Três vidas e uma só morte

Restaurado, o filme de Raúl Ruiz presente na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo leva Marcello Mastroianni a um penúltimo tour de force

Marcello Mastroianni, o múltiplo

Embora classificado como comédia, o restaurado “Três vidas e só uma morte”, de Raúl Ruiz (1996), apresenta um tom a mais, que é o do sonho. Ou do pesadelo, aquele do qual não conseguimos escapar, a menos que nossos olhos se abram por muito querer. Os primeiros minutos desta longa ficção, narrados como seção de novela de rádio, não nos preparam para o pior.

É Marcello Mastroianni, em seu penúltimo filme, vencedor do prêmio de crítica da 20ª Mostra, quem comanda a série de reviravoltas, a oferecer a seus personagens – três em um – um show de expressões. E Chiara, sua filha, está lá, aos 24 anos, para levar a inocência impossível até as bochechas, sem lhe contrapor. Marcello pode ser bom, pode ser mau, engraçado, cínico: ele alterna estados de espírito, mas também muda de personagens como quem estala a vontade de transformar, devorar e lamber tudo.

Mario Monicelli, o diretor com quem trabalhou tantas vezes, costumava dizer que Marcello, assim como Totò, sempre andavam à frente. Chegavam ao estúdio com tudo decorado e aprendido, razão pela qual poderiam mudar o rumo de sua fala, improvisar, fazendo o filme crescer. No final de sua carreira e sua vida, nota-se Mastroianni perfeito ainda, cheio dos pequenos gestos que definem as três vidas representadas. É como se as diferenças não importassem quando está em ação, sendo ele Marcello, acima de tudo, sempre. O ator dita com os olhos os rumos das coisas, mesmo quando o resto de seu corpo parece responder com vagar.

Ruiz procurou reproduzir o clima onírico em tudo, e para isso dividiu a tela algumas vezes, lidando com as possibilidades gráficas da época para dar espaço a fadas terríveis e insuspeitas monstruosidades nos papéis de parede. Há vida e cor nesses sonambulismos, e é muito divertido o humor quando não prima pelo sentido – ou, melhor dizendo, quando o multiplica. Eram os anos 1990, depois que diretores como Terry Gilliam haviam aberto as portas às novas percepções (e se você gosta dos livros de Carlos Castañeda, vai chocar-se no transcorrer do filme). O mundo da arte saiu da era Reagan petrificado, e os bons filmes do período retrataram esse clima de horror.

“Três vidas e uma morte” traz ainda Marisa Paredes (“Tudo sobre minha mãe”) como uma das mulheres desse Mastroianni múltiplo. Isto é um sonho ou não?

O diretor Raúl Ruiz

Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Sessão na Cinemateca Petrobras, 14h do dia 25.

Marcello mio

O filme de Christophe Honoré presente na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo viaja pelo reencontro de Chiara Mastroianni com a figura de seu pai

Chiara, a “Polpetta” do pai

Para os cinéfilos das celebridades europeias, parece ser motivo de curiosidade e admiração o fato de Chiara Mastroianni ter abraçado a profissão dos pais. Sabemos que Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni não são atores quaisquer, que flutuam na poeira de estrelas e que talvez tenham reinventado o cinema. Então, por que sua filha se aventuraria nessa direção, certa de que não poderia repeti-los? 

Isto, este longa ficcional não vai nos explicar. Mas a doce e leve Chiara quer nos fazer crer que, aos 52 anos, ainda busca a si mesma e que essa procura envolve bastante coisa – memória, convicções, história, psicologia – amarrada em névoa musical pelo diretor Christophe Honoré. 

A mãe Catherine, intensa presença

A mãe Catherine, viva, pulsante, opina sem dó em sua vida. Eis alguém presente, e pelo jeito não apenas no elenco deste filme, a ressaltar a brevidade de tudo. Pena que o pai se foi. Chiara, que muito sente sua falta, resolve reencarná-lo para suprir uma ausência que não aflige somente a ela, mas a todos ao redor. E também porque, atriz consolidada, ainda reclamam que ela seja um pouco daquilo que ele foi. Ser Marcello, por assim dizer, vai auxiliar seu reencontro consigo mesma – ela tão francesa, ao contrário do pai.

O filme, portanto, é muito mais “Chiara, io” que “Marcello mio”. Nesse caminho, a “Polpetta”, como a chamava o pai, vai penar. Ela o ressuscita em seus figurinos célebres, no rosto tão semelhante, nos gestos e encantos. Sabemos que não fala como ele, não apenas porque seu italiano é afrancesado. Não fala como ele porque não faz suas circunvoluções verbais, não tem o pensamento no ar. Mas algo de sua ironia, de sua leveza, de um erotismo que quer esconder-se, isso ela possui. Como ele, pode cantar acompanhada por um cão…

A face que é espelho

No périplo que é essa espécie de versão de Chiara para “Oito e meio”, ela vai encontrar os intensos amigos, o ex-marido Melvil Poupaud, por exemplo, que contracenara ao seu lado e de seu pai em “Três vidas & uma só morte”, dirigido por Raúl Ruiz (de 1996, penúltimo filme em que Mastroianni atuou, também presente na mostra) e os grandes do cinema, como a atriz Stefania Sandrelli, que atuou ao lado de Marcello em “Divórcio à italiana”, de Pietro Germi (1961). Eles ora aconselharão Chiara, ora a apoiarão ou a deixarão saber quão fantasmagórica se tornou ao encarnar o pai.

Hora de evocar “A Doce Vida”

“Marcello mio” evoca “A Doce Vida”, “Noites Brancas”, “Ginger e Fred” e “Dois Destinos”, entre outras obras de que ele participou. Especialmente, de maneira afrouxada, deixa-nos navegar pelas entrelinhas da vida familiar. Descobrimos assim que Catherine desconfiava muito de Marcello, de sua infidelidade pela noite, embora os dois nunca tivessem se casado. Ela esteve quase certa de que Marcello pegou Maria Callas quando o casal morava, com a filha, no andar acima daquele apartamento habitado pela cantora, em Paris…

O filme transcorre entre a representação de coisas como essas, mais ou menos pequenas, uma delas especialmente carinhosa: o ator adorava patinação e assistia ao lado da filha, pela tevê, aos torneios do esporte, duvidoso dos juízes. Saímos do filme convencidos de que Marcello era uma criança também, eterno para Chiara como para nós.

O diretor Christophe Honoré

Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Sessões no Cinesystem Frei Caneca 2 (17h do dia 22), Espaço Augusta sala 1 (19h30 do dia 23) e no Cinesystem Frei Caneca 1 (13h do dia 25).

Ninguém derruba a história

“Fantasmas em Roma”, clássico de Antonio Pietrangeli, ronda o YouTube em versão original

As assombrações se divertem, capitaneadas por Mastroianni

“Fantasmas em Roma” é um filme divertido, crítico e bonito de Antonio Pietrangeli (como, de resto, todos os que ele fez), além disso bem-sucedido nos cinemas paulistanos à época de seu lançamento, em 1961, quando todo o bom cinema merecia um circuito comercial na cidade. Redescubro-o no YouTube em sua versão original sem legendas (“Fantasmi a Roma”), com música de Nino Rota.

O diretor Antonio Pietrangeli

Pietrangeli começou como roteirista e auxiliar de direção de Luchino Visconti em “Ossessione”, versão italiana de 1943 para o clássico noir de James M. Cain. Este romano escreveu para muitos outros máximos diretores de seu país, como Pietro Germi (Gioventù Perduta, 1948) ou Roberto Rossellini (Dov’è lá Libertà, de 1954, com Totò). E foi crítico dos bons.

Morreu de maneira trágica, como tragicômica era a maioria de suas histórias, à moda da mais famosa, “Io la conoscevo bene”, de 1965, na qual Stefania Sandrelli vive uma jovem impedida de realização social pelo preconceito que então rondava a mulher. Pietrangeli morreu afogado quatro anos depois de realizar este clássico, enquanto filmava a sequência final de “História de um Adultério”. Aos 49 anos, caiu de um penhasco onde se colocara para orientar seus atores.

Duas almas contra um especulador

Este “Fantasmas em Roma”, excelente representante da aguda commedia all’italiana, escrito por ele, Ettore Scola, Ruggero Maccari, Ennio Flaiano e Sergio Amidei, heróis do roteiro cômico em duas gerações, é atípico de uma carreira dedicada a compreender a complexidade feminina. Mas, sempre um ácido crítico do consumismo especulador, Pietrangeli mostra aqui a farsa embutida na tentativa de derrubar a história (personalizada por um velho casarão) para nela construir um supermercado.

E o papagaio do príncipe não recitava Lampedusa…

No palazzo em que se passa a trama, mora um príncipe decadente (o grande ator e dramaturgo napolitano Eduardo De Filippo), que fala sem sucesso com seu papagaio morto, incapaz de declamar Lampedusa, como haviam lhe prometido. Don Annibale di Roviano vive entre os fantasmas de sua família, embora não possa vê-los, nem saber que eles o protegem. Os Roviani são a ruína (“rovina” em italiano) que persiste com seu respaldo. O fato de ser um príncipe que não trabalha ainda lhe dá uma posição em sociedade.

Marcello Mastroianni interpreta Reginaldo di Roviano, o fantasma de uma espécie de Casanova, e mais dois outros papéis – o de um de seus tortos descendentes e o de um terceiro debiloide que ele não suspeitava pertencer a sua linhagem. Vittorio Gassman é o fantasma irascível de Caparra, pintor rival de Caravaggio, chamado pelos outros na batalha contra os novos ocupantes.

Vittorio Gassman é o pintor
diante de uma Sandra Milo que se
suicidou por amor

À parte a vistosa aparição de Valentina Cortese, vivente enlouquecida pela traição do marido, a esmolar nos restaurantes sob o apelido de Rainha, uma doce Sandra Milo representa o fantasma de jovem que se suicidou de paixão. Um menino (Claudio Catania), irmão mais velho de Don Annibale, morto criança, ronda rindo os espaços do casarão, da escola (onde ajuda uma protegida) e da rua, para onde Sandra Milo vai todas as noites atirar-se novamente ao rio. Enquanto isto, o Frei Bartolomeu (Tino Buazzelli), morto pela boca, que ardia por um polpetonne, ainda fareja o melhor prato de comida entre os vivos.

Com eles ninguém pode

Estas assombrações são molecas, felizes, vestem as roupas prateadas das estrelas invisíveis, riem-se, enfurecem-se, erram os costumes. (Mastroianni se interessa por uma cantora que descobre ser um cantor…) Mas que ninguém ouse ocupar o retiro dos fantasmas. Se depender dos Rovianni, não vai ser desta vez que a história será destruída por uns maços de dinheiro da velha corrupção.

Pietrangeli, cineasta das mulheres

Mastroianni, Magali Noel, Simone Signoret: os vis são eles

ÁDUA E SUAS COMPANHEIRAS
por Rosane Pavam

(republicado do site Histórias de Cinema)

Repare nas mulheres deste filme. Cada beleza é uma fortaleza diante dos homens. E repare nos homens, até em Mastroianni. Todos vis.

Você sai de “Ádua e Suas Companheiras” (1960) sem confundir os personagens porque se trata de um filme de Antonio Pietrangeli, nítido, belo, triste.

Ele aqui ainda não tinha se tornado um dos grandes da commedia all’ italiana, resposta do cinema ao teatro medieval da fria essência humana. E detestava este filme talvez por não ser, neste sentido, “cômico”.

“Ádua” ainda correspondia ao neorrealismo heróico. Pietrangeli sabia disso porque trabalhou como assistente de Visconti e lutou pelo movimento quando se tornou crítico de cinema, depois de cursar medicina.

Ele queria mais, bem mais que a Cabíria de Fellini, encenada três anos antes. Era o diretor das mulheres. Estava no mundo em breve passagem para mostrar o abismo diante delas, seus corpos trágicos insubmissos.

Neste filme, elas habitam o bordel de Simone Signoret, florido por Magali Nöel e firmado por Emmanuelle Riva no papel de mãe. Mas Signoret não é aqui a Joan Crawford de “Johnny Guitar”. Não há redenção para ela, embora tudo o que o cinema peça esteja lá, como esteve em Mizoguchi: um fruto da criação do espaço público para discutir nosso destino circular, em eterno retorno a seu início.

Rosane Pavam é doutora em História Social pela USP com a tese “Retratos do Épico Cômico: Totò, De Sica e a commedia all’italiana”

ÁDUA E SUAS COMPANHEIRAS

Diretor: Antonio Pietrangeli
Itália, 1960, 106 min

Disponível na Amazon Prime Video