagem está cara demais e que faz sentido se manifestar contra Lula, embora ela entenda que as passagens não aumentavam havia muito tempo e que não tinha nada demais se ele decidisse aumentar um pouco agora.
Ou seja, com tudo o que vem sendo noticiado sobre a tentativa de golpe e com toda a atenção que dá aos problemas, minha querida não foi informada devidamente sobre o que aconteceu domingo. Não tem tempo para tevê. Só vê o zap.
Senti uma urgência de explicar e tentei. Mas, claro, o fracasso me espera. Ela não consegue entender a diferença entre os três poderes. Não sabe o que o é o Planalto. Muito menos o STF. Tampouco entende quem pode aumentar o preço da passagem. Não é Lula quem aumenta, tentei mostrar, é a administração municipal. E mais uma vez na vida me encalacrei para explicar o que é administração municipal, o que é o estado, a federação, um prefeito, um governador, um presidente, um juiz, um parlamentar. O que é atribuição.
No fim, resolvi dizer apenas que foi o Bolsonaro a tramar a bagunça, sim. E que fugiu do país antes da posse pra não ser preso, esperando ainda voltar presidente de novo, tirando o Lula da jogada. Principalmente, ele não queria que ninguém soubesse dos milhões gastos do nosso dinheiro, rachados com o dono da padaria. Um escândalo do qual só sabíamos agora porque o Lula quebrou o sigilo de cem anos do Bolsonaro.
Minha querida sorriu, não gosta dele, votou no Lula, mas, sinceramente, não sei se compreendeu tudo. Me consolei com o fato de ela ter constatado em Bolsonaro um filho da puta mais uma vez e de ter concluído que o pessoal da quebradeira foi muito sem noção, pois estava na cara que ou levaria tiro ou acabaria preso agindo daquele jeito.
O sentido de sucesso muda conforme o lado a partir do qual a gente vê a situação.
tenho um parente bozo raiz cujas postagens fake e de ódio denuncio dia sim dia não ao facebook.
nunca vi uma dessas postagens cancelada.
e meu sangue não para de subir.
me dá um saco cheio sem tamanho deste lugar de regras privativas, excludente da orientação democrática.
permaneço porque tenho amigos verdadeiros por aqui, além de pessoas que desejaria conhecer e de quem adoraria ser próxima.
sigo porque não assino mais jornais, uma vez que sei como são feitos e poupo os intestinos. diariamente, então, monto o noticiário no labirinto de matérias oferecidas pelos perfis jornalísticos.
permaneço porque nossos instrumentos de luta já são tão pequenos.
porque não consigo nem quero mais militar em partido.
porque não sou boa de assembleia, menos ainda conseguiria aceitar o centralismo diante de direções gerais.
no entanto me vejo rebelada todos os dias, movida pelas causas que detecto.
basicamente desobediente.
e isto me dá mesmo uma sensação de impotência diante da coletividade.
anos segregada pela escola rica onde era bolsista, anos à margem dentro de nosso jornalismo servil me fizeram provocativa e futucadora por conta própria.
gritei “nem patrões nem generais” nos anos finais da ditadura, durante os quais nunca fui agredida por PMs, nem maltratada e detida, ao contrário do que aconteceu com meu menino ao reproduzir um mais que necessário “fora temer” diante da praça roosevelt.
nem patrões nem generais – ainda hoje essas palavras martelam minha cabeça. e me perdoe a maioria de vocês, amigos fiéis, nem religião também.
minhas crenças são meus olhos, minha fidelidade, ao coração, meu norte, o pensamento, meu amor, ler, escrever, estudar, fotografar, o abraço, o sorriso.
a rede social às vezes me contempla. às vezes, me exclui.
se continuo, culpem minha teimosia. não tenho o espírito de cautela que hemingway detectou nos velhos, muito menos ainda, sabedoria.