Uma mulher adiante dos modernos

Autorretrato de Emma Voss (1910-1911)

Este é o autorretrato de Emma Voss, a artista que supostamente primeiro realizou uma exposição de arte moderna em São Paulo, em 1910. É o que informa a curadoria da exposição “Era uma vez o moderno”, no Centro Cultural Fiesp até 29 de maio. Eis a descrição da pintura, finalizada em 1910 ou 1911:

“Em seu autorretrato que pertence hoje ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo podemos observar o rosto da artista, ainda jovem, a três quartos, olhando-nos de soslaio da direita para a esquerda (enquanto o movimento da cabeça gira em sentido contrário); o seu ar é altivo, as proporções são corretas, assim como a sugestão de luzes e sombras.

Não há um centímetro sequer da pintura que revele tibieza ou indecisão. O fundo do quadro é construído a partir da justaposição de tonalidades que se repetem no colo, no rosto e nos cabelos: lembra-nos um pouco as pinturas impressionistas de Max Liebermann ou de Max Slevogt, que a artista, talvez, tenha conhecido.

Nesse retrato, dissolve-se por certo o lugar-comum do “temperamento habitual feminino” referido pelo crítico do Estado de São Paulo à época em que foi pela primeira vez exibido.

A sua figura é construída com pinceladas curtas e enérgicas, demonstrando uma preocupação com o modelado da figura a partir das sobreposições de diversas camadas de tinta. Tudo é tratado por uma fatura espessa e uma gestualidade expedita do pincel.


Se não se pode ainda considerá-la uma pintura expressionista, também não é possível classificá-la como um trabalho puramente impressionista.

A sua posição – nesta pintura, pelo menos – aponta para experiências derivadas do pós-impressionismo, por exemplo, para a primeira pintura de Cézanne, como também para a de Van Gogh, assim como para os trabalhos de outros artistas que não mais se satisfizeram em tão somente imitar os efeitos luminosos rebatidos nas superfícies das coisas, como no caso do impressionismo, ou pelo uso de técnicas de divisão das cores por meio das pinceladas, como no divisionismo.”

O texto que acompanha o backlight do autorretrato na exposição “Era uma vez o moderno”, na Fiesp

Lorca no espelho

“Pipas 096”, 1997

Satisfatória. Assim muitas vezes German Lorca se refere a cada etapa de sua obra durante o minidocumentário dirigido pelo filho José Henrique e exibido na retrospectiva “German Lorca – Mosaico do Tempo, 70 anos de fotografia”, no Itaú Cultural, em São Paulo.

Um artista que classifica como satisfatório cada passo de seu trabalho deve falar a verdade. Não se vive no mesmo patamar, alto ou baixo, quando se produz algo de valor indefinível como a arte. Satisfaz-se com ela. Ou não se satisfaz. E segue-se adiante. Sem que quase ninguém, exceto talvez o artista, consiga entender por quê. A arte está no futuro que dificilmente nos cabe ver.

“WTC Reflexo”, 1970

Em 96 anos de vida, 70 de fotografia, German Lorca segue sempre. Não só por São Paulo, vejam. São Paulo quase não está em jogo aqui. Sua cidade não é documental. O fotógrafo olha para si.

E está armado da ideia de satisfação. Se ela não existe ainda, eu devo procurá-la. Sorrio enquanto caminho. E devo seguir longevo, lúcido, agitado e feliz, mesmo se a procura é dura. A indefinível pirâmide, somente eu posso ver. E estou chegando lá!

“Vaticano colunas”, 1970

Apenas suas fotografias não sorriem. São sóbrias declarações da difícil permanência humana entre as quatro ou mais linhas do campo da vida em que se deve jogar.

Às vezes, são fotos que aspiram ao encaixe, à iluminação, à elevação, como esta do menino que empina pipas.

“Parque Dom Pedro”, 1949

Às vezes, são espelhos de desdobramentos, de inquietudes de quem se perde na cidade  e se fere por seus ângulos, ou busca clareiras.

Às vezes, ele queima por dentro, como quando adota o processo de solarização, aquele em que faz rápida exposição da imagem à luz durante o processamento do filme…

A hora em que o diabo entra!

“Diable au corps”, 1949

Lorca descreve linhas. Vive por elas. Tenta delimitá-las. Elas estão por toda parte, especialmente quando ele faz “arte”.

Sim, porque ele tem esse modo de dizer: quando não trabalho, quando não negocio, sou artista.

E, quando trabalho, tenho felicidade do mesmo modo.

“Moda”, 1960

Mas sempre procuro a linha. Preciso dela. Meu canteiro. Pra trabalhar, pra viver. Fujo dela enquanto a persigo. Gatos e ratinhos.

“Trópicos ou Homem com Guarda-Chuva”, 1951

Esta exposição começa com seus selfies, a provar o que todo mundo a esta altura já sabe, que os selfies, ou autorretratos, existem desde muito antes da internet, desde que o homem começou a fazer parte de um concerto (ou conserto) de ideias, de um ideário do capital. Quando o sistema, antes religioso e perene, disse ao homem “vire-se, você está só”, ele não teve jeito senão parar de olhar um pouco para deus, engolfando-se em si.

Selfies!

O intenso, em Lorca, é que ele faça essa autoprocura muito além dos selfies (que, me perdoe a curadoria, não deveriam começar a exposição, visto que no fim das contas se tratam de ilustrações rasas da personalidade do artista, brincadeiras de esconder).

Sua autoprocura tem, pelo contrário, algo de fé. Ela se expressa não só quando Lorca exibe homens e mulheres religiosos vestidos à maneira medieval, misturados em tarefas tão mundanas como atravessar a rua com uma criança ou pegar a barca enquanto lê um jornal.

“Irmã de caridade”, 1970

Lorca é religioso quando busca um princípio, uma devoção, um centro, quando deixa escapulir pelo Anhangabaú a girafa de um trabalho de publicidade e a coloca em um cercado à vista de todos.

“Ford Jeep Girafa”, 1962

Não é uma imagem fácil de ver.

Todos estão à volta se situam entre o sorrio e o calafrio.

A girafa pode fugir.

A girafa é ele. É seu trabalho.

Grande por se conter.

Mas não lhe peçam contenção, ok?