Quixote e Sancho contra o imperador Ming

“Caminhando contra o Vento”, na competição Novos Diretores da Mostra Internacional, mostra uma China corrupta, incapaz de apontar um bom futuro para sua juventude

Trapaça que resulta em prisão, favorecida por um sistema que admite propinas

Se o impedimento a toda e qualquer liberdade de expressão estivesse em vigência na China, a produção deste filme dificilmente teria se dado. “Caminhando contra o vento”, o primeiro longa-metragem de Wei Shujun, é tudo menos o elogio a um horizonte de excelência para a juventude do país. Naturalmente, seu final se aproxima de conciliar as coisas, mas o que importa está no meio da narrativa. No desajuste constante, acelerado, implacável, que parece o único possível a dois estudantes de sonoplastia cinematográfica.

Meu reino por uma SUV

A faculdade de cinema chinesa de nada serve a nossos protagonistas quixotecos às avessas, que atuam como em uma dupla cômica, fadada a seguidos tropeços. O menino magro tem um nome, Kun Zuo, que o liga à palavra “universo”, aqui em desencontro. Kun (interpretado por You Zhou) tem uma namorada adequada ao sistema, mas o jovem se julga em condição de vencê-lo pela trapaça aberta, sem o mínimo cálculo dos riscos. Ele compra até mesmo uma SUV de filtro quebrado, e por este erro se enreda. Seu amigo gordo, A Ming (Wang Xiaomu), tem-lhe toda a fidelidade, jocosa e sem noção. E o sistema rodoviário chinês não é uma maravilha: seus fiscais são facilmente corrompidos, como aqui.

Wei Shujun, diretor de “Caminhando contra o vento”

É a faculdade deles, sendo paga, o maior roubo das expectativas dos seus pais. Os alunos não a querem, e só aprendem enquanto trabalham por si, mesmo que atabalhoadamente. Em meio ao trabalho, aprontam tolices como dirigir bêbados, quando isto na China dá suspensão imediata de carteira e detenção de dez dias, ou roubam provas para revendê-las aos alunos em exame.

Contudo, as trapalhadas expostas não transformam este filme em comédia – por vezes, infelizmente, nem mesmo em bom filme. O diretor Wei Shujun, de 29 anos, insiste nas ondas de fracasso da dupla sem um alívio dramático, sem narrativa coesa, sem um ritmo que possa satisfazer até mesmo o espectador benevolente. A fotografia funciona, os atores não são ruins e a música que eles ouvem nos fornece informação sobre a vida na China. Principalmente, é útil para um ocidental saber que driblar um sistema corrupto dá em nada em qualquer lugar.

Uma dupla que talvez apontasse para a ação cômica

CAMINHANDO CONTRA O VENTO 

Dir.: Wei Shujun 

China

2020   

130 min.   

https://mostraplay.mostra.org/film/caminhando-contra-o-vento/

Chineses, reclamar por quê?

O artista plástico Ai Weiwei precisa voltar ao Brasil urgentemente para compreender por que seu filme sobre a pandemia nos parece estranho em muitos momentos. A China errou, e muito, ao ignorar o potencial do vírus no início, mas nunca esteve nos planos do governo matar deliberadamente seus cidadãos contaminados

Nos hospitais, os incansáveis procedimentos de urgência

De 1 de dezembro do ano passado, quando o primeiro caso foi detectado, até o estabelecimento do lockdown na China, em 23 de janeiro de 2020, um grande silêncio foi imposto aos habitantes do país sobre o potencial letal da Covid-19. Este parece ser um dos lamentos centrais do artista plástico Ai Weiwei, que dirigiu remotamente o documentário “Coronation”, exibido até o dia 5 de novembro durante a 44 Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ao organizar imagens aéreas e terrenas de Wuhan, a cidade por onde a contaminação primeiro e rapidamente se espraiou.

A polícia controla os papeis de quem se dirige à cidade que é foco de contaminação



Médicos, enfermeiros, trabalhadores de construção, doentes e seus familiares foram registrados por meio de câmeras e celulares particulares para que ocorrências relacionadas ao estouro da pandemia se vissem exibidas em ritmo cinematográfico, de modo a “coroar” os verdadeiros responsáveis pelos erros que resultaram na contaminação acelerada e transformaram a China, inicialmente, na nação do coronavírus, esta a que o diretor alude ironicamente no título do filme como “coronation”.

Para Weiwei, que reflete enquanto expõe, errado é um sistema político que prende seus habitantes à burocracia controladora de suas vidas, ignorando dores e necessidades particulares, como aquelas envolvidas na luta pela sobrevivência dos doentes. Parentes que não podem dispor facilmente das cinzas de seus mortos, por razões não esclarecidas, e que acabam por queimar seus restos em plena rua, nas sequências finais do filme, são expostos em sua impotência diante da morte evitável. Há humor quando uma idosa servidora do partido reflete sobre a grandeza da união em prol do bem comum no país: ela saberá que a cúpula chinesa mente aos seus cidadãos?

A idosa servidora do partido e seu filho, em uma sequência com elementos de humor:
ela sabe que a cúpula chinesa omite informações a seus cidadãos?

O brasileiro que vê este filme deve se preparar para o sofrimento dobrado. Toda a lamentação chinesa lhe parecerá estranha, desde aquela dos pacientes curados, a quem foi imposto o confinamento sem diagnóstico contundente final. Por que reclamar, se se salvaram?

A vestimenta sem erro e a rigorosa esterilização dos funcionários nos hospitais

Depois de um grande tropeço de avaliação inicial, nada parece errado no que a China faz para curar seu povo e impedir que a contaminação ande além. Todos os que partem de locais contaminados ou a ele se dirigem são rigorosamente inspecionados. Há medidores de temperatura nos locais públicos, incluindo transportes. Depois de certa altura, se sair à rua sem cuidados, e quando não recomendado, um chinês será obrigado a pagar pelo tratamento, que durante a pandemia foi gratuito. Nenhum médico está sozinho na hora de se higienizar: dentro dos hospitais, uma câmera rastreia seus procedimentos e alguém, ao observar a cena por monitores, avisa ao profissional se não limpou direito seus sapatos.

Drones medem a amplitude de um país continental

Não é um filme sobre particularidades, antes sobre contextos. Weiwei preza a observação extensa, continuada, incansável e irônica de seus personagens em linha de montagem, que podem, por exemplo, estar sujeitos a um juramento de fidelidade ao Partido Comunista quando isto nem de longe seria o esperado em pleno estouro de uma crise sanitária.

Ai Weiwei: em “Coronation”, os olhos abertos para as grandes dimensões

Vivenciamos as dimensões continentais do país no seu cotidiano. Um médico anda por vários minutos por entre labirínticos corredores até alcançar seu local de trabalho num hospital em que tudo, desde a vestimenta de proteção, funciona a contento e com cuidado. Câmeras em drones demonstram a imensa malha de trilhos e estradas que fazem daquele um vasto território acordado para o mundo em todas as horas da noite e do dia.


Por que reclamar da China, se somos brasileiros nas mãos de genocidas?

Weiwei, volte ao Brasil, e rápido.

O fechamento de uma urna funerária diante dos parentes dos mortos, que ficam de costas

Coronation (Coronation)

Dir. Ai Weiwei

China

115 min

2020

https://44.mostra.org/filmes/coronation

A liberdade celestial

Em “A Ponte de Bambu”, Marcelo Machado vê a ligação mantida
pelo amigo e jornalista Jayme Martins com a China desde os anos 1960

Em Pequim, a partir de 1962, Jayme Martins atua como professor

Se um lugar não lhe dá liberdade, você pode procurar outro lugar para ser livre. Ou talvez encontre esta condição dentro de si. O jornalista Jayme Martins, hoje com 90 anos, não se sentia tão livre assim no Brasil. Ele buscou por sistemas filosóficos que lhe garantissem uma ação libertária, mas não parou em nenhum até encontrar o marxismo. Em 1962, ser comunista não parecia coisa boa. Ele então decidiu experimentar a China que lhe oferecia trabalho, e a sua mulher, além de moradia em um hotel para estrangeiros. Teve duas filhas lá e não pensava em voltar ao seu lugar, então francamente antilibertário, até que a anistia chegasse aos brasileiros e ele pudesse estar em Jundiaí para espalhar o que aprendeu com os chineses.

Jayme Martins vestido com o rigor da tradição

É, em linhas gerais, o que diz o documentário de Marcelo Machado, A Ponte de Bambu. Não que o diretor tenha conseguido aprofundar a história de Martins desde a infância de suas vocações. Em verdade, trata-se de mais um filme sobre a China em que a perspectiva precisa ser familiar, resistente como aquela gramínea. A mulher do diretor é chinesa, e Jayme Martins nunca perdeu a fé nos comunistas dali, nem mesmo quando deixou às pressas a Pequim onde as filhas estudavam. O massacre na Praça da Paz Celestial, conforme ele informou à época em reportagens ao JT, ao Estadão e ao SBT, foi desnecessário e cruel. Tropas com seus tanques chegaram a Pequim naquele 1989 desinformados das manifestações políticas crescentes, achando que combateriam uma enchente.

As filhas Raquel e Andrea com os colegas da escola para chineses
Raquel com os estudantes da Praça da Paz Celestial durante as manifestações que resultaram no massacre de 1989

Marcelo Machado é um documentarista sensível, com belo entendimento do ritmo musical e dos depoimentos, obtidos com a naturalidade de quem divide a cozinha com seus personagens. Não se posiciona a favor da China, e não precisa. Martins ainda acredita nela. A seu ver, o país adaptou a economia de mercado ao comunismo, transformando a mais-valia em bem-estar social. E o jornalista acredita que isto vai dar em coisa boa, com certeza.

A família reunida em Jundiaí
Com amigos e a esposa Angelina na Muralha da China

A PONTE DE BAMBU

Diretor: Marcelo Machado

Brasil, 77 min

Onde: bit.ly/3mI4SJI

exibições: 27/9, às 21h, 28/9, às 15h