A pintura “Escavação” foi realizada por Willem de Kooning em 1950, inspirada no filme “Arroz amargo”, dirigido no ano anterior pelo italiano Giuseppe de Santis com as interpretações centrais de Silvana Mangano, Doris Dowling, Vittorio Gassman e Raf Vallone. Segundo o pintor estadunidense nascido na Holanda (1904-1997), o ponto de partida da pintura foi uma cena do longa-metragem neorrealista em que mulheres trabalham em um campo de arroz.
No óleo sobre tela estão sua pincelada expressiva e a organização distinta do espaço em planos soltos, com contornos abertos. Apropriadamente intitulada, a composição do artista expressionista abstrato reflete o processo de elaboração da pintura. Trata-se de uma construção intensiva. As camadas de tinta da superfície foram raspadas durante meses até que o efeito desejado surgisse.
A estrutura dinâmica de linhas caligráficas em forma de gancho define partes anatômicas – formas de pássaros e peixes, narizes, olhos, dentes, pescoços e mandíbulas humanos – e revela a tensão particular entre representação realista e abstração, inerente ao trabalho de De Kooning.
(Com informações do The Art Institute of Chicago, onde a tela está exposta)
Doris Dowling (segunda a partir da esq.) e Silvana Mangano (quarta a partir da esq.) em cena de “Arroz Amargo”, de De Santis, 1949
As bolas que constituem a marca da artista japonesa, resultado da elaboração de alucinações pessoais, estenderam-se pela segunda vez aos produtos da Louis Vuitton
Representada por um imenso robô, a artista Yayoi Kusama “pinta” a fachada da Louis Vuitton parisiense @DanielaPDD
Este foi um ano especial para Yayoi Kusama e sua parceira na moda, a Louis Vuitton. A mais célebre artista plástica japonesa contemporânea, que onze anos atrás havia estreado na maison após convite do estilista Marc Jacobs, retornou no início de 2023 para a colaboração, desta vez com o diretor criativo Nicolas Ghesquiere, na feitura de produtos da grife. Kusama envolve com bolas de variadas cores e tamanhos – sua marca artística – roupas, óculos de sol, fragrâncias, bolsas e sapatos. “A Louis Vuitton entende e aprecia a natureza da minha arte”, havia dito ela à revista “New York”, em 2012. “Portanto, não há muita diferença entre meus processos artísticos e aqueles que aplico à moda.”
A artista de 94 anos, cujo trabalho ganhou intensidade na Nova York da pop art, durante os anos 1960, recebeu ainda uma homenagem à sua altura. Um robô monumental a representa na parisiense Rue du Pont Neuf, diante da sede da Louis Vuitton, a pintar a fachada do prédio, enquanto outros robôs em escala menor, em Tóquio ou Nova York, a mostram atrás das vitrines, também com o pincel na mão.
Nascida na rural Matsumoto, a 200 km de Tóquio, Kusama trabalhou não apenas com pintura, mas escultura, instalações e ousadas performances. Nelas, por meio da abstração e da sensualidade, criticou o sistema de arte que insistia em ignorá-la. Aconselhada pela pintora Georgia O’Keefe, foi a Nova York e de lá à Itália, onde, na Bienal de Veneza de 1966, compôs seu “Jardim de Narciso”. Rodeada por 1.500 globos espelhados, ela não só distribuiu cópias de uma declaração atestando seu talento, escrita pelo crítico britânico Herbert Read, como ofereceu bolas em uma faixa onde se lia “Seu narcisismo à venda”, ação que ocasionou sua expulsão da bienal. Era seu protesto contra a crescente dominação de artistas bem-sucedidos no âmbito da mostra, tradicionalmente não comercial.
Yayoi Kusama nos anos 1960, quando se mudou para a Nova York da pop art e passou a elaborar sua obsessão pelo ponto
Ainda nos anos 1960, depois de ter sofrido alucinações com pontos e bolas na infância, procurou a psicanálise, por meio da qual descobriu sofrer de transtorno obsessivo-compulsivo. Nova York havia acentuado suas crises depressivas, razão pela qual ela voltou em 1977 a Tóquio, onde passou a morar em um hospital psiquiátrico. As bolas vermelhas, aplicadas por vezes a suas vestimentas, parecem até mesmo evocar o sol da bandeira de seu país. Em 2014, os brasileiros fizeram fila para absorver esse universo em “Obsessão Infinita”, retrospectiva do trabalho da artista no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.
“Minhas performances são um tipo de filosofia simbólica com bolinhas”, explicou certa vez. “A bolinha tem a forma do sol, que é um símbolo da energia do mundo inteiro e de nossa vida, e também a forma da lua, que é calma, redonda, suave, colorida, ignara e sem sentido. As bolinhas não podem ficar sós. Como a vida comunicativa das pessoas, duas, três ou mais bolinhas entram em movimento. Nosso planeta é apenas uma bolinha entre milhões de estrelas no cosmos. As bolinhas são um caminho para o infinito.”
Escultura em cera que representou a artista na Louis Vuitton, durante seu trabalho para a grife em 2012 @Garry Knight
O acesso livre ao parque do Jardim da Luz, patrimônio do lazer paulistano, é o maior bem que a abertura da Pina Contemporânea nos faz
Pelo Jardim da Luz, o melhor acesso à Pina Contemporânea
É um novo museu, mas também o acesso a uma paisagem esquecida da cidade de São Paulo. Um novo projeto arquitetônico, mas dentro de uma antiga construção escolar. O acolhimento da produção artística de nosso tempo, e também de um público para ela. Aberta em março de 2023 no centro da capital paulista, em área contígua à da unidade Luz, a Pinacoteca Contemporânea demonstra em poucos meses transcender a função contemplativa para atingir a de pertencimento. Naquela região da cidade onde miséria e violência parecem não ter fim, o visitante se sente em casa outra vez.
O diretor-geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Jochen Volz, descobriu com alegria, nos últimos meses, que a imensa maioria do público da Pina Contemporânea chega ao museu por um caminho inesperado. Não necessariamente ao atravessar a bela fachada de cobogós de sua entrada principal, na avenida Tiradentes, mas depois de experimentar sem sobressaltos o passeio do Jardim da Luz. O parque mais antigo da cidade, aberto ao público em 1825 como Jardim Público da Luz, é percorrido depois de o visitante circundar a Pina Luz à esquerda, pelo tradicional café.
“Era usual que mesmo os frequentadores mais fieis da Pinacoteca nunca tivessem pisado no parque”, conta o alemão Volz, que integra a equipe da instituição há seis anos. “Trinta obras de escultura do acervo do museu estão no jardim desde 2001, mas a maioria das pessoas nem tinha ideia disso, nunca havia ido até lá. É gostoso ver agora o público descobrir um passeio desta natureza e constatar que, apesar de estar próximo da Estação da Luz e da cracolândia, nada de ruim vai lhe acontecer.” Depois de atravessar o parque, o visitante chega à Pina Contemporânea talvez sem se dar conta de que já pise nela. É um mundo vasto. Com este terceiro edifício, a Pinacoteca de São Paulo, antes composta pela Pina Luz e pela Pina Estação, passa a ter 22.041 metros quadrados de área e 9.112 metros quadrados para exposições.
O Chão da Praça, vão do novo museu, com a escadaria que leva ao café no mezanino
No projeto da Pina Contemporânea, foram mantidos os volumes arquitetônicos dos dois blocos de edifícios no terreno. Um mais antigo, atribuído ao escritório de Ramos de Azevedo, remanescente da primeira escola lá construída, e outro mais moderno, da década de 1950, de autoria do arquiteto Hélio Duarte. A unir esses dois blocos, há uma grande praça pública coberta, com 1.339,2 m², e um pavilhão onde está localizada a Galeria Praça, com 200 m², dois ateliês para atividades educativas e a loja do museu. Com 1.000m², a Grande Galeria está no subsolo. O mezanino com vista para o parque da Luz, onde está localizada a cafeteria, pode ser frequentado sem a necessidade de adquirir o ingresso do museu.
O prédio principal, que pertenceu à Escola Prudente de Moraes até 2015, ganhou três anos depois uma ampla reforma conduzida pelo escritório Arquitetos Associados em parceria com Silvio Oksman e em diálogo com as equipes da instituição. O intento foi manter as estruturas consideradas importantes, como o pátio da escola, e derrubar os muros que a cercavam. Investiram-se R$ 85 milhões na construção do novo espaço – R$ 55 milhões vieram do governo do Estado de São Paulo e R$ 30 milhões, sem uso de leis de incentivo, da família Gouvêa Telles, do empresário Marcel Telles, um dos fundadores da Ambev.
Transfigurado em vão do museu, o pátio evoca a arquitetura do prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo, cujo projeto é de Villanova Artigas (1915-1985). O projeto tem várias inspirações históricas, entre elas Paulo Mendes da Rocha (1928-1921) na sua parte alta. Uma vez no pátio, desobrigado de passar por catracas ou detector de metais, o visitante depara com a imponente escultura de Tunga “Tríade Trindade” (2001) ali instalada. Na Grande Galeria, a primeira exposição do museu, aberta em março e intitulada “Chão da praça: obras do acervo da Pinacoteca”, trouxe 60 trabalhos de artistas brasileiros em torno de um conceito de territórios e encontros.
O museu pensa a arte de nosso tempo. E o momento artístico atual pede grandes espaços, possibilidade de movimento e interação com o público. Não que a Pinacoteca Luz tivesse deixado alguma vez de prestigiar a arte presente, como Volz ressalta. Trata-se do mais antigo museu de artes plásticas do Estado de São Paulo, inaugurado em 1905 e transformado em instituição estadual em 1911, quando inexistiam salões públicos para a exibição de obras de arte na cidade. Um terço do acervo é composto de arte contemporânea, desde que o museu começou a funcionar. A obra “São Paulo”, de Tarsila do Amaral, que em 1924 retrata o viaduto do Chá e o vale do Anhangabaú de maneira estilizada, foi adquirida pela Pinacoteca cinco anos depois de pintada. O museu comprou a tela “Mestiço”, de Cândido Portinari, em 1935, um ano após sua finalização. “Até 2020 o foco permanecia na ideia do academismo e da profissão de artista. Em 2006 foi agregada à Pinacoteca a Pina Estação, onde era exposto principalmente o acervo Nemirovsky, com ênfase para o modernismo. Já nesta época se pensava em como seria bonito criar um espaço dedicado à arte contemporânea.”
O diretor da Pinacoteca, Jochen Volz: “Em lugar de mostrar arte contemporânea somente na Pina Contemporânea, ficou mais interessante avaliar quais tipos de espaço a produção contemporânea demanda. É preciso entender a versatilidade de espaços. A produção de arte é outra. A escala também”
Em 2016, a coleção Nemirovsky foi para o prédio principal. E a ideia do espaço específico para a arte contemporânea se estabeleceu. “Contudo, de lá para cá, muitas coisas mudaram”, explica Volz. “Uma narrativa histórico-cronológica se tornou complicada de ser implantada. A ideia de que uma coisa causa outra e a outra coisa, uma terceira, não se prova exatamente assim na prática. Se você observar qualquer produção contemporânea, a de um artista como o indígena Jaider Esbell, por exemplo, vai constatar que ela modifica tudo o que entendíamos sobre Tarsila. Não tem como olhar de volta para sua ‘Antropofagia’, de 1929, e enxergar ali a mesma pintura que a gente viu antes.” E a ideia de separar em três edifícios a contação da arte brasileira (um para o período até o modernismo, outro para os modernos e um terceiro para a arte contemporânea) não se sustentou.
Em 2018, a direção do museu concluiu que seria mais interessante organizar o acervo sob perspectiva temática do que cronológica. “Em lugar de mostrar arte contemporânea somente na Pina Contemporânea, ficou mais interessante avaliar quais tipos de espaço a produção contemporânea demanda”, diz Volz. “É preciso entender a versatilidade de espaços. A produção de arte é outra. A escala também.”
Na Pina Contemporânea, os espaços se ampliaram. O depósito para a reserva técnica tem grandes dimensões. Mas não só a escala das obras se modificou, constata o diretor. “Os artistas mudaram. Artistas e instituições procuram outro tipo de contato entre arte e público. Querem acolhimento”, diz. “A Pina Luz é maravilhosa, um museu clássico de tradição europeia, com escadaria na frente para acessar os andares. Hoje, contudo, a maioria das pessoas já teme a escadaria, o foyer, a recepção, o detector de metal e a bilheteria, por entender que um espaço com todas essas etapas, imponente e monumental, não foi feito para elas. Mas nossa missão neste novo museu é ser para todos e todas.”
O diretor incumbiu uma curadoria de programação de realizar na praça (ou vão) do museu eventos que atraiam visitantes ao espaço. “Ainda estamos em um momento de experimentação, analisando os fluxos, volumes e permanência dos públicos em resposta às programações”, diz a curadora Clarissa Ximenes. Desde a abertura da Pina Contemporânea até o momento, as programações musicais e de dança foram um atrativo importante, como o show do Melanina Jazz com o Iké Afro na abertura da exposição de Antônio Obá, em junho, e a programação do Pina Dança.
Desde sua abertura, o museu atraiu cerca de 145 mil visitantes. Durante a semana, os principais foram alunos dos ensinos Fundamental e Médio, integrantes de associações e do terceiro setor. Nos fins de semana vêm famílias, jovens e adultos. Para todos eles, a Pina quer estruturar uma frequência mensal de apresentações musicais nos formatos de pocket shows, audições ou shows. Espera-se realizar uma programação mensal de artes do corpo não apenas centrada em performance, mas em coletivos e grupos que mesclem dança, música e visualidades.
Por fim, a relação com a vizinhança constitui um ponto caro à instituição, diz a curadora. “A questão da Luz como território histórico a abrigar pessoas em vulnerabilidade social, usuários de drogas e prostituição intensificou-se na pandemia. Projetos de longa data já atuam na região, como o Ação Educativa, em conjunto especialmente com ONGs. Meu trabalho como curadora de programação, neste sentido, é compreender o histórico destas ações e modos de intensificar o contato com tais agentes do território, propondo programações casadas. Possibilitar o acesso à cultura é o nosso papel transformador como instituição cultural.”
A Galeria da Praça, onde permanece exposta a obra de Antonio Obá
Certa vez, quando o entrevistei em São Paulo, o Nobel de Literatura V.S. Naipaul me disse ver uma única vantagem no jornalismo: as viagens que um jornalista faz.
Que azar eu dei. O jornalismo, literalmente, jamais me levou longe. Pelo menos, não a belas distâncias territoriais. Viajei em minha imaginação mesmo e, principalmente, me aventurei pela criação alheia, pelo pensamento do outro, de modo a traduzi-lo em mim.
Eis que nos últimos tempos tenho prosseguido nas viagens longas-curtas, em reportagens avulsas. Esta foi boa de fazer. Me rendi ao fato de que a Pina Contemporânea se tornou imprescindível à cidade. Ela nos devolveu o passeio no Jardim da Luz.
Considere visitá-la sábado, quando a entrada é gratuita. E pense em mim!
Na residência-ateliê em 2016, dois meses após o golpe consumado contra a presidenta Dilma Rousseff, a artista Rosana Paulino me disse em entrevista não ter dúvidas de que a sombra do País, então conduzido por Michel Temer, é a escravidão: “Ou se aprende a conviver com essa sombra ou ela engole você. O Brasil tem empurrado essa questão para baixo do tapete. O resultado é uma das sociedades mais díspares, desiguais, perversas, racistas e classistas do mundo”
Rosana Paulino em foto de Marcus Leoni, para a Enciclopédia Itaú Cultural: “O artista é um intelectual e tem de se posicionar”
O ateliê em Vila Iara estende-se pelo andar de cima da casa onde Rosana Paulino nasceu, em 1967, filha de uma empregada doméstica e de um carregador de sacos de açúcar. É noite quando a entrevisto, em outubro de 2016. Os carros são poucos e as crianças ainda percorrem sem medo as ruas no subdistrito do bairro paulistano da Freguesia do Ó onde a artista trabalha até tarde, por funcionar, como ela diz, apenas quando a lua sai. Sob o testemunho das árvores ainda a cobrir o terreno e das alegrias ecoadas à distância pelos passantes, ela constrói madrugadas adentro sua síntese visual sobre a terrível história do Brasil, que tanto, e ainda, oprime aos seus.
O ofício de Rosana Paulino é de estudo, de quem jamais cedeu à pobreza legada. Seus computadores, a impressora, uma prensa e os livros sinalizam o perfil de uma pensadora sem rodeios. “O artista é um intelectual e tem de se posicionar”, acredita. “Este país ainda não foi pensado devidamente por nós.” Cerca-se de volumes que os artistas às vezes se esquecem de consultar, como os de sociologia, história, psicologia e ciências naturais. E não se perde em leituras excessivas sobre crítica de arte, que ela estudou ao adentrar a Universidade de São Paulo, em 1989, depois de se empregar como bancária por quase três anos e pagar um cursinho à vista.
“Aos 19 anos estava em mesa de negociação de greve. Não entrei ingênua no curso de Artes Plásticas e isto foi uma sorte.” Aprendeu bem porque não aprendeu depressa. Ou talvez tenha iniciado o aprendizado sem se dar conta de que aprendia. Jamais assistiu a telenovelas, que sua mãe, leitora ávida, detestava. Na mesma casa onde hoje está o ateliê, nem tão distante de sua residência atual, no Jardim Regina, em Pirituba, dona Lurdes, que bordava à noite, ensinou-lhe outros fazeres. Ela e as três irmãs passavam tardes inteiras a revolver a terra, cavar buracos e enchê-los com água.
A manualidade era sua herança negra. “Atrás desta casa há um pequeno braço do Tietê. E na proximidade dos rios o barro tem uma plasticidade excelente. No quintal fazíamos tartaruga, boizinho, mesas, cadeiras, bonecos, cenários. Não podíamos comprar brinquedos. Púnhamos o barro branco para secar e pintávamos no dia seguinte, com o resto da tinta que meu pai usava para colorir paredes.” Ela acredita ter herdado de seu Luiz a intuição para a cor.
Em “Tecelãs”, um desenvolvimento das habilidades maternas
Quis ser cientista, depois caminhou para as artes plásticas. Almejava ganhar a vida na publicidade ou pelo ofício da ilustração. Mas Tadeu Chiarelli, Annateresa Fabris, Regina Silveira e Evandro Carlos Jardim, seus professores, pegaram pesado com ela. “Uma vez, toda feliz, desenrolei no chão uns desenhos grandes e perguntei ao Jardim o que achava. Ele olhou: ‘Para um aluno normal, eu diria que está muito bom. Pra você, não. Sente-se e refaça’.” O artista seria o seu orientador no doutorado, que ela concluiu em 2011, depois de se especializar em gravura pelo London Print Studio, de Londres.
Embora fosse reconhecida pelo talento e a força de trabalho, sentia-se deslocada na universidade, onde jamais aprendera sobre arte africana, latino-americana ou asiática. No primeiro ano deu-se conta de que seria uma artista, mas em que produção negra se espelharia? Seu primeiro grande trabalho, adquirido pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, considerava as memórias familiares. Paulino amava a caixa de fotos de seus pais. Os personagens tornavam-se pequenas múmias de papel pela fotografia, conforme ensinara André Bazin. Sobre as imagens, ela colocou pedaços de microfibra transparente. E as figuras pareciam saídas dos patuás que a mãe pendurava acima da porta. Ela então transferiu as fotografias para pequenos pedaços de microfibra e os costurou. Estendidos na parede, os patuás formavam um gigantesco jogo de fixação do passado, que ela intitulou Parede da Memória.
A série Bastidores prosseguiu a pesquisa. As imagens familiares eram transferidas para um tecido que, preso pelo bastidor, recebia linhas de costura. O bordado cerrava as bocas, as gargantas e os olhos dos anônimos de sua família, a indicar a impossibilidade de aqueles personagens reconhecerem sua condição no mundo. “A violência, no Brasil, recai sobre as mulheres negras, base da pirâmide social. Elas são as mais abandonadas pelos companheiros, as que recebem menos anestesia na hora do parto. Isto é racismo estrutural.” A artista nunca sofreu violência por parte de pai, namorado ou marido, mas sua irmã mais nova, especialista em atendimento a vítimas de agressão doméstica, informou-lhe sobre um terrível quadro social. No Brasil, a tortura familiar era praticada com os objetos do cotidiano, a agulha, o saltinho de sapato e o cigarro, transformados em instrumentos de manutenção do poder. Uma situação a evocar as brutalidades contra os escravizados.
Em uma obra da série “Assentamentos”, a visão crítica para as fotos de Augusto Stahl
Em uma série seguinte, Assentamentos, a artista trabalhou sobre as fotos que Augusto Stahl compôs no século XIX, rumo a traçar uma suposta inferioridade negra diante do europeu. As imagens lhe falavam de perto. Aqueles personagens um dia tiveram infância, nadaram nos rios. Ela cortou seus retratos e costurou os pedaços com uma linha densa. “Mais do que uma linha de costura, trata-se de uma sutura. Quis mostrar o drama pessoal da escravidão. O negro sequestrado dos seus e levado a outra terra ainda consegue se refazer. Mas não se refaz por completo. Um trauma fica. A costura não fecha.” Em sua instalação, colocou as fotos ao lado de gravetos que simbolizavam o povo negro, lenha para queimar. E os tablets mostravam o mar aberto.
Em dezembro de 2016, o Senac Lapa, em São Paulo, planejou uma retrospectiva da obra de Paulino, que caminhou por várias outras vertentes. Concluído naquele ano, seu livro de artista, História Natural?, investiga a pseudociência eugênica. E seu refinamento gráfico pode ser observado nos desenhos evocadores da arte de Egon Schiele, como na série em que mulheres-inseto se fazem proteger por fluidos.
“Atlântico Vermelho”, de Rosana Paulino: “A classe dominante prefere dar um tiro no pé, colapsar todo um país, para não perder quem limpe o chão”
“A sombra do País é a escravidão. Ou se aprende a conviver com essa sombra ou ela engole você. O Brasil tem empurrado essa questão para baixo do tapete. O resultado é uma das sociedades mais díspares, desiguais, perversas, racistas e classistas do mundo.” Uma das principais economias mundiais se arrasta, como ela vê. “Este período tenebroso que vivemos nasce de não termos compreendido a dimensão pública. A classe dominante prefere dar um tiro no pé, colapsar todo um país, para não perder quem limpe o chão. Quando você vai à casa de um inglês, se tem barata subindo pela parede, problema do inglês. Mas ele não joga papel na rua porque é um lugar público. No Brasil, despeja-se tudo na rua, mas a casa tem de estar brilhando, porque antes havia alguém para fazer a limpeza. O Brasil é uma fazenda asfaltada.”
A artista procura acalmar quem se horroriza com o bueiro aberto na política. “Em ciência, as novas ideias triunfam não porque quem discordava delas passa a concordar, mas porque quem discordava morreu. A ciência avança a cada enterro.” Ela vê nos jovens das periferias uma frente de combate à onda conservadora. “O irmão mais velho foi o primeiro a entrar na faculdade, a menina do meio também cursou e para o terceiro irmão você diz que vai ser frentista porque a festa acabou? Vai dizer para a Liniker que agora não pode porque vovô não quer? Imagine. O menino reforça o batom e vai pra rua. Vão fazer um estrago lascado, a gente vai demorar a recuperar tudo isso, mas essa maré muda, gente. Aquele gabinete horroroso do Michel Temer, aquela gerontocracia, uma hora vai morrer também.”
O presidente da Fundação Bienal comemora legado e se emociona ao falar sobre a morte do artista indígena Jaider Esbell, estrela da edição anterior do evento, também sob sua direção
José Olympio da Veiga Pereira, neto do livreiro carioca José Olympio, banqueiro, colecionador de arte e presidente da Fundação Bienal de São Paulo até dezembro de 2023, em foto de Giovanna Querido
Foi um desses episódios que eu nem imaginaria presenciar, que dizer de provocar, como acabei fazendo…
Durante a pré-abertura da 35ªBienal de São Paulo, minha editora na revista Robb Report, Gisele Vitória, sugeriu que entrevistássemos o presidente da Fundação Bienal, que se encontrava algo disponível diante das rampas do prédio. Fomos até lá, então, para conversar sobre o evento que ele, na coletiva anterior, dissera considerar histórico. A entrevista andava quando decidi lhe perguntar algo que muito me intrigava: como havia encarado a morte do artista indígena Jaider Esbell, em plena bienal anterior, que ele também dirigia? Insisti para que me falasse de sua relação com o artista e me surpreendi ao ver seus olhos se encherem de lágrimas ao mencionar a convivência com ele. Trata-se de um banqueiro, mas também de um colecionador de arte, neto daquele José Olympio que fundou a editora de mesmo nome, no Rio. Isto talvez lhe tenha proporcionado uma sensibilidade que não parece caber no terno e gravata dos que tanto possuem, sem o dividir.
O artista Jaider Esbell, em registro fotográfico da Agência Ophelia/Itaú Cultural
Colecionador de arte contemporânea brasileira e presidente do J. Safra Investment Bank, José Olympio da Veiga Pereira deixa a presidência da Fundação Bienal de São Paulo em dezembro, após o segundo mandato. Nascido em 1962, ele foi batizado em homenagem ao avô, o livreiro carioca fundador da editora José Olympio, atualmente integrada ao Grupo Editorial Record. Seu pai, Geraldo Jordão Pereira, fundou as editoras Salamandra e Sextante hoje administradas por seus irmãos, Marcos e Tomás Pereira.
Abaixo, em entrevista concedida na pré-abertura do evento, em 4 de setembro, Veiga Pereira se emocionou quando lhe perguntei sobre a morte em 2021 do artista indígena Jaider Esbell, estrela da 34ª edição. De olhos marejados e voz embargada, o banqueiro disse ter prezado demais a convivência com este artista de elevada auto-estima, que não mostrava qualquer reverência às instâncias do poder branco. “Eu estou sempre com ele”, disse o presidente.
Por que esta é uma bienal histórica?
Porque parte de um movimento radical e altamente arriscado, que foi a escolha desse grupo curatorial né? Pedimos propostas, recebemos… O grupo se formou a partir das propostas que a gente pediu. Apresentou-se como um grupo, mas como os curadores mesmo disseram, eram quatro pessoas que nunca tinham trabalhado juntas, que não se conheciam. Apostar que isso iria dar certo, eu acho que foi o primeiro movimento, digamos radical. Claro que em última instância, embora a diretoria tivesse participado disto, a responsabilidade é minha como presidente. Fico muito feliz que isso tenha dado tão certo, porque, embora sendo profissionais de confiança, juntar quatro deles sem liderança, sem chefe, num grupo horizontal, e fazer com que esse trabalho resultasse em uma bienal tão especial, foi realmente uma grande realização.
A ideia de não haver um chefe partiu de quem?
Deles. Então demos um crédito de confiança a essa proposta e esse grupo enorme, enorme. Ao longo do percurso tive frios na barriga, como é normal, mas hoje estou comemorando que tudo tenha saído tão bem. É uma bienal histórica por ter um aspecto de inclusão e de dar oportunidade a um número grande de artistas que nunca sonharam em estar numa bienal de São Paulo, tanto no Brasil, quanto no exterior.
Ela também cumpre o papel, que é sempre da bienal, de resgatar artistas históricos não tão divulgados ou conhecidos, como o Heitor dos Prazeres ou a Carmézia Emiliano, cuja produção fantástica nunca tinha sido mostrada numa bienal. A meu ver esta é uma bienal que suscita questões, mais perguntas do que apresenta respostas. Vale ser visitada várias vezes. É importante que se diga, em nosso time do educativo há mediadores para auxiliar o espectador a entrar no espírito da Bienal, para se relacionar com as obras.
O sr. mencionou a dificuldade particular em ser a última palavra emquestões complicadas. Uma questão complicada pode ter sido o fechamento do vão. Seria uma maneira de romper um pouco o entendimento modernista do projeto original?
Desde o projeto original de expografia eu o achei muito interessante, por subverter o trajeto normal do percurso. Mas ao mesmo tempo ele transforma as curvas lineares em volumes de curvas, e as curvas estão presentes na expografia inteira. Se você olhar todas as salas se apresentam em sístole, diástole, elas estão no andar pra fora e no outro andar pra dentro, mas também acompanham todas as curvas. Então, toda a organicidade da arquitetura do Oscar Niemeyer, a meu ver, está exacerbada com essa intervenção que foi feita no prédio.
Não houve dificuldades de ordens funcionais para executar isso. Trata-se de uma intervenção temporária no prédio, e cada edição da bienal apresenta a sua. Em algumas as janelas são fechadas, as salas são colocadas contra as janelas, você não vê os vidros.
A expografia atual ficou muito interessante, instigante, esses volumes que nós estamos vendo aqui no vão deixou tudo lindo, o que casa muito bem com o resto, com a arquitetura das salas. Existe uma complementaridade, uma valorização da ideia modernista, uma exacerbação, porque se você olhar esses volumes, eles ficaram muito poderosos, essas curvas todas com esses volumes e com a rampa ao fundo. Ficou linda a conversa dos volumes com as rampas.
Como avalia o seu legado como presidente da Bienal?
Olha, eu termino o meu segundo mandato com forte sensação de dever cumprido. Estamos realizando uma segunda bienal, enfrentamos uma pandemia, realizamos uma bienal espetacular, a 34ª, ainda num contexto de pandemia. Tomamos o risco de fazer uma coisa muito diferente na 35ª que deu certo, então é sempre uma coisa maravilhosa tomar risco, e o risco valer ter valido a pena.
Do ponto de vista institucional a Bienal está muito, muito bem. Do ponto de vista financeiro, do ponto de vista de sua equipe de gestão, da equipe de gestão do dia a dia, da Superintendência Geral, das equipes de produção, de comunicação, temos gente da melhor categoria trabalhando. Então, fico muito feliz de entregar ao meu sucessor uma Fundação Bienal de São Paulo absolutamente arrumada.
Especialmente eu fico pensando que o sr. teve de superar algo ocorrido durante a bienal anterior, que foi o suicídio do artista indígena Jaider Esbell. Gostaria de saber como conseguiu realizar seu trabalho após esse episódio tão difícil.
Olha, o suicídio do Jaider foi uma coisa… muito difícil pra mim, entendeu? Era uma pessoa com quem eu estabelecia uma relação pessoal e perdê-lo foi uma dor imensa que eu sinto até hoje. Então, enfim, mas a gente tem de tocar a vida. Mas não foi nada, nada fácil. Eu estou sempre com ele. E feliz de ver que aquilo que ele começou, a bienal dos indígenas, como ele chamava a 34ª, e toda a importância que a arte indígena contemporânea tomou a partir dele tenham sobrevivido. Acho que de onde ele estiver vai estar muito feliz com o que está acontecendo, o Denilson Baniwa e o grupo Mahku tão bem representados nesta edição, e o legado dele estar tão presente, o ativismo e a questão indígena colocados através da arte.
O sr. conversava muito com ele?
Eu tive muito contato com ele.
E alguma coisa que ele tenha dito lhe marcou especialmente?
O Jaider era uma pessoa extraordinária, porque ele era de uma coragem, apesar de ser um indígena, apesar de ser… Ele não tinha nenhuma intimidação com qualquer fonte do poder, ele conversava assim de igual pra igual, fazia críticas, colocava questões e eu achava aquilo lindo, entendeu? Porque ele se colocava de uma forma como deve ser, como tem de ser, mas que infelizmente nem sempre é. Mas o Jaider tinha essa autoestima, esse senso de missão maravilhoso.
Que trabalhos da bienal o sr. aconselharia o espectador a ver nesta bienal?
Citaria o Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes do boliviano Melchor María Mercado, feito no século XIX e exibido pela primeira vez fora de seu país.
Acima, obras do século XIX contidas no “Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes”, de Melchor María Mercado, exibidas pela primeira vez fora da Bolívia
Com 121 artistas, a 35ª edição do evento celebra a imaginação radical, especialmente assinalada nas obras afroindígenas
“Peixe”, grafite, acrílica e pigmento natural sobre tela, da série “Mangue”, de Rosana Paulino, 2023
As portas da 35ª Bienal de São Paulo abriram em setembro para um mundo raramente visto, em especial para um Brasil múltiplo, expandido no tempo e vibrante em suas manifestações artísticas. O presidente da Fundação Bienal de São Paulo, José Olympio da Veiga Pereira, classifica-a como “histórica”. Intitulada “Coreografias do Impossível”, em cartaz até 10 de dezembro, ela busca as origens da arte, acrescidas das conquistas do tempo.
Tais “coreografias” vêm representadas por 95 artistas e 26 duos ou coletivos, a maioria da América do Sul. Mais de 50% são negros e 12,4%, indígenas. As mulheres formam 47%, 2,5% delas, mulheres trans. Uma quase impossibilidade foi a presença inédita do quarteto de curadores, que jamais trabalhara junto e atuou sem hierarquias internas. A escritora Diane Lima e o antropólogo Hélio Menezes vieram da Bahia. Grada Kilomba, artista e escritora, é portuguesa, e o antropólogo Manuel Borja-Villel, pesquisador espanhol.
Os quatro desenvolveram a ideia de “coreografar o possível dentro do impossível”, que resultou em um convite às imaginações radicais para mergulhar no desconhecido. O termo coreografia, segundo eles, realça o desenho de movimentos que atravessam o tempo e o espaço, criando novas formas e imagens. Interessaram aos curadores ritmos, estratégias, tecnologias e procedimentos simbólicos que os saberes extradisciplinares transformam em exercícios poéticos.
A expografia, desenho segundo o qual a exposição vem apresentada, resultou em mais um desafio nessa direção. No pavilhão Ciccillo Matarazzo, ao subir a rampa para o mezanino, o espectador nota os vãos entre os vários pavimentos fechados por superfícies curvas. Em idêntica cor branca do prédio, eles seguem a sinuosidade dos guarda-corpos modernistas. Para o escritório de arquitetura Vão, responsável pela mudança temporária, tratou-se apenas de manipular o desenho de Oscar Niemeyer já existente. Mas, com a modificação, a maneira de percorrer a bienal mudou. Do primeiro pavimento, o público segue para o último andar, e então volta ao segundo. A descida ocorre pela rampa externa, e nessas idas e vindas o espectador pratica a própria coreografia.
O contraste entre a racionalidade modernista do prédio e as novas estruturas de tempo e espaço propostas pelo grupo curatorial talvez não passe despercebido ao espectador. “O projeto do Vão me parece dialogar contra e a favor da ideia modernista”, acredita o curador Hélio Menezes. “Este prédio consiste basicamente de três avenidas, uma em cima da outra, quilômetros que se percorrem horizontalmente, do início ao fim. Com a perspectiva mudada, trabalha-se contra a ideia inicial, mas também a favor, já que se acrescenta a circularidade à linearidade e é possível percorrer o mesmo lugar de forma inesperada.”
O curador vê como extraordinário o fato de a Bienal de São Paulo diferir de suas irmãs no mundo. “Além de gratuita, ela tem grande apelo popular, o que muda bastante o trabalho curatorial, pois nos dirigimos a todos os públicos, não a um nicho especializado. Esperamos que os visitantes se abram a aprender coisas novas. Contudo, mesmo se portarem ideias preconcebidas, que aceitem rever suas posições e se sensibilizem para novas vivências.”
As obras indígenas deslumbram, especialmente quando se sabe que o dinheiro obtido com a venda desses trabalhos serve para comprar mata virgem e protegê-la do desmatamento. Destaca-se o Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin), fundado há dez anos como um coletivo baseado na Terra Indígena Kaxinawá (Huni Kuin) do rio Jordão, no Acre. Seu início remonta o final da década de 2000, quando lideranças Huni Kuin, especialmente Ibã e três de seus filhos, Acelino, Bane e Maná, começaram a realizar oficinas para registrar em desenhos os cantos, mitos e práticas de seu povo.
Muitas obras do Mahku são traduções visuais dos cantos huni meka, conhecimento tradicional que acompanha os rituais de nixi pae com a ayahuasca – uma espécie de chá com potencial alucinógeno preparado com plantas amazônicas e utilizado há séculos na América do Sul. As experiências visuais provocadas pela bebida, denominadas mirações, fornecem matéria-prima para os trabalhos. As pinturas e os desenhos também figuram narrativas míticas e histórias ancestrais sobre o surgimento do mundo e a divisão entre as espécies.
A aparição de mãe Stella de Oxóssi na instalação “Floresta de Infinitos”, dos artistas Ayrson Heráclito e Tiganá Santana
São várias as obras nesta bienal a evocar encantamentos afroindígenas. É o caso da instalação “Floresta de Infinitos”, que o artista plástico Ayrson Heráclito, integrante do pavilhão brasileiro vencedor do Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano, idealizou junto ao músico e historiador Tiganá Santana, autor de “Maçalê”, o primeiro álbum a conter, em 2009, canções em línguas africanas no Brasil. Os dois celebram as forças da natureza em uma sala com projeções de imagens múltiplas, sonorizada e decorada por bambus de reflorestamento. As imagens de ancestrais originários, de mãe Stella de Oxóssi e dos ativistas Chico Mendes, Bruno Pereira e Dom Philips surgem entre as evocações de rios, pássaros, folhas, flores, insetos, biomas extintos.
“A gente brinca com a ideia de abismo, de mistério, de aparições”, conta Santana, que compõe, canta e arranja a trilha da incursão. “Aparecem seres biomórficos ou antropomórficos, pessoas que mantinham conexão com a religiosidade afrobrasileira ou indígena. Algumas dessas aparições são sons da natureza, com minha voz a evocar inquices [divindades], atabaques a compor as forças protetoras e o som de instrumentistas como a clarinetista e saxofonista Joana Queiroz.” Enquanto o público passeia, os sensores acionam as aparições. “Se você permanece no local na hora em que ela surge, irá vê-la. Aparição é aparecer para quem aparece.”
Que a 35ª Bienal de São Paulo nos mostre o trabalho resplandecente da veterana brasileira Rosana Paulino, doutora em artes visuais especializada em gravura pelo London Print Studio, já terá funcionado como um grande presente. Sua série “Mulheres-Mangue”, trípticos em acrílica sobre tela aos quais dedicou os últimos cinco anos, ensejam firme defesa da natureza esmagada, defendida, contudo, pelas comunidades locais em luta por seu santuário enraizado. O trabalho é coerente com a formação da artista. Durante a infância paulistana em Pirituba, sua mãe, que bordava à noite, ensinava-lhe e às três irmãs a revolver a terra, cavar buracos e enchê-los com água do rio Tietê. A plasticidade desse material permitia-lhes construir os únicos brinquedos que poderiam ter, pequenas esculturas de tartarugas, boizinhos, mesas, cadeiras, bonecos, cenários. A terra é a matéria desta artista desde sempre. E, por toda a sua obra, ela dá centralidade à mulher negra, sem a hipersexualização de que é vítima na sociedade brasileira.
“Nahene Wakame”, acrílica sobre tela de Acelino Sales Tuin, do coletivo Mahku, 2022
“Variação sobre Sankofa – Quem toma as rédeas abre os caminhos”, óleo sobre tela de Antonio Obá, 2021
“Revoada” é uma das mais belas exposições que vi neste ano. Vou escrever sobre ela brevemente, e enquanto isso espero que vocês a incluam em suas possibilidades. Aos sábados, gratuitamente, pode-se visitá-la depois de adentrar o lado esquerdo da Pinacoteca, voltear o fundo do café e experimentar o maravilhoso passeio pelo parque da Luz até chegar ao prédio da Pina Contemporânea.
Obá tem uma luz! Ele flutua para nos trazer um novo entendimento da beleza ancestral.
Era só o que faltava. Em lugar de relevar os processos materiais envolvidos na complexa pintura do artista, o Masp, de modo a proteger a instituição de seus acusadores, opta por cancelar os comportamentos de um pintor que viveu profundamente as contradições de seu tempo
“Ela pensa na assombração” ou “O espírito dos mortos vigia”, litografia a bico de pena, lápis e aguada, 1894
O Masp organiza uma exposição como essa da obra de Gauguin, trazendo até mesmo gravuras que mostram a diversidade desse talento, entre a escuridão e a complexidade cromática, sua excelência em compor as cenas de modo a encaixar muitos quadros em um só, a capacidade de fazer o fundo emergir, as ondas no horizonte visíveis e brilhantes… E ao fim esse mesmo museu mancha tudo ao explanar a carreira do artista com textos acusatórios. Textos jurídicos, à beira do cancelamento. Palavras que jogam o artista pra baixo, sua masculinidade dita tóxica ao retratar mulheres não-europeias no século XIX… Sinceramente, falta do que fazer.
“Rua do Tahiti”, óleo sobre tela, 1891: muitas cores em uma, muitos quadros em um
Por que, em lugar disso, não se ocuparam em discutir o que falta, a descrição dos processos materiais do artista, a forma com que mistura e cria novas cores, as tintas que usou e como usou? É tudo tão irritante nesses textos que a certa altura simplesmente desistimos da leitura. E podemos fazer isso tranquilamente, porque Gauguin dispensa as escusas de seus curadores brasileiros. Não perca esta exposição. A beleza é inacreditável e supera medíocres princípios advocatícios.
PAUL GAUGUIN: O OUTRO E EU. Até 6 de agosto de 2023. Curada por Adriano Pedrosa, diretor artístico, MASP; Fernando Oliva, curador, MASP; Laura Cosendey, curadora assistente, MASP.
O imenso escultor grego Nicolas Vlavianos, radicado em São Paulo há seis décadas, morreu hoje nesta cidade que considerava sua, aos 93 anos, de insuficiência respiratória. Quando chegou aos 80, ele me concedeu esta entrevista, em maio de 2009, na qual descreveu sua revolução pelo aço, mas não só. Conversar com este artista foi um grande privilégio meu. Aprendi como poucas vezes no jornalismo, antes ou depois, o sentido da arte em um tempo que inviabiliza o esforço físico e no qual a escultura não cabe mais.
Em foto de Patrícia Stavis, o escultor Vlavianos segura uma miniatura, ele que foi o artista da grande escala
POR ROSANE PAVAM
Sob seus olhos há pequenas bolsas e os cabelos brancos estão gentilmente rebeldes, mas o escultor grego Nicolas Vlavianos ainda pensa como sorri, de um jeito jovial, aberto às utopias. Ele habita São Paulo há quase cinco décadas, os pais e a esposa morreram aqui e os filhos Myrine e Gabriel prosseguem o caminho que ele abriu na arte. A cidade é seu lugar e sua revolução.
Homenageado pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte em abril, Vlavianos tem 80 anos, 40 deles como professor e coordenador cultural da Faculdade Armando Álvares Penteado, a Faap. Mas nada disso talvez conte tanto para ele quanto esta metrópole, toda por sua desde que o artista foi selecionado à VI Bienal Internacional de Arte. “São Paulo me deu a oportunidade de não sentir falta de alguma coisa”, raciocina Vlavianos, inclinado a terminar sua narrativa com frases excelentes, um homem educado que se senta em seu escritório na Faap em meio a pequenas esculturas nas prateleiras, uma mesa com papéis, folhetos e livros de arte e um computador.
Menino em Atenas
Vlavianos contava 32 anos naquele 1961, não era casado, não tinha filhos, não terminara o curso de Direito e seus pais, Charilaos e Evangelia, continuavam tabeliães em Atenas, de onde ele saíra cinco anos antes para habitar Paris. Por sua natureza de escultor, jamais pulou de lugar em lugar, sempre fixado à forja dos ateliês. Não era surpreendente, portanto, que de toda a Grécia só conhecesse a capital, até deixá-la, em 1956, aos 28 anos. Na cidade francesa, suas exposições adquiriram fama para além do estúdio que alugara em Montparnasse. Ele era uma nova realidade nas mostras do Museu Rodin, um artista finalmente moderno, contra tudo o que seu país lhe proporcionara.
É preciso não exercer a tentação de associar a imagem de Vlavianos à de todos os grandes escultores gregos dos quais aprendemos histórias. Vlavianos não é Fídias, não constrói imagens de adoração que parecem uma coisa quando vistas de perto e outras diferentes se observadas do sopé da montanha. Vlavianos não é um clássico, assim entendido o artista como um homem da Antiguidade. Ele nunca persegue a velha escola. Ontem como hoje, olha para o depois.
Paris aconteceu em sua vida porque os gregos deixaram de ser como seu conterrâneo Fídias, do qual não restaram obras, apenas relatos. Desde meados do século XIX, os gregos eram alemães da Bavária no campo da arte, e Atenas não pertencia politicamente a si mesma. A escultura neo-helênica, surgida nos últimos dois séculos, fora influenciada pelo neoclassicismo alemão. Os gregos, então, obedeciam curiosamente a quem reinterpretava sua luz antiga. “Não existia arte moderna em meu país”, diz.
O artista e sua lida, na cidade que lhe possibilitou a revolução pelo aço inoxidável e lhe deu um ambiente artístico atento, ameno, solícito
O Brasil do artista grego não tinha passado e seu futuro parecia certo aos estrangeiros. Como todos os que correram para cá naqueles anos, Vlavianos não enxergava limites nas terras brasileiras. A língua portuguesa não lhe parecia difícil, ele que falava francês, e além disso o jovem a sofisticava de tempos em tempos com a leitura da coluna do Vão Gogo, na verdade Millôr Fernandes, na revista O Cruzeiro. O clima era quente e os homens e mulheres, amenos. Todos, neste particular, eram um pouco gregos também.
Bastava conversar com uma profissional especializada como Felícia Leirner, a ele apresentada por um amigo grego comum, para que todo o mundo da arte se abrisse a Vlavianos. Havia críticos na São Paulo de então para notar sua existência e convocá-lo à contribuição no panorama das artes. Walter Zanini o percebera como escultor e se tornara seu amigo pessoal. Mário Pedrosa e Geraldo Ferraz acompanhavam entusiasmados a solidez do artista. A partir de pessoas como essas, a amizade com Cacilda Becker lhe surgiria como um novo degrau. A atriz de Pirassununga aproximara-se do escultor com uma proposta teatral.
Estudo em nanquim para a escultura “Vigia”, de 1972, e “Imortal IV”, aço, 1975
Em 1963, Vlavianos já alugara um ateliê, em razão da encomenda feita por um funcionário da Bolsa, Fernando Leite de Barros, que desejava ter um cavalo de bronze em tamanho natural, parecido com aquele fincado no Edifício Itália. Para fazer a escultura por boa quantia, Vlavianos não viu outra opção a não ser alugar um estúdio, encontrado à rua Espártaco, para diversão do escultor. O gladiador de origem trácia liderara a maior revolta de escravos da Roma Antiga e entrara no imaginário popular alguns anos antes por meio da interpretação de Kirk Douglas no filme Spartacus, de Stanley Kubrick. Enquanto Vlavianos fazia o cavalo no estúdio da Lapa, Cacilda lhe pedia armas para a montagem de César e Cleópatra, uma peça de Bernard Shaw que se revelaria um fracasso de público em 1964. Vlavianos compôs escudos, capacetes e espadas para os personagens ensurdecerem em cena os poucos espectadores.
Por essa época, as esculturas do artista começaram a mudar. Em sua sólida base terrena, sem jamais aspirar à leveza de quem voa pelo céu ou o procura, as obras ganharam flexibilidade, pregos, furos, humor. E aço. São Paulo deu-lhe o que, para Carlos Drummond de Andrade, havia de sobra nas calçadas da mineira Itabira, e também nas almas. “Em Paris, eu usava bronze e alumínio”, conta. “Mas São Paulo me deu o aço inoxidável.” E não somente ele. “Aqui achei eletrodos para soldar, lixas para lixar, todo o maquinário destinado a esculpir.”
Esta foi uma revolução para Vlavianos e para a arte do Ocidente, embora poucos se dessem conta do enorme fato. Até os anos 1960, não havia quem se atrevesse a esculpir integralmente em aço em todo o mundo. O material e o equipamento para manejá-lo, fartos na capital paulista, impulsionaram essa revolução.
“Sempre falamos mal de São Paulo, e eu também. Mas considere isso. A cidade tem de tudo.”
Aqui também houve centros para estudar a arte. O grego foi convidado a dar aulas na Faap em 1969, depois de recusar o convite do amigo Zanini para ensinar na Escola de Comunicações e Artes da USP, pobre em ateliês e recursos. Na Faap também dava aulas sua mulher, a artista Teresa Nazar. Ele via com bons olhos o trabalho estável, que ainda lhe rendia mais espaço para planejar as esculturas. Contudo, não tinha qualquer didática a oferecer à garotada. “Ainda não tenho. O que eu sei fazer, até hoje, é trazer os alunos para produzir as coisas. Nunca falo ‘o seu projeto é uma merda’. Eu digo: ‘Dá para melhorar’.” Ele não se recorda de um nome extraordinário saído de suas aulas de escultura, mas reconhece ter tido bons alunos pintores.
Isso porque a pintura, no seu particular modo de ver, é um estágio para um crescimento tridimensional. A arte começaria pela poesia. Dela seria possível chegar ao desenho e, posteriormente, à tela com cores. E, desse estágio, existiria a chance de alcançar a escultura, primeiramente feita com materiais maleáveis, como a madeira e a pedra-sabão de Minas Gerais, depois com os blocos rígidos.
A questão importante, para ele, é que hoje em dia não há nem mesmo uma possibilidade real para quem deseja alcançar o estágio de um escultor. “A escultura não é para nossa época”, sentencia. “Ela requer um grande esforço físico, mas nós perdemos essa capacidade de nos esforçar fisicamente.” O computador daria soluções mais rápidas e desacostumaria o artista com a lida. “É um instrumento que estreita o pensamento. Não é o computador que entra na sua maneira de pensar, é você que entra na maneira de pensar do computador.”
Para Vlavianos, que experimenta, contudo, parcerias para esboçar projetos nesse formato, tal meio técnico inibe até mesmo a avaliação de um problema, quando ele surge. E é só compreendendo o problema corretamente que se pode solucioná-lo. A solução, na escultura, acontece quando usamos a cabeça e as mãos, não quando clicamos o mouse, defende.
O computador também responderia a uma necessidade que a época tem por reagir de forma menos agressiva às coi- sas. “Quando o sapo é jogado na água quente, pula de imediato. Mas não percebe a ameaça se é cozido em fogo brando. Quem percebe o aquecimento global, a menos que tudo aqueça demais?”
Vlavianos compara esse estado de coisas na arte ao jornalismo, que incluiu gastronomia no cardápio, quando antes só admitia, e em casos específicos, a publicação de receitas de pratos. “O que vou fazer? Brigar por isso? Para brigar, seria necessário uma razão que o tempo não me dá.”
O espírito do tempo pede a acomodação, não a polêmica, o debate de ideias, afirma Vlavianos, como quem se resigna. Uma vez que a crítica acabou, o que é artístico se torna também negociável. A arte encarece com a necessidade atual de patrocínios, transporte, seguro, fotografia. Há a figura especialmente intrigante do curador. Ele é o homem do conceito, mas e se o conceito estiver errado? “Um conceito errado, por exemplo, é o de arte brasileira. Se colocamos estrangeiros para fazer arte brasileira, o que isso significa? Não existe arte brasileira. Existem os artistas do Brasil. Existem o carnaval e as mulatas.”
Vlavianos não tem conselhos a dar ao artista novo. Exceto, talvez, aquele de trabalhar de forma incessante, sem esperar enriquecer. “Se você quer dinheiro, abra um bar. Os bancos são os caminhos mais fáceis para isso. Para fazer arte, ou seja, expressar uma pequena parte do que pensa, você não pode exigir descanso. Se eu fico parado, tenho ideias muito boas de vez em quando. E daí? Daí, nada.”
O artista nunca soube o exato significado de seu nome de família. Talvez, em grego, algo “vlaviano” equivalha a algo “fiel”. O qualificativo faria sentido para ele, já que, neste mundo, a coisa que suporte mais dificilmente seja a perda de “quase todos os amigos”. Restaram-lhe as utopias. Ele ainda espera, como um sonho, correr um rio e conhecer a França inteira.
Este é o autorretrato de Emma Voss, a artista que supostamente primeiro realizou uma exposição de arte moderna em São Paulo, em 1910. É o que informa a curadoria da exposição “Era uma vez o moderno”, no Centro Cultural Fiesp até 29 de maio. Eis a descrição da pintura, finalizada em 1910 ou 1911:
“Em seu autorretrato que pertence hoje ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo podemos observar o rosto da artista, ainda jovem, a três quartos, olhando-nos de soslaio da direita para a esquerda (enquanto o movimento da cabeça gira em sentido contrário); o seu ar é altivo, as proporções são corretas, assim como a sugestão de luzes e sombras.
Não há um centímetro sequer da pintura que revele tibieza ou indecisão. O fundo do quadro é construído a partir da justaposição de tonalidades que se repetem no colo, no rosto e nos cabelos: lembra-nos um pouco as pinturas impressionistas de Max Liebermann ou de Max Slevogt, que a artista, talvez, tenha conhecido.
Nesse retrato, dissolve-se por certo o lugar-comum do “temperamento habitual feminino” referido pelo crítico do Estado de São Paulo à época em que foi pela primeira vez exibido.
A sua figura é construída com pinceladas curtas e enérgicas, demonstrando uma preocupação com o modelado da figura a partir das sobreposições de diversas camadas de tinta. Tudo é tratado por uma fatura espessa e uma gestualidade expedita do pincel.
Se não se pode ainda considerá-la uma pintura expressionista, também não é possível classificá-la como um trabalho puramente impressionista.
A sua posição – nesta pintura, pelo menos – aponta para experiências derivadas do pós-impressionismo, por exemplo, para a primeira pintura de Cézanne, como também para a de Van Gogh, assim como para os trabalhos de outros artistas que não mais se satisfizeram em tão somente imitar os efeitos luminosos rebatidos nas superfícies das coisas, como no caso do impressionismo, ou pelo uso de técnicas de divisão das cores por meio das pinceladas, como no divisionismo.”
O texto que acompanha o backlight do autorretrato na exposição “Era uma vez o moderno”, na Fiesp