A cena. Eu na porta do consultório, de pé, com bota e uma bengala, à espera do uber que me trará de volta pra casa. O uber chega pela outra mão da rua, eu grito pra ele retornar até o endereço pedido, onde me encontro. Não só não retorna como estaciona do lado de lá, na esquina da rua, e me espera. Tenho de atravessar e andar de bengala até a esquina (ou vou chamar outro carro e me cobrarão taxa de cancelamento). Entro no automóvel do senhor idoso, que diz: “Desculpe, não vi a senhora lá.” Ah tá. No carro, rola rádio Jovem Pan. Seis horas, momento de “debate”, e alguém grita que Lula Comunista quer a Ditadura do Proletariado. Qual a opinião do candidato sobre o “absurdo” Moraes no TSE? Fala, Fiúza! E Fiúza, em resposta, começa por adular, rolando lero, um jornalista da bancada que acaba de perder o filho. Depois, o de sempre. A caterva dos petistas! Meu celular velho fica sem serviço o tempo inteiro, quarenta minutos. Nada que eu possa ouvir pelo spotify como alternativa caridosa. E a loção do motorista vai me impregnando. Abro a janela inutilmente, em busca de respiro. Fantasio descer ali mesmo, na avenida 23 de Maio do rush, e com minha bengala abrir caminho, feito o Charlton Heston nos Dez Mandamentos. Por que os bolsonaristas não limpam os focinhos?
e se mudar a rádio?
Começo o dia ainda animada pelo show de ontem. E entro no uber cheia de esperança. O jovem motorista, negro, usa boné e tem um carro bonito, não me pergunte qual, bem limpo. Sorri o tempo todo. Comenta o clima.
– Por isso a gente fica doente, né? Que sol é esse depois do frio de manhã cedo?
– Tem razão – digo. – E aconselho uma coisa: vacine-se contra a gripe. Peguei H1N1 e quase fui… Gripe e antigripal acabaram comigo! Ainda me sinto mal, sabia? Não vale a pena.
Me olha, diz baixo:
– Olha, moça, eu não acredito muito nessa indústria de vacinas…
(Rosane, por que não te maria calas?)
– Melhor você acreditar nessa indústria que naquela farmacêutica pra curar seu sarampo – brinco, na tentativa de lhe devolver toda a boa educação que teve comigo. – E vacina ainda é grátis no posto, não mata você…
– Acho que a senhora vai gostar deste programa.
Aumenta o rádio. Já o ouvia quando entrei. Eu penso: é agora, Orora. O Pânico da Jovem Pan comenta o aquecimento global.
O jovem professor de nome Ricardo Felicio, climatologista “da usp”, parece um jogador olímpico de pingue-pongue contra os radialistas do achincalhe da cognição. A cada pergunta banal, o entrevistado faz um rebate surreal, rápido, de tontear.
O Felício diz que:
1. Aquecimento global é cem por cento geopolítica. Não existe. Apenas passamos a monitorar a temperatura nos últimos anos. Nunca se viu tanto gelo como agora.
2. É só desenvolver uma bactéria que coma o plástico jogado ao oceano.
3. As abelhas, se morrerem, serão substituídas por outras espécies. Nunca se produziu tanto mel como no ano passado.
4. A engenharia florestal brasileira é a melhor do mundo. “Madeira dá muito dinheiro.”
Olho pro motorista com pena. O programa acompanha sua tentativa de entender a confusão do mundo. Uma rádio que é uma concessão pública, meu deus. Um entrevistado que nem sei classificar, um mitômano, um canalha.
Estamos chegando e eu, aterrada daquela felicidade airosa de minutos atrás, só lhe digo:
– Me promete que não vai deixar de se vacinar?
– Sim – sorri. – Prometo.
– E dou uma dica de estação de rádio melhor que essa. Já ouviu a Brasil Atual?