Como a China construiu sua hegemonia mundial: minha entrevista com Giovanni Arrighi

Em 2008, o intelectual italiano aceitou conversar comigo sobre a perda da liderança estadunidense em favor daquela do país asiático: “A China adotou mudanças graduais sem aceitar a terapia de choque neoliberal”

Funcionário do correio leva correspondência
na garupa da bicicleta em Pequim, 2007
:
“O sucesso da China se baseia em saber que aquilo que fez não poderá ser seguido por ninguém. Os chineses insistem no respeito a suas soberanias e tradições, e isto parece confortador para todos. O que os outros realizarão a partir disto é problema dos outros”

Em 2008, o pensador italiano Giovanni Arrighi, então com 71 anos, lecionava Sociologia e dirigia o Instituto para Estudos Globais em Cultura, Poder e História da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Nas últimas três décadas, havia consolidado sua relevância intelectual ao estudar a crise da hegemonia estadunidense dos anos 1970 e as transformações político-econômicas mundiais das décadas seguintes, que passaram pela expansão vertiginosa da China até a crise financeira de 2008. No ano anterior, a editora Boitempo lançava no Brasil o último livro de Arrighi, “Adam Smith em Pequim: Origens e fundamentos do século XXI”, sobre a substituição dos Estados Unidos como líderes incontestes internacionais. Um livro incrível, um assunto e tanto sobre o qual conversar.

Propus entrevistar o professor milanês naquele junho de 2008 e ele aceitou. Era um cavalheiro paciente. Respondeu com muita gentileza às perguntas que lhe fiz por telefone e não recusou continuar nossa conversa no dia seguinte, depois de eu ter verificado a qualidade pífia da gravação, feita com o aparelho de terceira linha fornecido pela redação pagadora. Eu não sabia que Arrighi tinha câncer. Não teria insistido na entrevista se tivesse sido informada sobre a doença que o mataria no ano seguinte, vinte dias antes de completar 72 anos. 

Naquele momento, o mundo sofria outras convulsões. Barack Obama, presidente dos Estados Unidos por dois mandatos seguidos, entre janeiro de 2009 e janeiro de 2017, nem havia sido eleito ainda (Arrighi não dava sua vitória como certa). Lula, contudo, já exercera sua primeira presidência do Brasil (2003-2006) e cumpria um segundo período como presidente (entre 2007 e 2010). Eu entendia muito bem o privilégio da situação brasileira. Mas não teria sido possível, para mim, prever a virada fascista de que seríamos vítimas dez anos depois desta conversa, muito menos a necessidade de Lula voltar ao poder para garantir nossa existência democrática, 15 anos depois.

No livro “O longo século XX”, publicado em 1994, Arrighi desenvolvera o tema da progressiva recuperação do Leste asiático como centro econômico mundial, posição que havia perdido para o Ocidente pan-europeu (Estados Unidos incluídos) desde o século XIX. No alvorecer dos anos 2000, contudo, a China, já considerada líder regional por sua população, extensão territorial e relativa posição de força no Extremo Oriente, exibia um desenvolvimento econômico espantoso, atraindo a atenção mundial para sua caminhada rumo a uma posição hegemônica.

Àquela época, a trajetória estadunidense era inversa. Enfraquecidos pelo atoleiro iraquiano, à beira da depressão e com um fantástico déficit em transações correntes financiado pelo Japão e cada vez mais pela China, os Estados Unidos se viam vitimados por essa virada histórica. Ela acentuava a possibilidade de equalização do poder mundial entre o Ocidente conquistador e o não Ocidente conquistado, como previra o filósofo escocês Adam Smith no longínquo século XVIII.

A proposta investigativa de Arrighi em “Adam Smith em Pequim” era ambiciosa. Ele desejava identificar as conexões entre o que fazia da China a grande economia mundial até meados do século XIX e o que tornava possível sua transformação, em dias correntes, na protagonista de um fantástico ressurgimento econômico. 

A seguir, a entrevista.

Giovanni Arrighi durante palestra em Grahamstown, África do Sul, para a divulgação de seu livro
“Adam Smith em Pequim (Origens e Fundamentos
do Século XXI)”, em 2007:

“Os Estados Unidos não são mais hegemônicos. Por enquanto, são aqueles com o maior aparato militar, capaz de destruir qualquer país. E é precisamente por isso que podem dominar: porque têm um impacto sobre o mundo muito maior do que qualquer outra nação. Este domínio, contudo, não significa que os outros países necessariamente seguirão sua
liderança. Na verdade, eles
não a seguem mais”

Em seu livro “Adam Smith em Pequim (Origens e Fundamentos do Século XXI)”, o sr. desenha a perspectiva da decadência econômica estadunidense e a confronta com a ascensão chinesa. Contudo, diz que essa decadência estadunidense se anuncia sem a imediata perda de domínio político no cenário mundial. Como se processaria o domínio sem a hegemonia?

A hegemonia, da forma como a entendo, envolve liderança, capacidade de mobilizar outros países de acordo com uma agenda particular. Em outras palavras, significa fazer com que os outros países acreditem em um consenso em torno deste líder, na sua capacidade de agir em favor do interesse dos liderados. Neste sentido, os Estados Unidos não são mais hegemônicos. Por enquanto, são a maior economia, e aquela com o maior aparato militar, capaz de destruir qualquer país. E é precisamente por isso que podem dominar: porque têm um impacto sobre o mundo muito maior do que qualquer outra nação. Este domínio, contudo, não significa que os outros países necessariamente seguirão sua liderança. Na verdade, eles não a seguem mais. Os Estados Unidos permanecerão dominantes, mas não aptos a liderar o mundo como fizeram, por exemplo, ao final da Guerra Fria. Naquele período, eles eram capazes não só de criar alianças políticas e combinações, mas também tinham o poder de induzir europeus e japoneses a superar antigas diferenças com o objetivo de reconstruir a economia mundial. Agora, os Estados Unidos não têm mais o poder para exercer a liderança rumo à reconstrução. É assim que eles têm o domínio sem a hegemonia. 

Em 2009, o presidente dos EUA conversa
com o presidente chinês Hu Jintao
durante a cúpula do G-20, em Pittsburgh:
Barack Obama viu-se em posição “delicada”
para reverter a desastrosa guerra de

George W. Bush e liderar a
reconstrução econômica mundial

E esta incapacidade pode permanecer mesmo que o candidato democrata indicado Barack Obama chegue à presidência?

Obama pode fazer uma diferença, no sentido que não deverá causar desastres políticos semelhantes aos promovidos pela administração de George W. Bush. Obama e mesmo o candidato republicano John McCain, contudo, estarão em uma posição muito delicada neste sentido, porque os desastres cometidos por Bush não serão fáceis de reverter. Se houver mesmo uma mudança profunda nas políticas estadunidenses, como Obama parece invocar, embora ainda não se saiba ainda que mudança será essa, isto claramente poderá melhorar a imagem dos Estados Unidos não só na Europa, mas também na África e em outras partes do mundo. Esta mudança daria sinais de vida à hegemonia do país.  Mas seria uma situação temporária, porque esconderia as causas reais dos problemas americanos.

E quais são esses problemas, na sua visão?

Em primeiro lugar, os Estados Unidos não são os mais competitivos economicamente, à moda do que foram naquela idade do ouro. São, em verdade, devedores mundiais, e mantêm um déficit na balança para o qual não há perspectiva clara de resolução.

A crise hegemônica estadunidense vinha sendo anunciada e deveria acontecer naturalmente, independentemente das ações do governo. Quando os Estados Unidos iniciaram esta guerra no Iraque, tinham a intenção de superar a “síndrome do Vietnã”, a derrota naquela guerra. Bush esperava que a disparidade de forças entre os EUA e o Iraque, se comparadas às dos Estados Unidos e daquele Vietnã apoiado pela força militar soviética, resolvesse a guerra rapidamente. Em outras palavras, George W. Bush esperava que a invasão do Iraque revertesse o veredito do Vietnã em favor dos Estados Unidos, o que não aconteceu. O Iraque não os ajudou neste propósito, e as coisas ficaram ainda piores para eles. Os estadunidenses não foram capazes de superar a resistência iraquiana, não criaram um Iraque segundo seus desejos; em lugar de promover a democracia na região, ali instauraram o caos. Neste sentido, a credibilidade do poder militar estadunidense como uma força construtiva caiu por terra como nunca ocorrera antes. Não é fácil imaginar como qualquer um possa reverter isto agora.

O presidente dos EUA é
recebido em banquete pelo presidente chinês
Jiang Zemin em Pequim, 1998:

Bill Clinton e as nuances de um “poder suavizado”, mais “inteligente”, que não
ousou voltar ao Iraque depois da
primeira Guerra do Golfo

Mas por que o senhor aponta este ponto de ruptura na administração Bush e não na de  Clinton, que o precedeu? 

Porque a administração Clinton revelou-se muito mais inteligente do que esta. A principal diferença entre os dois governos foi a percepção de Bill Clinton de que não deveria contrariar a Doutrina Powell. Esta doutrina estabelecia que, depois da primeira Guerra do Golfo, não se deveria voltar ao Iraque, uma vez que o país já demonstrara não saber sair dele _ o grande exército estadunidense, neste caso, não poderia, nem deveria ser usado. Havia um entendimento de que este uso não se provaria eficiente, que não se deveria promover um novo Vietnã, não só em razão desta doutrina que estabelecia a cautela na aplicação do poderio militar dos Estados Unidos, mas porque o país teria a chance de exercer a hegemonia de maneira mais suave, por meio de um acordo econômico que levaria o nome de globalização. Globalização foi a palavra-chave da administração Clinton. 

O presidente Bill Clinton, portanto, conhecia melhor esses limites impostos ao poder. Por isso era mais cauteloso na hora de fazer valer sua força militar. Enquanto a guerra travada por sua administração no Kosovo queria mostrar, entre outras coisas, que era dispensável o apoio da ONU às ações estadunidenses aprovadas pela Otan, a Guerra do Iraque iniciada por Bush dispensava até mesmo o apoio da Otan.

Contudo, depois de 1997 e 1998, quando o poder econômico “suavizado” de Clinton foi exercido em seu ponto mais elevado, houve uma mudança significativa da relação dos Estados Unidos com o mundo. Em toda a parte o déficit aumentou tremendamente. As dívidas estadunidenses cresceram. Os Estados Unidos se viram diante não mais de países do Primeiro Mundo, mas daqueles do sul global, dos países anteriormente comunistas, como a Rússia. 

A bolha estadunidense estava se desfazendo. Globalização e liberalização vinham, em realidade, minando o poder dos Estados Unidos. Foi então que o país decidiu voltar militarmente à cena, para restabelecer sua posição no cenário mundial. Em lugar de resolver o problema, os estadunidenses o tornaram maior ainda quando decidiram endurecer. Sua ação se tornou mais efetiva interna e externamente. 

Ronald Reagan, quando ascendeu ao poder nos Estados Unidos, teve problemas semelhantes. Ele introduziu políticas econômicas muito duras e restritivas, que provocaram uma imensa recessão no país. Mas não há, atualmente, a perspectiva de uma recessão como aquela. Agora, a situação exige encontrar barganhas não somente com os europeus, mas com os novos poderes asiáticos e latino-americanos.

Obama pode tentar acomodar as coisas. Mesmo entre os conservadores, há diferentes posições diante desta situação e não está claro qual delas emergirá. De toda forma, não acredito, como nunca acreditei, que os Estados Unidos venham a passar por uma catástrofe como a recessão dos anos 1930. Isto não quer dizer que a crise atual inexista. É uma crise acompanhada de transferência de poder. Mas os Estados Unidos resistem à transferência. Resistir a ela foi o que Bush fez, o que tornou, como sabemos, as coisas piores. É preciso, do ponto de vista do poder estadunidense, que ele encontre formas de tomar pulso novamente da situação.

O presidente dos EUA George W. Bush
entre o embaixador dos EUA no Iraque, Zalmay Khalilzad, e o comandante das forças multinacionais em Bagdá, George Casey, em 2006:

“A credibilidade do poder militar estadunidense
como uma força construtiva caiu
por terra como nunca antes, incapaz
de superar a síndrome do Vietnã”

O sr. diz que a China é a grande vencedora da luta contra o terror patrocinada pelos Estados Unidos após o ataque às Torres Gêmeas, em 2001.

A China se revelou mais competitiva economicamente, exercendo o poder nesta base não militar. Nos anos 1980 e 1990, ela venceu uma batalha gradual na qual demonstrou mais eficiência econômica do que a Rússia no cenário mundial. A Rússia destruiu seu sistema de planejamento, sem a capacidade que teve a China de se voltar ao mercado. Sem adotar a receita neoliberal do Consenso de Washington, a China foi mais aberta que o Japão, por exemplo, aos investimentos estrangeiros, desde que servissem a seus interesses nacionais. Soube fazer sua industrialização voltar-se à exportação. Mais do que no resto do mundo, na China o governo investe diretamente para promover a colaboração entre universidades, empresas e bancos estatais no desenvolvimento da informática. A China não aceitou a terapia de choque neoliberal. Fez as mudanças gradualmente, o que provou ser acertado.

Neste momento, os chineses estão mudando, em seu entorno, a situação de muitos outros países, como os da África, como a própria Rússia, o Brasil, a América Latina. Eles criam uma nova conjuntura, por serem mais competitivos que os Estados Unidos. Estatisticamente, há uma situação de maior igualdade entre as nações depois da ascensão chinesa. A igualdade é crescente também dentro do próprio país. O problema é como manter esta situação em progressão. Há uma nova consciência para os problemas ecológicos e sociais que cresce rapidamente. A dificuldade é que, em se tratando de um país de tão grandes dimensões, a China não pode controlar tudo o que acontece em todas as províncias.  É minha posição moderadamente otimista, mas não cega, ao que acontece por lá. 

Integrantes da comunidade Uighur realizam
danças tradicionais em Pequim, 2017:
“Os chineses sabem muito bem que não estão oferecendo um modelo para as outras pessoas.
Eles acreditam, em outras palavras, que seu sucesso é baseado em uma espécie de característica histórico-geográfica que não

pode ser reproduzida além
dos limites do país”

Supondo que a China vença a batalha econômica, e faça mesmo este tipo de ascensão pacífica, como o senhor anota em um dos capítulos de seu livro, de que forma conseguirá vencer igualmente a batalha pelas mentes e corações mundiais? Como seria possível aceitar globalmente o estilo chinês de viver, que comporta alguns elementos  de repressão e pobreza?

A China, apesar de todos os avanços, é, de fato, um país pobre. Mais pobre, proporcionalmente, que o Brasil e a América Latina (seus índices per capita são mais altos do que os da África). Entendo o que está em questão. Como pode ser hegemônico um país que, no fundo, é pobre? Um país pobre que está ausente da tradição ocidental? E está emergindo como um país poderoso, apesar de, em certa medida, ser o mais pobre do mundo. 

Mas a questão é que os chineses sabem muito bem que não estão oferecendo um modelo para as outras pessoas. Eles acreditam, em outras palavras, que seu sucesso é baseado em uma espécie de característica histórico-geográfica que não pode ser reproduzida além dos limites do país. O consenso de Pequim parece mais aceitável ao sul global do que aquele de Washington, nos anos 1990, já que não oferece uma solução global para os problemas de todos os países. Parece haver o reconhecimento de que a China encontrou um modelo, mas que o modelo dos outros será encontrado por eles próprios.

Seu sucesso se baseia no fato de que o que a China fez não poderá ser seguido por ninguém. Os chineses insistem no respeito a suas soberanias e tradições, e isto parece confortador para todos. O que os outros realizarão a partir disto é problema dos outros. O medo de que o Brasil, os Estados Unidos ou a Europa adotem um modelo político-social parecido com o chinês é baseado em nada, realmente. Além do mais, não há um histórico chinês de tentativa de colonização mundial, antes de autodefesa. Eles sabem que vêm de uma tradição diferente e que não há nada a ganhar impondo-a fora de seus limites. Têm noção de que um consenso em torno do poder econômico é mais produtivo do que aquele militar, do que uma guerra patética contra um país como o Iraque. É uma simples questão de cálculo.

Exército chinês atravessa Drongpa,
no Tibete, em 2007:
“A China se baseia nos limites territoriais desenhados no século XVIII. Isto pertence a sua doutrina moral. O próprio Dalai-Lama sabe disso melhor do que ninguém, que não pode conseguir a independência tibetana diante da China da
maneira como o Ocidente a desejaria”

Ou de pragmatismo.

Sim, eles são muito pragmáticos e sabem que não adianta imitar o Ocidente em certas particularidades. Aprenderam uma lição no Vietnã. Voltaram ao exercício tradicional do poder econômico, não do militar. O poder militar chinês é essencialmente, como eu disse antes, o de autodefesa. O que os chineses não farão é qualquer tipo de concessão em relação a Taiwan ou ao Tibete, porque se baseiam nos limites territoriais desenhados durante o século XVIII. Isto pertence a sua própria doutrina moral, de certa forma. O próprio Dalai-Lama, do Tibete, sabe disso melhor do que ninguém, que não pode conseguir a independência de seu país diante da China da maneira como o Ocidente a desejaria. 

Um robô confidente no filme
“Levados pelas marés”, de Jia Zhang-ke, 2024:

“Nos próximos vinte ou trinta anos haverá muitas surpresas em relação ao que pensamos agora. A grande utopia liberal do consenso de Washington entrou em colapso, e agora vivemos a grande utopia da emergência asiática,
uma diversificação entre os modelos
comunistas e capitalistas”

Nos próximos vinte ou trinta anos haverá muitas surpresas em relação ao que pensamos agora. A grande utopia liberal do consenso de Washington entrou em colapso, e agora vivemos a grande utopia da emergência asiática, uma diversificação entre os modelos comunistas e capitalistas. O modelo não é preciso, e ainda bem que não o é. Veja que a Europa caminha para uma guinada ao fascismo, como na Itália de Silvio Berlusconi, e há Ângela Merkel na Alemanha, além de outras figuras do passado. Seria interessante ver Barack Obama neste cenário _ não acho que ele tenha grandes chances de ganhar a presidência, mas as chances existem. 

Depois de tudo isso, é possível que tenha lugar uma utopia latino-americana.

O sr. realmente acredita nesta possibilidade?

A América Latina tem promovido sua guinada à esquerda. Se considerarmos o que houve politicamente na região nos anos 1970, a emergência de ditaduras militares, este momento traduz uma mudança considerável. Houve períodos de um revival democrático, depois uma tentativa de liberalismo, e agora a América Latina entrou nesse período de crítica do regime liberal. É uma nova cultura, talvez. Em termos de relações econômicas internacionais, a América Latina tem as melhores chances em muitos anos, em razão também dessa ascensão chinesa. Está-se criando uma grande unidade continental. Claro que esta evolução também precisa ser traduzida em termos de reformas sociais. 

O chanceler da República Popular da China, ministro Yang Jiechi, com o presidente Lula e o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, conversam em Brasília sobre relações
multilaterais nas áreas de tecnologia,
agricultura e energia, em 2009:
“Internacionalmente, Lula tenta preservar esta porção do continente diante de uma investida dos Estados Unidos. Economicamente, suas decisões
têm dado ao Brasil uma condição de maior independência em relação às outras nações”

O sr. tem uma avaliação sobre a posição do presidente do Brasil neste cenário?

Lula é uma imagem mista, como você sabe. Internacionalmente, creio eu, ele está indo muito bem, tentando preservar esta porção do continente diante de uma investida dos Estados Unidos. Economicamente, não sou tão crítico quanto à disciplina adotada por seu governo, porque suas decisões têm dado ao Brasil uma condição de maior independência em relação às outras nações. Socialmente, não sou familiarizado com a situação brasileira para emitir opiniões.  

Quixote e Sancho contra o imperador Ming

“Caminhando contra o Vento”, na competição Novos Diretores da Mostra Internacional, mostra uma China corrupta, incapaz de apontar um bom futuro para sua juventude

Trapaça que resulta em prisão, favorecida por um sistema que admite propinas

Se o impedimento a toda e qualquer liberdade de expressão estivesse em vigência na China, a produção deste filme dificilmente teria se dado. “Caminhando contra o vento”, o primeiro longa-metragem de Wei Shujun, é tudo menos o elogio a um horizonte de excelência para a juventude do país. Naturalmente, seu final se aproxima de conciliar as coisas, mas o que importa está no meio da narrativa. No desajuste constante, acelerado, implacável, que parece o único possível a dois estudantes de sonoplastia cinematográfica.

Meu reino por uma SUV

A faculdade de cinema chinesa de nada serve a nossos protagonistas quixotecos às avessas, que atuam como em uma dupla cômica, fadada a seguidos tropeços. O menino magro tem um nome, Kun Zuo, que o liga à palavra “universo”, aqui em desencontro. Kun (interpretado por You Zhou) tem uma namorada adequada ao sistema, mas o jovem se julga em condição de vencê-lo pela trapaça aberta, sem o mínimo cálculo dos riscos. Ele compra até mesmo uma SUV de filtro quebrado, e por este erro se enreda. Seu amigo gordo, A Ming (Wang Xiaomu), tem-lhe toda a fidelidade, jocosa e sem noção. E o sistema rodoviário chinês não é uma maravilha: seus fiscais são facilmente corrompidos, como aqui.

Wei Shujun, diretor de “Caminhando contra o vento”

É a faculdade deles, sendo paga, o maior roubo das expectativas dos seus pais. Os alunos não a querem, e só aprendem enquanto trabalham por si, mesmo que atabalhoadamente. Em meio ao trabalho, aprontam tolices como dirigir bêbados, quando isto na China dá suspensão imediata de carteira e detenção de dez dias, ou roubam provas para revendê-las aos alunos em exame.

Contudo, as trapalhadas expostas não transformam este filme em comédia – por vezes, infelizmente, nem mesmo em bom filme. O diretor Wei Shujun, de 29 anos, insiste nas ondas de fracasso da dupla sem um alívio dramático, sem narrativa coesa, sem um ritmo que possa satisfazer até mesmo o espectador benevolente. A fotografia funciona, os atores não são ruins e a música que eles ouvem nos fornece informação sobre a vida na China. Principalmente, é útil para um ocidental saber que driblar um sistema corrupto dá em nada em qualquer lugar.

Uma dupla que talvez apontasse para a ação cômica

CAMINHANDO CONTRA O VENTO 

Dir.: Wei Shujun 

China

2020   

130 min.   

https://mostraplay.mostra.org/film/caminhando-contra-o-vento/

Chineses, reclamar por quê?

O artista plástico Ai Weiwei precisa voltar ao Brasil urgentemente para compreender por que seu filme sobre a pandemia nos parece estranho em muitos momentos. A China errou, e muito, ao ignorar o potencial do vírus no início, mas nunca esteve nos planos do governo matar deliberadamente seus cidadãos contaminados

Nos hospitais, os incansáveis procedimentos de urgência

De 1 de dezembro do ano passado, quando o primeiro caso foi detectado, até o estabelecimento do lockdown na China, em 23 de janeiro de 2020, um grande silêncio foi imposto aos habitantes do país sobre o potencial letal da Covid-19. Este parece ser um dos lamentos centrais do artista plástico Ai Weiwei, que dirigiu remotamente o documentário “Coronation”, exibido até o dia 5 de novembro durante a 44 Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ao organizar imagens aéreas e terrenas de Wuhan, a cidade por onde a contaminação primeiro e rapidamente se espraiou.

A polícia controla os papeis de quem se dirige à cidade que é foco de contaminação



Médicos, enfermeiros, trabalhadores de construção, doentes e seus familiares foram registrados por meio de câmeras e celulares particulares para que ocorrências relacionadas ao estouro da pandemia se vissem exibidas em ritmo cinematográfico, de modo a “coroar” os verdadeiros responsáveis pelos erros que resultaram na contaminação acelerada e transformaram a China, inicialmente, na nação do coronavírus, esta a que o diretor alude ironicamente no título do filme como “coronation”.

Para Weiwei, que reflete enquanto expõe, errado é um sistema político que prende seus habitantes à burocracia controladora de suas vidas, ignorando dores e necessidades particulares, como aquelas envolvidas na luta pela sobrevivência dos doentes. Parentes que não podem dispor facilmente das cinzas de seus mortos, por razões não esclarecidas, e que acabam por queimar seus restos em plena rua, nas sequências finais do filme, são expostos em sua impotência diante da morte evitável. Há humor quando uma idosa servidora do partido reflete sobre a grandeza da união em prol do bem comum no país: ela saberá que a cúpula chinesa mente aos seus cidadãos?

A idosa servidora do partido e seu filho, em uma sequência com elementos de humor:
ela sabe que a cúpula chinesa omite informações a seus cidadãos?

O brasileiro que vê este filme deve se preparar para o sofrimento dobrado. Toda a lamentação chinesa lhe parecerá estranha, desde aquela dos pacientes curados, a quem foi imposto o confinamento sem diagnóstico contundente final. Por que reclamar, se se salvaram?

A vestimenta sem erro e a rigorosa esterilização dos funcionários nos hospitais

Depois de um grande tropeço de avaliação inicial, nada parece errado no que a China faz para curar seu povo e impedir que a contaminação ande além. Todos os que partem de locais contaminados ou a ele se dirigem são rigorosamente inspecionados. Há medidores de temperatura nos locais públicos, incluindo transportes. Depois de certa altura, se sair à rua sem cuidados, e quando não recomendado, um chinês será obrigado a pagar pelo tratamento, que durante a pandemia foi gratuito. Nenhum médico está sozinho na hora de se higienizar: dentro dos hospitais, uma câmera rastreia seus procedimentos e alguém, ao observar a cena por monitores, avisa ao profissional se não limpou direito seus sapatos.

Drones medem a amplitude de um país continental

Não é um filme sobre particularidades, antes sobre contextos. Weiwei preza a observação extensa, continuada, incansável e irônica de seus personagens em linha de montagem, que podem, por exemplo, estar sujeitos a um juramento de fidelidade ao Partido Comunista quando isto nem de longe seria o esperado em pleno estouro de uma crise sanitária.

Ai Weiwei: em “Coronation”, os olhos abertos para as grandes dimensões

Vivenciamos as dimensões continentais do país no seu cotidiano. Um médico anda por vários minutos por entre labirínticos corredores até alcançar seu local de trabalho num hospital em que tudo, desde a vestimenta de proteção, funciona a contento e com cuidado. Câmeras em drones demonstram a imensa malha de trilhos e estradas que fazem daquele um vasto território acordado para o mundo em todas as horas da noite e do dia.


Por que reclamar da China, se somos brasileiros nas mãos de genocidas?

Weiwei, volte ao Brasil, e rápido.

O fechamento de uma urna funerária diante dos parentes dos mortos, que ficam de costas

Coronation (Coronation)

Dir. Ai Weiwei

China

115 min

2020

https://44.mostra.org/filmes/coronation

A liberdade celestial

Em “A Ponte de Bambu”, Marcelo Machado vê a ligação mantida
pelo amigo e jornalista Jayme Martins com a China desde os anos 1960

Em Pequim, a partir de 1962, Jayme Martins atua como professor

Se um lugar não lhe dá liberdade, você pode procurar outro lugar para ser livre. Ou talvez encontre esta condição dentro de si. O jornalista Jayme Martins, hoje com 90 anos, não se sentia tão livre assim no Brasil. Ele buscou por sistemas filosóficos que lhe garantissem uma ação libertária, mas não parou em nenhum até encontrar o marxismo. Em 1962, ser comunista não parecia coisa boa. Ele então decidiu experimentar a China que lhe oferecia trabalho, e a sua mulher, além de moradia em um hotel para estrangeiros. Teve duas filhas lá e não pensava em voltar ao seu lugar, então francamente antilibertário, até que a anistia chegasse aos brasileiros e ele pudesse estar em Jundiaí para espalhar o que aprendeu com os chineses.

Jayme Martins vestido com o rigor da tradição

É, em linhas gerais, o que diz o documentário de Marcelo Machado, A Ponte de Bambu. Não que o diretor tenha conseguido aprofundar a história de Martins desde a infância de suas vocações. Em verdade, trata-se de mais um filme sobre a China em que a perspectiva precisa ser familiar, resistente como aquela gramínea. A mulher do diretor é chinesa, e Jayme Martins nunca perdeu a fé nos comunistas dali, nem mesmo quando deixou às pressas a Pequim onde as filhas estudavam. O massacre na Praça da Paz Celestial, conforme ele informou à época em reportagens ao JT, ao Estadão e ao SBT, foi desnecessário e cruel. Tropas com seus tanques chegaram a Pequim naquele 1989 desinformados das manifestações políticas crescentes, achando que combateriam uma enchente.

As filhas Raquel e Andrea com os colegas da escola para chineses
Raquel com os estudantes da Praça da Paz Celestial durante as manifestações que resultaram no massacre de 1989

Marcelo Machado é um documentarista sensível, com belo entendimento do ritmo musical e dos depoimentos, obtidos com a naturalidade de quem divide a cozinha com seus personagens. Não se posiciona a favor da China, e não precisa. Martins ainda acredita nela. A seu ver, o país adaptou a economia de mercado ao comunismo, transformando a mais-valia em bem-estar social. E o jornalista acredita que isto vai dar em coisa boa, com certeza.

A família reunida em Jundiaí
Com amigos e a esposa Angelina na Muralha da China

A PONTE DE BAMBU

Diretor: Marcelo Machado

Brasil, 77 min

Onde: bit.ly/3mI4SJI

exibições: 27/9, às 21h, 28/9, às 15h