Mil e uma Mônicas

Amo esta foto feita por Giancarlo Botti em 1973, no ateliê da Dior, porque nela está Monica Vitti de fato, mulher cultíssima e plena de talento, que em sua longa carreira, interrompida por uma doença degenerativa nos últimos anos, foi bem mais que uma só, tendo atuado do teatro à dublagem, atriz das maiores no cinema, diretora, escritora. A seguir deixo pra vocês uma tradução que fiz do obituário de Chiara Ugolini no jornal La Repubblica. É preciso conhecer mais de seu trabalho, não apenas com Antonioni, os cômicos também. Adeus, Monica, e nosso obrigado infinito!

“Monica Vitti, imenso talento do cinema italiano, está morta. Ela havia completado 90 anos em novembro, há anos afastada da vida pública devido à doença que a atingiu. Trabalhou com os maiores. Foi musa de Michelangelo Antonioni, companheira de aventuras de Alberto Sordi, mas também autora e diretora. A notícia de sua morte foi dada pelo marido Roberto Russo através de Walter Veltroni, que escreveu no Twitter: “Roberto Russo, seu parceiro de todos esses anos, me pede para comunicar que Monica Vitti se foi. Faço isso com dor, carinho, lamento”.

Monica Vitti foi capaz – única em sua geração – de cobrir toda a gama de expressões do cinema italiano. A mulher burguesa, neurótica, dolorosa da incomunicabilidade, de Michelangelo Antonioni. A plebeia, grosseira, de alegria contagiante, com Alberto Sordi. Referência essencial para todas as atrizes que vieram depois, Monica Vitti foi tudo: profunda, enigmática, sensual, espirituosa. Intelectual, popular, melancólica, inteligente. Extremamente bonita.

Nos últimos anos, devido a uma doença degenerativa, deixou de aparecer em público, mas seu legado se manteve muito forte no mundo do cinema, que, por ocasião de aniversários e aniversários, não deixou de lhe retribuir o carinho com exposições fotográficas e críticas de seus mais de cinquenta filmes.

Uma carreira extraordinária e muitos prêmios: 5 David di Donatello como melhor atriz (mais quatro outros especiais), 3 Nastri d’Argento, 12 Globo de Ouro (incluindo dois pelo conjunto da obra), um Ciak de Ouro e um Leão de Ouro pela carreira em Veneza, um Urso de Prata em Berlim, Cocha de Plata em San Sebastián, indicação ao Prêmio BAFTA.

E de pensar que Monica Vitti nem tinha intenção de se dedicar ao cinema! Sua paixão era o teatro, descoberto ainda criança durante a guerra (nasceu Maria Luisa Ceciarelli em Roma, 3 de novembro de 1931), quando brincava com seus irmãos, encenando espetáculos de marionetes para distraí-los da realidade que os cercava.

A estreia, ainda menina, aconteceu no teatro com “A inimiga” de Dario Niccodemi. Foi estudar na Academia Nacional de Arte Dramática (onde se formou em 1953) e manteve uma curta mas intensa atividade teatral, interpretando de Shakespeare a Molière, de Brecht a “Seis histórias para rir”, de Luciano Mondolfo. Depois veio a dublagem e foi ali mesmo, na sala de controle, enquanto Monica emprestava sua voz para a atriz Dorian Gray em “O Grito”, que Antonioni disse a frase destinada a mudar sua carreira e sua vida: “Você tem uma bela nuca, poderia fazer cinema”.

O encontro com Antonioni implodiu todos os projetos da atriz, que estava prestes a se casar com um namorado arquiteto. Vitti se tornou a musa do diretor e daquela página de seu cinema dedicada às neuroses de casal, às angústias da mulher moderna. Um após outro, vieram Aventura (1960), A noite (1961), Eclipse (1962) e Deserto rosso (1964): quatro mulheres diferentes mas semelhantes, quatro variações sobre o mesmo tema, a atormentada Claudia que procura a amiga entre as ilhas Eólias, a sedutora Valentina que “rouba” Mastroianni de Jeanne Moreau, a misteriosa e descontente Vittoria que é cortejada sem entusiasmo pelo corretor Alain Delon e a deprimida e atormentada Giuliana, esposa de um empresário insatisfeito com a vida.

Na segunda metade da década de 1960, separou-se de Antonioni e de seu cinema para frequentar a comédia, que havia exercido no teatro. Com Mario Monicelli (La ragazza con la pistola, 1968) finalmente conseguiu libertar sua visão cômica, já claramente anunciada por seu professor na academia, Sergio Tofano. Linda e elegante, ela foi uma das primeiras atrizes a conseguir demonstrar que para fazer as pessoas rirem não era preciso ser feia ou indesejável. Ao lado de Alberto Sordi (que sofre muito por ela em Amore mio aiutami) começou uma parceria que os levaria ao grande sucesso Polvere di stelle, em 1973. Fez colaborações com Ettore Scola (Ciúme à italiana, ao lado de Giancarlo Giannini e Marcello Mastroianni), Dino Risi (Noi donne siamo fatte così), Luciano Salce (Pato com laranja), Nanni Loy, Luigi Comencini (dois dos episódios de Basta che non si sappia in giro).

Na década de 1970, a atriz foi dirigida três vezes por seu então parceiro, o diretor de fotografia de Antonioni, Carlo Di Palma, que passou a atuar como cineasta. Ela é Teresa a Ladra, filme de estreia de Di Palma (1973), depois Qui comincia l’avventura (1975), uma motociclista que veste couro e capacete em filme com Claudia Cardinale (antecipando Thelma e Louise) em Mimì Bluette…fiore del mio giardino, de 1976. Nos anos setenta houve também algumas incursões na televisão, enquanto continuou a frequentar o teatro. Em 1974, com Raffaella Carrà e Mina cantou Bellezze al bagno no espetáculo de variedades Milleluci, quatro anos depois atuou para a televisão na comédia O cilindro, de Eduardo De Filippo.

A partir dos anos 1980 Monica Vitti começou a diminuir as aparições no cinema, trabalhando especialmente nos filmes dirigidos por seu novo parceiro, o fotógrafo still que mais tarde se tornaria o diretor Roberto Russo (Flirt, 1983; Francesca è mia, 1986), com quem, após 27 anos de relacionamento, se casou em 2000. Dez anos antes, sua estreia como diretora do filme Escândalo Secreto, escrito e interpretado por ela, deu-lhe uma última grande satisfação, o prêmio David di Donatello como melhor estreia. É a história de Margherita, a própria Vitti, que recebe de presente de um amigo diretor uma câmera muito moderna, automática e completa, com controle remoto; sua vida mudará radicalmente e a máquina revelará não apenas a traição de seu marido com sua melhor amiga (Catherine Spaak), mas também a desolação de sua própria existência. Em sua vida, escreveu dois livros: em 1993 “Seven Skirts”, uma autobiografia que recebeu o título do apelido que tinha em criança, “Sete vestidos”, pois, se estivesse com pressa, conseguia colocar um vestido por cima de outro… E depois, em 1995, “A cama é uma rosa”, em que escreveu: “A perda me aperta pela garganta como uma jibóia transparente. Não posso provar que existe, mas me envolve e rasteja no meu rosto, prometendo horrores …”

Em 35 anos de cinema, fez 55 filmes. Ao nos despedirmos de Monica Vitti damos adeus às muitas mulheres que ela interpretou com graça, feminilidade e coragem. As mulheres atormentadas de Antonioni, a espiã Modesty Blaise de Joseph Losey, a siciliana seduzida e traída que voa até Londres para se vingar e descobre a liberdade, a Giuliana de Natalia Ginzburg trazida à tela por Luciano Salce em Casei com você por alegria, a mulher que inventou o movimento: Mimì Tirabusiò. E na floricultura de Scola, a Adelaide dividida entre o pedreiro Mastroianni e o pizzaiolo Giannini. Monica, muitas mulheres em uma só.”

A névoa vermelha de Antonioni

Uma entrevista realizada pela tevê francesa com o cineasta, nascido em Ferrara há 105 anos, detalha o processo de criação de O Deserto Vermelho, sobre a fatalidade industrial

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Monica Vitti em O Deserto Vermelho (Deserto Rosso), de Michelangelo Antonioni, 1964

O Deserto Vermelho, de Michelangelo Antonioni, ganhou o Leão de Ouro de Veneza como melhor filme em 1964. Felizmente, houve em 2021 a reedição em DVD desta obra-prima roteirizada por Tonino Guerra e fotografada por Carlo Di Palma sobre a explosiva (porque colorida) melancolia da sociedade industrial. O lançamento do filme pela Versátil trazia este grande documento, uma entrevista com o diretor, exibida pela televisão francesa em 12 de novembro de 1964.

Eu a transcrevo aqui. E, no link a seguir, você pode assistir à conversa sem legendas, transmitida pelo 2eme Chaine sob o título Les Écrans de La Ville avec Michelangelo Antonioni.

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Antonioni junto à atriz Monica Vitti: “Penso que o progresso seja algo inexorável, como uma revolução. Eventualmente há quem sofra, mas há quem se adapte, e há quem não se adapte, o que resulta, claro, em crises. Mas para mim esse mundo contém mesmo um lado de beleza”

O sr. pode nos contar qual a origem de O Deserto Vermelho?

Acho que eu tive a ideia visitando Ravena. Eu conhecia Ravena, estive ali muitas vezes, pois fica perto da minha cidade, Ferrara. E acompanhei sua transformação de um mundo natural para um mundo industrial. Quando jovem, ia a Ravena até para jogar tênis, jogava muito e bem naquela época (risos). A última vez que fui visitá-la tive uma impressão extraordinária. Fiquei chocado com a transformação industrial da área. E não sei bem como, veio a ideia do filme. É mais uma obra sobre um ambiente do que sobre um personagem. Falei com técnicos e operários, entrei na casa deles, achei tudo aquilo muito interessante, e avaliei que a cidade era quase um símbolo do progresso da cidade moderna. Daí a vontade de fazer o filme.

Ao usar como cenário esse mundo moderno de fábricas o sr. o vê como desagradável para a maioria das pessoas ou como um mundo no qual se deve viver e se adaptar? Seus personagens não se adaptam. Isto reflete sua atitude pessoal em relação a esse mundo?

Não sou contra o mundo moderno. O mundo industrial simboliza um pouco o progresso e não se pode ser contra o progresso. Ademais, seria inútil. Mas eu penso que o progresso seja algo inexorável, como uma revolução. Eventualmente há quem sofra, mas há quem se adapte, e há quem não se adapte, o que resulta, claro, em crises. Mas acho que esse mundo contém mesmo um lado de beleza. Por exemplo, há uma estrada que vai de Ravena ao mar, a Porto Corsini, exatamente, de onde se vê meio horizonte só de fábricas, torres, chaminés, refinarias e coisas assim, e o outro lado, o lado oposto, é totalmente coberto por um pinheiral. Eu acho a linha rica representada pelas fábricas muito mais bonita mesmo esteticamente do que a linha verde, tão uniforme, do pinheiral. É que atrás das fábricas sente-se o homem, há vida, e atrás do verde do pinheiral não há nada, há os animais, há um mundo selvagem, que me interessam menos.

 

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É um engano pensar que o senhor busca referências na pintura no seu modo de tratar a cor?

Eu acho que sim, porque eu não penso em pintor algum. Gosto muito de pintura, mas não tive, acho, influência de nenhum de seus artistas. Isto é, não há pintura no longa, no sentido literal da palavra. É diferente. Quando se faz um filme em cores deve se buscar, acredito, um ritmo de cores. Isso não existe em pintura. Usamos a cor, eu digo, de modo funcional, para descrever a história. Quer dizer, se acho uma cor útil para a sugestão que a cena deve dar ao público, eu a utilizo. Compreende? Às vezes, não a encontramos na realidade, e por isso coloquei as cores de que precisava. Pintei as árvores, já se sabe, pintei as casas, mas foi porque precisava dessa cor e não a achava.

Em relação aos sentimentos de seus personagens?

Em relação aos sentimentos que queria mostrar.

 

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O sr. mandou queimar uma pradaria, colocou cores totalmente diferentes nas casas, e fala-se de um bosque que o sr. pintou.

É verdade. Mas eu não pude rodar a cena por causa do sol. Havia um bosque que me interessava, ao lado de uma fábrica muito grande, importante, com quatro mil operários. E o filme deveria começar por uma greve, aliás ele começa por uma greve, e essa greve deveria acontecer perto do bosque. O bosque era verde, claro, mas eu sentia que esse verde não era adequado ao momento. Então, quis pintar o bosque de branco, aliás, de cinza. O branco sobre o verde dava uma cor cinza. Fizemos isso, pintamos a região durante uma noite toda, com uma grande bomba, que soltava um tipo de tinta, mas era quase uma fumaça. Contudo, no dia seguinte, pela manhã, não pude filmar, porque ficamos contra o sol e o bosque parecia preto.

 

deserto69 Monica Vitti e Richard Harris em cena de O Deserto Vermelho

 

O sr. pode falar do personagem interpretado por Monica Vitti?

É uma neurótica. Evidentemente, há… Devo dizer que não é esse meio industrial e moderno que provoca a neurose. Ela já existia nessa mulher, não se sabe onde ela se originou, mas, nesse caso, ela já era neurótica. O meio provoca a eclosão dessa crise.

O personagem de Monica Vitti neste filme tem alguma relação com o de O Eclipse ou de A Aventura?

Eu não acho. São todas personagens bem diferentes. Por exemplo, em A Aventura, trata-se de uma jovem normal, menina burguesa, com sentimentos normais, uma psicologia normal, e a personagem de O Eclipse talvez esteja um pouco mais próxima deste porque se trata, ali, de um personagem de uma jovem mais sábia, consciente do que lhe acontece, e que tenta achar sozinha a solução do problema de sua vida. Enquanto em O Deserto Vermelho estamos diante de uma mulher neurótica, quase esquizofrênica, que não sabe como resolver seus problemas. Conheci e visitei muitos neuróticos, passei dias e dias com eles e posso dizer que cada gesto deste personagem foi baseado na realidade.

Para o sr., este personagem tem o valor de um símbolo?

Nunca penso que trabalho com símbolos, mas com homens e mulheres dos quais procuro aprofundar o caráter, a psicologia. Dou o melhor de mim sem pensar em seus significados. Essas coisas vêm a posteriori, depois do filme pronto, nunca antes.

Há algo que talvez seja uma lenda sobre o sr. Dizem que só dá aos atores as suas próprias falas, e não os outros diálogos, porque não lhe interessa que tenham uma visão conjunta do filme, que é só sua, não de interesse dos atores.

Não. Isto é paradoxal, mas, como em todo paradoxo, há um fundo de verdade. Entendo que o ator deva trabalhar mais pelo instinto do que pela razão. Dizer que o ator que mais entende seu papel é um ator melhor equivaleria a afirmar que o ator mais inteligente é o melhor, e isto não é verdade… Tento provocar no ator a maior sinceridade possível. Às vezes, por meios não muito ortodoxos, mas que dão resultados.

Nunca busquei compromissos com a produção, digamos. Senão teria ficado rico. Mas, ao contrário, não sou rico. Procurei fazer o filme que eu quis fazer, com muita sinceridade e só.

Que tipo de problema lhe colocou, por exemplo, a incompreensão dos críticos, ou o fato de os filmes não funcionarem? O sr. pensava estar acima disso? Julgou que faria o que quisesse e que o resto não importava?

Bem, nesse caso pensamos em tudo, até mesmo que fazemos filmes ruins e que não podemos pretender que os críticos os achem bons.

Isso lhe aconteceu?

Sim, com certeza. Eu não sou filósofo nem sociólogo. Eu vejo todas as coisas por outro lado. Creio que não devemos pensar em nosso trabalho antes ou depois, mas enquanto o fazemos. Então, você está atrasado ao me fazer essa pergunta agora.

Então, fim de entrevista. Tudo foi dito.

Quem me dera. (sorrindo)

IL DESERTO ROSSO - Italian Poster 2