A imprensa diz sem dizer

Entendem? É Bolsonaro quem “vai” nesta manchete. É ele quem age. Quem tem o corpo em porção maior na foto, com semblante entusiasmado, mas sereno. Lula se esforça pra acenar, esmagadinho na composição da imagem, inclinando-se, enquanto Bolsonaro está ereto, luminoso. Não é preciso pensar muito, nem mesmo ler o texto da manchete, para entender como o jornal vê o momento.

Pra cima deles com nossos vermífugos, moçada

Por que as pesquisas eleitorais erram? No caso atual, há pelo menos uma explicação. Os institutos tiram suas conclusões a partir de um mapeamento do país proporcionado pelo censo. Mas, por certo, perdemos o censo! Ele foi tirado de nós, em tempo, para que não soubéssemos quem somos até a eleição.

Véus.

Uma vez que a canalhada escondeu o país onde vivemos (encolhidos e humilhados, por sinal), nós nos desatualizamos sobre nós mesmos. Quem somos? A base de dados desatualizada não ajudou ninguém a compreender o país antes de inquiri-lo nas pesquisas eleitorais.

Todas as informações relevantes, como aquelas sobre nossa saúde, por falar nisso, estão ocultas há tempos. É muito sigilo correndo solto, não somente sobre os crimes e o cartão corporativo da família verminácea – simplesmente nossas vidas têm sido obliteradas, sem que nos demos conta da proporção voraz em que isto ocorre.

Somente essa falta de informação proposital na área da saúde pública, por exemplo, já teria sido motivo para impeachment do governante uns dois anos atrás. Mas nada é feito neste país quando todas as instituições, como a imprensa, estão tomadas pelo desinteresse em mudar. A imprensa, a Procuradoria-geral, o Congresso, a Justiça – todos os que deveriam lutar por nós não querem fazê-lo. O espaço público, queridos, encolheu.

Enquanto isso, outro encolhimento, o cognitivo, prossegue lancinante por meio da existência zapeada dos brasileiros, em especial a dos pobres, mas a dos remediados também. É pelo zap que circulam livremente as notícias alucinatórias, fakeadas, que remodelam o conceito de opressão aos oprimidos, para fazer com que ela lhes pareça natural – até justa! Já viram sem-teto bolsonarista? Pois hoje meu marido deparou com um deles remexendo o lixo…

(Um dos memes mais fantásticos que vi nos últimos tempos é aquele que, sobre a ficção distópica “1984”, de Orwell, coloca estas palavras: “Este livro era pra ser um alerta, não um guia”.)

Aceitamos a cegueira porque vivemos nela. É um golpe carniceiro o que transcorre, como vocês sabem. E sofisticado no último, porque se baseia na anulação de nossa habilidade de reagir. Estamos aqui, pequenos, lutando uns contra os outros nos cabos de guerra da internet, onde não cabem os olhos, os sorrisos, o cheiro, os argumentos, a conversa, além disso impondo o pouco que realmente sabemos e percebemos, censurando a mínima oposição, apenas para que sintamos algum poder sobre o outro. Que tal, em vez disso, conversar cara a cara com ele? Talvez tenhamos esquecido como se faz. Mas seríamos tão mais felizes se o fizéssemos.

Eu não sei como isso pode mudar. No fundo do coração, nem creio que seja mais possível.

Ontem, ao consultar o Facebook de minha família bolsonarista, deparei com um vídeo do papagaio pelado da Havan, que pelo jeito é o novo filósofo-astrólogo a substituir o fumante que partiu desta, espero, para pior. Naquele vídeo, um dia antes da eleição, ele pede para que seu espectador vá ao quarto dos filhos e netos, cubra-os e beije-os na cama e depois se ponha a pensar numa só coisa: na Venezuela. “Você quer que os seus sofram como sofrem as pessoas naquele país? Então, se não quer, se deseja um futuro aos seus, veja lá o que vai fazer amanhã na urna, hein?”

Foi das coisas mais assustadoras que vi antes de o dia amanhecer. Até o metrô mais próximo, duzentos ou mais metros, não vi ninguém de vermelho feito eu a caminho da votação. Antes, vinham todos na contramão, assustados ou desafiadores, às vezes animados, mas fingindo não me perceber. E isto para mim significou apenas uma coisa: estamos encolhidos, conforme esses monstros pelados nos ensinaram a ser. Não ousamos mudar o passo, porque, bem, sabe-se lá o que nos espera.

Vamos continuar assim, talvez? Eu desejo que não. Mas, de novo, sem qualquer esperança a circundar meu pensamento… Sou boa de ação, contudo, muito otimista pra agir! E talvez por isso espere de todos nós a guerra de trinta dias para mudar este presidente que é a própria maldição, mesmo que estejamos habitados por nossos medos. Por que, caso contrário, que saída teremos?

Só posso lhes propor isso, ademais no abstrato de suas intuições. Vamos desligar os vermes. Vamos meter-lhes os vermífugos invisíveis de nosso conhecimento, sem dó. E voar alto, por sobre seus canhões.

Kafka, o oráculo

Às vezes sinto que Kafka vive em mim. Hoje, por exemplo. Enquanto me encontro à espera da eleição para presidente do Brasil, amanhã, abre-se no meu colo esta narrativa de traduzida por Modesto Carone e incluída no primeiro livro do grande escritor, “Contemplação”, de 1912. Com vocês, “Para a Meditação de Grão-Cavaleiros”:

Franz Kafka aos 22 anos, em 1905

Para a Meditação de Grão-Cavaleiros

Nada, pensando bem, pode induzir alguém a querer ser o primeiro numa corrida.

A glória de ser reconhecido como o melhor cavaleiro de um país é um prazer forte demais — no momento em que a orquestra dispara — para que na manhã seguinte seja possível evitar o remorso.

A inveja dos adversários, gente mais astuta, bem mais influente, tem de nos doer na estreita ala através da qual agora cavalgamos depois daquela planície que pouco antes estava vazia à nossa frente, com exceção de alguns cavaleiros arredondados que faziam carga, pequenos, contra a fímbria do horizonte.

Muitos dos nossos amigos correm para retirar o prêmio e só por cima dos ombros é que nos gritam dos guichês distantes o seu hurra!; mas os melhores amigos não apostaram em nosso cavalo, temendo que, em caso de perda, tivessem de ficar zangados conosco; agora porém que o nosso cavalo foi o primeiro e eles não ganharam nada, dão-nos as costas quando passamos e preferem olhar ao longo das tribunas.

Firmes nas selas, os concorrentes atrás de nós procuram avaliar a desgraça que os atingiu e a injustiça que de algum modo lhes foi infligida; assumem um ar bem-disposto como se fosse preciso iniciar uma nova corrida, agora séria, depois desta brincadeira de criança.

Para muitas damas o vencedor parece ridículo, porque ele se enfatua e no entanto não sabe o que fazer com os eternos apertos de mão, continências, mesuras e cumprimentos à distância, enquanto os vencidos mantêm a boca fechada e, absortos, dão palmadas nos pescoços dos seus cavalos, que na maioria relincham.

Finalmente do céu que ficou turvo começa a chover.