Gina Lollobrigida e Aldo Fabrizi em “Vita da cani”, de Steno e Monicelli, 1950
“Vita da Cani”, com Gina Lollobrigida e Aldo Fabrizi, é um filme maravilhoso sobre o qual me risca o coração escrever. De 1950, dirigido por Steno e Mario Monicelli, vem centrado nos apuros de uma companhia de variedades mambembe diante da chegada do cinema. Fabrizi, que foi um dos maiores atores do mundo inteiro, interpreta o dono da companhia, a fazer surgir o talento da jovenzinha Lollo. Ela o ama, ele tb a quer, mas sabe que se a dançarina se prender a sua miséria, vai se apagar… Há uma sequência mágica com Fabrizi diante da tela em que é projetado um filme, justamente no espaço em que a companhia se apresenta. Vocês que entendem dessas coisas, baixem esse monumento. E nos passem pelo Google drive pf rs.
Filmes no Festival de Cinema Italiano navegam em torno do humorismo de reflexão
Não sei se sabem que fica em cartaz até 4 de dezembro o Festival de Cinema Italiano. Gratuito, no streaming. Muita coisa realmente boa está ali para ser vista desde o sofá. Como se trata de festival italiano, não perca a retrospectiva. Não há só Visconti, o soberbo, com “O inocente”. O riso clássico tem seu espaço aqui.
Encanto, assombro, grotesco, reflexão, eis alguns ingredientes da comédia à italiana. Um cinema sobre perdedores, enganados, pequenos, esquecidos. Cinema direto, emocional, feito de autoderrisão. Meu cinema…
Bem poucos, mas importantes filmes dessa linhagem cômica estão no festival. Dois deles, de Dino Risi, são conhecidos e bem-sucedidos em épocas diferentes: “Pão, amor e…”, com Sofia Loren e Vittorio de Sica, e “Venha dormir lá em casa esta noite”, com Ugo Tognazzi e Ornella Muti (e uma curiosa tradução para o título que em italiano significa “A alcova do bispo”.) Ironista implacável e pleno de musicalidade, Risi se formou médico, mas trocou a carreira pelo cinema por se ver incapaz de curar…
O terceiro dos filmes é o raramente visto “O mal obscuro”, de 1990, com roteiro dos espetaculares Suso Cecchi D’Amico e Tonino Guerra para o livro homônimo de Giuseppe Berto (editora 34). Dirigido por Mario Monicelli, o filme encontra o humorismo na situação extrema vivida por um escritor que sintomatiza seu terror psicológico. O protagonista é vivido pelo Giancarlo Giannini estupendo de sempre. Eis um ator para qualquer papel ou dialeto, com sua extensão física e intensidade expressiva. Que face perfeita para vestir a solidão!
Com filmes assim você conhece um outro tipo de humorismo. Não se trata de piada ou insulto. São roteiros trabalhados sobre gags, situações físicas e emocionais no limite da realidade, muitas vezes nem mesmo engraçados, frequentemente trágicos, dramáticos, temperados pelas trevas, tão habituais nos seres humanos.
Ontem assisti a “Comedians” (veja a sequência de frames), um filme feito pelo napolitano Gabriele Salvatores, em 2021, a partir de uma peça inglesa de Trevor Griffiths. Salvatores ajuda a explicar esse humor a que me refiro, descendente da tese de Luigi Pirandello segundo a qual o verdadeiro riso nasce da reflexão. O filme é um exercício teatral que mostra comediantes horas antes de uma seleção a ser aplicada pelo personagem de Christian de Sica, filho do diretor Vittorio e estrela da televisão italiana. “Comedians” faz perguntas. Que humor importa? O que busca espelhar a expectativa do espectador ou aquele que pretende despertar o potencial de transformação adormecido nele?
Soube que Jacques Perrin morreu dia 21, aos 80 anos. Amava-o nos filmes de Valerio Zurlini. Que triste e maravilhoso é “Cronaca Familiare” (Dois Destinos), de 1962.
Mastroianni vive ali o irmão maior, inconformado, voluntarioso, que tenta ensinar algo da sua força ao caçula, frágil e contido até a morte.
Me parece haver também no filme a alusão a um amor entre homens, impossibilitado pela educação social. A direção de atores é estupenda, como em qualquer filme de Zurlini. E como estão perfeitos aqui!
Catherine Spaak morreu. Tinha 77 anos. Atriz, cantora, dançarina e apresentadora da TV italiana, nascida francesa, foi musa de muitos diretores. Dino Risi, que a dirigiu em “Il Sorpasso”, o oitavo filme de que participou, deu-lhe fama.
Aos 17 anos, em “Il Sorpasso”, depois de sete filmes
Tinha 17 anos quando deu à luz a filha Sabrina. Por não se sentir à vontade na casa da família do pai da criança, ator que conhecera num set e com quem passaria a viver, fugiu com a menina. Foi presa e a justiça tirou-lhe o direito de ver a filha. Nunca mais a viu. Mas continuou a trabalhar e a viver no cinema dessa Itália machista, no meio musical e na tevê.
A elegância que a acompanhou
Casou-se quatro vezes e seu último marido era 18 anos mais novo. Tinha vivacidade, um rosto feito para o cinema, entrega e elegância.
Em 2020, poucos dias após o isolamento imposto pela pandemia, ela foi atingida por uma hemorragia cerebral e não se recuperou.
Eu me lembro que, jovem, não morria de amores por homem bonito, não. Nem queria saber. E nem eles, é verdade, queriam saber de mim. Homem bonito não servia pra nada, enrolado em si.
A gente chamava os meninos de Alain Delon pra sacanear, especialmente quando eram feios e se achavam, ainda por cima.
Cresci e me amedrontei de Delon porque não era um ator deste mundo. Sem medo algum. A câmera que se virasse em segui-lo. Não se submetia a nada, furava nossos olhos de espectadores e seguia na maior calma.
Valerio Zurlini o chamou pra trabalhar com ele naquele monumento que foi “A Primeira Noite de Tranquilidade”, queria estar com seu aparato de arte pra discutir o papel, jantar e almoçar, e qual o quê. Delon ia dormir.
E depois, como todo homem bonito demais, varou as mulheres sem qualquer preocupação, até prometendo amor. Romy Schneider, Mireille Darc, Norma Bengell, vixe! E talvez se apaixonasse mesmo por elas por muitos segundos intensos. Com Monica Vitti, eram dois moleques em cena, uma entre mil razões pelas quais acho a Vitti um caso tão especial, pra não dizer sozinho.
Pra mim, Delon é um italiano de alma, e dos brabos. Com a imensa vantagem de não ser um italiano de verdade, com todo o meu perdão aos italianos, eu que sou neta de um Danielle que conquistou minha vó Guilhermina lá dos Açores justo por ser, no entendimento dela, um veneziano bonitão.
Eu tive amigos capazes de delonizar o coração da gente não por serem bonitos como ele, mas por nos arrastarem até seus olhos, mesmo em situações inglórias, sei lá, debaixo de um erro colossal como o Minhocão. Homem bonito é uma qualidade interior. Encontro bonitos todos os dias na rua e meu facebook está cheio deles. Mas são sacanas, ousados diante desta vida miserável que vivemos, como o Delon foi?
Então, adoro falar dele como amo gastar algum minuto a pensar em Sidney Poitier, Geraldo del Rey, Paul Newman, homens tão maravilhosos do cinema. Tenho certeza de que se tornaram bem mais interessantes quando envelheceram, sabedores. Ninguém mora com alegria nos palácios do passado, a menos que desista do encantamento da vida, como Delon desistiu.
Amo esta foto feita por Giancarlo Botti em 1973, no ateliê da Dior, porque nela está Monica Vitti de fato, mulher cultíssima e plena de talento, que em sua longa carreira, interrompida por uma doença degenerativa nos últimos anos, foi bem mais que uma só, tendo atuado do teatro à dublagem, atriz das maiores no cinema, diretora, escritora. A seguir deixo pra vocês uma tradução que fiz do obituário de Chiara Ugolini no jornal La Repubblica. É preciso conhecer mais de seu trabalho, não apenas com Antonioni, os cômicos também. Adeus, Monica, e nosso obrigado infinito!
“Monica Vitti, imenso talento do cinema italiano, está morta. Ela havia completado 90 anos em novembro, há anos afastada da vida pública devido à doença que a atingiu. Trabalhou com os maiores. Foi musa de Michelangelo Antonioni, companheira de aventuras de Alberto Sordi, mas também autora e diretora. A notícia de sua morte foi dada pelo marido Roberto Russo através de Walter Veltroni, que escreveu no Twitter: “Roberto Russo, seu parceiro de todos esses anos, me pede para comunicar que Monica Vitti se foi. Faço isso com dor, carinho, lamento”.
Monica Vitti foi capaz – única em sua geração – de cobrir toda a gama de expressões do cinema italiano. A mulher burguesa, neurótica, dolorosa da incomunicabilidade, de Michelangelo Antonioni. A plebeia, grosseira, de alegria contagiante, com Alberto Sordi. Referência essencial para todas as atrizes que vieram depois, Monica Vitti foi tudo: profunda, enigmática, sensual, espirituosa. Intelectual, popular, melancólica, inteligente. Extremamente bonita.
Nos últimos anos, devido a uma doença degenerativa, deixou de aparecer em público, mas seu legado se manteve muito forte no mundo do cinema, que, por ocasião de aniversários e aniversários, não deixou de lhe retribuir o carinho com exposições fotográficas e críticas de seus mais de cinquenta filmes.
Uma carreira extraordinária e muitos prêmios: 5 David di Donatello como melhor atriz (mais quatro outros especiais), 3 Nastri d’Argento, 12 Globo de Ouro (incluindo dois pelo conjunto da obra), um Ciak de Ouro e um Leão de Ouro pela carreira em Veneza, um Urso de Prata em Berlim, Cocha de Plata em San Sebastián, indicação ao Prêmio BAFTA.
E de pensar que Monica Vitti nem tinha intenção de se dedicar ao cinema! Sua paixão era o teatro, descoberto ainda criança durante a guerra (nasceu Maria Luisa Ceciarelli em Roma, 3 de novembro de 1931), quando brincava com seus irmãos, encenando espetáculos de marionetes para distraí-los da realidade que os cercava.
A estreia, ainda menina, aconteceu no teatro com “A inimiga” de Dario Niccodemi. Foi estudar na Academia Nacional de Arte Dramática (onde se formou em 1953) e manteve uma curta mas intensa atividade teatral, interpretando de Shakespeare a Molière, de Brecht a “Seis histórias para rir”, de Luciano Mondolfo. Depois veio a dublagem e foi ali mesmo, na sala de controle, enquanto Monica emprestava sua voz para a atriz Dorian Gray em “O Grito”, que Antonioni disse a frase destinada a mudar sua carreira e sua vida: “Você tem uma bela nuca, poderia fazer cinema”.
O encontro com Antonioni implodiu todos os projetos da atriz, que estava prestes a se casar com um namorado arquiteto. Vitti se tornou a musa do diretor e daquela página de seu cinema dedicada às neuroses de casal, às angústias da mulher moderna. Um após outro, vieram Aventura (1960), A noite (1961), Eclipse (1962) e Deserto rosso (1964): quatro mulheres diferentes mas semelhantes, quatro variações sobre o mesmo tema, a atormentada Claudia que procura a amiga entre as ilhas Eólias, a sedutora Valentina que “rouba” Mastroianni de Jeanne Moreau, a misteriosa e descontente Vittoria que é cortejada sem entusiasmo pelo corretor Alain Delon e a deprimida e atormentada Giuliana, esposa de um empresário insatisfeito com a vida.
Na segunda metade da década de 1960, separou-se de Antonioni e de seu cinema para frequentar a comédia, que havia exercido no teatro. Com Mario Monicelli (La ragazza con la pistola, 1968) finalmente conseguiu libertar sua visão cômica, já claramente anunciada por seu professor na academia, Sergio Tofano. Linda e elegante, ela foi uma das primeiras atrizes a conseguir demonstrar que para fazer as pessoas rirem não era preciso ser feia ou indesejável. Ao lado de Alberto Sordi (que sofre muito por ela em Amore mio aiutami) começou uma parceria que os levaria ao grande sucesso Polvere di stelle, em 1973. Fez colaborações com Ettore Scola (Ciúme à italiana, ao lado de Giancarlo Giannini e Marcello Mastroianni), Dino Risi (Noi donne siamo fatte così), Luciano Salce (Pato com laranja), Nanni Loy, Luigi Comencini (dois dos episódios de Basta che non si sappia in giro).
Na década de 1970, a atriz foi dirigida três vezes por seu então parceiro, o diretor de fotografia de Antonioni, Carlo Di Palma, que passou a atuar como cineasta. Ela é Teresa a Ladra, filme de estreia de Di Palma (1973), depois Qui comincia l’avventura (1975), uma motociclista que veste couro e capacete em filme com Claudia Cardinale (antecipando Thelma e Louise) em Mimì Bluette…fiore del mio giardino, de 1976. Nos anos setenta houve também algumas incursões na televisão, enquanto continuou a frequentar o teatro. Em 1974, com Raffaella Carrà e Mina cantou Bellezze al bagno no espetáculo de variedades Milleluci, quatro anos depois atuou para a televisão na comédia O cilindro, de Eduardo De Filippo.
A partir dos anos 1980 Monica Vitti começou a diminuir as aparições no cinema, trabalhando especialmente nos filmes dirigidos por seu novo parceiro, o fotógrafo still que mais tarde se tornaria o diretor Roberto Russo (Flirt, 1983; Francesca è mia, 1986), com quem, após 27 anos de relacionamento, se casou em 2000. Dez anos antes, sua estreia como diretora do filme Escândalo Secreto, escrito e interpretado por ela, deu-lhe uma última grande satisfação, o prêmio David di Donatello como melhor estreia. É a história de Margherita, a própria Vitti, que recebe de presente de um amigo diretor uma câmera muito moderna, automática e completa, com controle remoto; sua vida mudará radicalmente e a máquina revelará não apenas a traição de seu marido com sua melhor amiga (Catherine Spaak), mas também a desolação de sua própria existência. Em sua vida, escreveu dois livros: em 1993 “Seven Skirts”, uma autobiografia que recebeu o título do apelido que tinha em criança, “Sete vestidos”, pois, se estivesse com pressa, conseguia colocar um vestido por cima de outro… E depois, em 1995, “A cama é uma rosa”, em que escreveu: “A perda me aperta pela garganta como uma jibóia transparente. Não posso provar que existe, mas me envolve e rasteja no meu rosto, prometendo horrores …”
Em 35 anos de cinema, fez 55 filmes. Ao nos despedirmos de Monica Vitti damos adeus às muitas mulheres que ela interpretou com graça, feminilidade e coragem. As mulheres atormentadas de Antonioni, a espiã Modesty Blaise de Joseph Losey, a siciliana seduzida e traída que voa até Londres para se vingar e descobre a liberdade, a Giuliana de Natalia Ginzburg trazida à tela por Luciano Salce em Casei com você por alegria, a mulher que inventou o movimento: Mimì Tirabusiò. E na floricultura de Scola, a Adelaide dividida entre o pedreiro Mastroianni e o pizzaiolo Giannini. Monica, muitas mulheres em uma só.”
Na foto em que Vittorio De Sica, Roberto Rossellini e Federico Fellini aparecem juntos, um Monte Rushmore do cinema se descortina
Tenho algo a comentar sobre esta foto, cujo autor infelizmente desconheço, na qual Vittorio De Sica (1901-1974), Roberto Rossellini (1906-1977) e Federico Fellini (1920-1993) estão reunidos.
Acho a imagem estonteante por muitas razões. A principal entre elas, para além da ausência de mulheres diretoras (sendo que a aurora do cinema dramático foi feminina, também na Itália), é o fato de que De Sica seja a figura referencial entre os três.
Fala-se muito em Rossellini e Fellini como pais fundadores de um novo cinema de autor, mas quem dá ainda hoje a De Sica algum reconhecimento nesse campo?
Claro que isto nem sempre aconteceu assim…
Embora tendo sido o criador do cinema moderno, um diretor de onde tudo partiu, até hoje insuperável como talento individual, Rossellini olha para De Sica como quem tem a aprender. Com muito amor, eu diria.
De Sica era bem maior que Rossellini, ao menos como personalidade célebre, na época simultânea em que os dois surgiram como diretores de primeira ordem de longas-metragens ficcionais. De Sica havia atuado no teatro e sido galã das primeiras comédias realistas do cinema italiano, com Mario Camerini. E Rossellini, que jamais havia adentrado esse seu mundo, respeitava o ideário social e a naturalidade da atuação deste homem, a quem chamou para protagonista em “Generale della Rovere” (De Crápula a Herói, 1959).
Nada que De Sica tivesse feito (e ele na vida precisou driblar até mesmo Goebbels, que o queria cineasta na Alemanha, e nesse processo o diretor salvou muitos profissionais condenados do cinema, algo que posso comentar aqui depois) era menor para Rossellini.
Por sua vez, Rossellini teve um diretor-assistente chamado Fellini que, embora fosse sua aposta de futuro, um dia o decepcionou. Essa mania de Fellini de comentar tudo sob uma perspectiva pessoal de criança impressionável não agradava Rossellini, assim como era detestada por Mario Monicelli, seu discípulo torto na commedia all’italiana…
Então, para voltar à foto, De Sica era amado por Rossellini, que no entanto a essa altura tinha dificuldades com Fellini, uma figura auto-alijada da vasta busca neorrealista (e neste sentido Rossellini seria um pouco como Freud e Fellini, como seu discípulo Jung).
Fellini olha De Sica protegendo-se ou não? Além disso, De Sica um dia disse não a Fellini, que no filme “Os Boas Vidas” (I Vitelloni, 1953) o queria no papel de um diretor de teatro homossexual…
Não é demais imaginar tudo isto resumido numa fotografia? O registro de um monte Rushmore, no entanto cheio de sutilezas e farpas não visíveis, mas, ainda assim, perceptíveis?
– Pobre Stracci! Morrer foi a única maneira de se lembrar de que viveu.
Orson Welles em “A Ricota”, episódio de Pasolini em “Rogopag” (1963) no qual o estadunidense encena o diretor da “Paixão de Cristo” no set.
Welles diz a frase ao constatar que seu ator, representando o Bom Ladrão, morreu humilhado depois de comer exageradamente tudo o que não lhe havia sido permitido comer antes.
No filme, Pasolini faz o Bom Ladrão representar o pobre que vota em seus algozes e que enxerga na capacidade de passar fome sua verdadeira vocação.
Pasolini, sempre urgente para nós.
O Ladrão Bom, para quem a morte ressalta que viveu
No longa em exibição na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a filha mais nova do pensador alemão tem a trágica trajetória narrada pela cineasta italiana Susanna Nicchiarelli
Romola Garai interpreta Eleanor, filha caçula de Marx e socialista dedicada à obra do pai
Antes de sua morte em 1883, aos 65 anos, Karl Marx assistiu ao perecer de cinco de seus familiares mais íntimos, quatro filhos e a mulher Jenny. Foi um marido apaixonado e um pai tão bom para todos que, enquanto se concentrava para a escrita de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, por vezes interrompeu o trabalho e se atrelou, como um cavalo, a uma fila de cadeiras de pés quebrados. Atrás dele, os filhos usavam sobre suas costas um chicote imaginário, e assim ele fazia a carruagem andar.
Patrick Kennedy vive Edward Aveling, militante marxista que significou a ruína para Eleanor
Eleanor, a Tussy, era a filha mais nova a puxar pelo pai. Estudiosa de sua obra, ela inicialmente, como a irmã Jennychen, desejou os palcos, mas o pai a proibiu de ser atriz. Suas filhas, preocupava-se Marx, deveriam casar-se bem para evitar a miséria e a exclusão social. Ainda assim, elas prosseguiram a pensar, traduzir e ler. Nascida na Inglaterra, Eleanora formulou parâmetros para a ação libertária feminina dentro da Liga Socialista. Mas, no meio disso, uniu-se ao eminente militante marxista britânico Edward Aveling, um mulherengo e perdulário que foi sua ruína. Suicidou-se aos 43 anos, da mesma forma que a irmã Laura, morta junto ao marido Paul Lafargue.
Eleanor em foto de 1871, aos 16 anosA eletrizante biografia da família Marx, aqui publicada em 2013
MISS MARX, longa-metragem da italiana Susana Nicchiarelli, parece sabedor das informações apontadas neste texto, muitas delas organizadas na eletrizante biografia familiar “Amor e Capital”, de Mary Gabriel (Zahar, 2013). Mas as utiliza displicentemente, como se falasse apenas aos marxistas sabedores dos bastidores históricos. O filme sofre de mimetizar a ousadia de Sofia Coppola, que um dia transformou Maria Antonieta em uma figura hollywoodiana sobre os tênis do presente.
Susanna Nicchiarelli, a diretora de Miss Marx
Eis que Nicchiarelli se sente livre, depois de Sofia, para afogar o desespero de Eleanora no bom punk do Downtown Boys. Seu filme tem uma fotografia de qualidade, como se ela trouxesse a nossos corpos a umidade londrina, a se espalhar por tecidos, casacos e tapetes entre o verde e o vermelho. De resto, contudo, MISS MARX é uma oportunidade perdida.
Um punk dos Downtown Boys para a triste Eleanor desabafar
O filme “Martin Eden” transpõe para a Itália heroicamente desiludida a obra de Jack London sobre o engajamento das palavras
Luca Marinelli é Martin Eden, entre ferozes utopias
Metade deste Martin Eden (2019) é só o Jack London que amo e seus Estados Unidos da América, aqueles onde o escritor viveu, entre 1876 e 1916. A outra metade é a Itália idealizada, amada igualmente, onde este filme foi escrito a partir do livro homônimo e em parte autobiográfico de London, máxima ficção sobre a honra perdida do jornalismo, minha profissão e meu descontentamento.
Então é muito o que peço a este filme desde seu início, que faça jus ao que espero, na verdade anseio, aquilo por que luto e pelo que vivi por tantos anos, desde a adolescência tardia embebida pelos textos mágicos do escritor, alguns deles que também ousei traduzir (no volume 11 da coleção Para Gostar de Ler, 5 reais na Estante Virtual).
Jack London, no reino dos fortes
Martin Eden, por favor, não é apenas a história amorosa e aventureira de um marinheiro alçado ao fervor das palavras, estas que já sentia suas mesmo antes de deparar com o insólito universo liberal dos letrados. É antes um filme-estudo sobre a promissora ascensão socialista, que logo cederia lugar à Primeira Guerra, fagulha a acelerar a mais nova, infame e persistente ameaça à igualdade, o fascismo.
Jack London acolhia as ideias de Spencer, bem explicitadas neste filme, e traduzidas pelo escritor numa espécie de socialismo utópico que deveria ser conduzido por indivíduos fortes como ele próprio. Este indivíduo político que London lutou pra ser durante seus intensos 40 anos de vida e uma literatura tomada pela paixão que contamina, rasga e exaspera os sonhos, acabou um dia, adivinhe, a se diluir na autoimagem condescendente estadunidense, aquela segundo a qual a todos em sociedade se dá a oportunidade de tornar-se o que bem projetar. De pensador temperamental em prol da justiça social, Jack London, melhor dizendo, sua aura pública, foi então aos poucos associada a uma imaginária essência voluntariosa e benéfica do capital competidor.
Em que pese o fascismo
Minha alegria diante deste filme nasceu primeiramente disto, de ele não se deixar cooptar por nenhum capitalismo. Não reconstrói Martin Eden para o bom palato estadunidense. O homem foi e será para sempre muito difícil de engolir, nos diz. Bruto, verdadeiro. Antiliberal. Para dar conta de seu protagonista, o diretor e roteirista do filme (junto a Maurizio Braucci), Pietro Marcello, chamou o forte ator Luca Marinelli, de longo nariz e olhos azuis. Ele é Martin porque é o Éden também. Um ator para fortalezas e nuances.
Com Elena (Jessica Cressy), sonho azulCom Margherita (Denise Sardisco), um vermelho furor
Ele briga, ama, peleja na siderurgia, envia mais e mais originais às redações, sempre rejeitados, quer bem à irmã como London também quis, para só depois de muita humilhação e acolhimento proletário se tornar um profissional sem qualquer escusa, sem jamais aceitar o posto no escritório que lhe apontava sua noiva rica, ilustrada e delicada para palavrões.
A imensidão que engendra a revolução
O filme perturba os tempos. A indefinição de onde nos encontramos, dentro dele, é uma de suas porções adoráveis. Quando proletário, Martin Eden é também o mundo dos pobres italianos desde as greves piemontesas até aquele dos anos 1970 em que a televisão se infiltra aos poucos como adorno principal unificador. Quando se mete entre os ricos, o filme penetra facilmente no século 19 onde esta história começa, com seus salões vastos e sua preciosa decoração imperial. Você nunca perceberá exatamente em que ano estará, exceto quando descobrir que é este o jogo do filme, desenraizá-lo até que atinja a realidade dolorosamente imutável de nossos próprios tempos de desilusões.
Nápoles para marinheiros
Ambientado em Nápoles, que espertamente substitui a fria Oakland do livro, Martin Eden fala principalmente sobre a fúria heróica que acometeu o italiano no pós-Segunda Guerra. Um heroísmo fatalmente sucedido pela vilania pequeno-burguesa (bem pequena) do boom econômico, segundo a forma cinematográfica paciente com que Mario Monicelli a descreveu. É isto mesmo o que parece. Por vezes o belo ator Marinelli adentra o terreno abraçado por Alberto Sordi na dura commedia all’italiana… Estará ele a reviver o jornalismo idealista e o ardor militante fulminados pela paixão impassível de Uma Vida Difícil, de Dino Risi? Toda a parte final do filme é um grito do grotesco que acomete os bem-sucedidos, todo o épico do horror cômico em que os sonhos findam…
O mar que marca
E isto tudo com tamanha textura nas imagens, uma granulação a evocar os impressionistas, o azul sobressaído, os homens a se movimentar na multidão!
Que filme surpreendentemente atual com que gastar suas horas tristes.
MARTIN EDEN Diretor: Pietro Marcello Itália, 2019, 129 min