Emanoel Araújo e sua reflexão de 2014 sobre um projeto cultural para o Brasil

O curador, historiador e artista plástico Emanoel Araújo, nascido em Santo Amaro da Purificação há 81 anos e morto agora, significava o mundo inteiro para jornalistas culturais como eu. Uma elegância fosse no vestir, no sorrir, no duro dizer ou no brincar. E aquela imensa sabedoria vinha traduzida da forma mais simples para quem de nada sabia, feito nós. Reproduzo aqui a entrevista que fiz com ele antes da primeira posse de Dilma Rousseff na presidência, em dezembro de 2010. A fala baiana de Emanoel, mansa mas livre, fez mal, contudo, a alguns leitores da revista dita de esquerda onde eu infelizmente trabalhava. Não compreenderam este a quem hoje quiçá intitulem um dos maiores. Combateram em especial o fato de ele ter dado a letra: antes do modelo estatizante europeu, deveríamos seguir a política estadunidense que pressupõe a responsabilização social e a cobrança financeira dos ricos na construção de sua cultura. Reproduzi o que ouvi e isto não importou a ninguém. Fui trollada pelas milícias capilerianas do mesmo jeito, como se o pensamento brilhante de Emanoel fosse o meu. Naquele dia, o homem deixou de brincar: “Não se pode fazer da cultura um fato isolado de prestígio, centrado na figura do ministro. Gilberto Gil tem seu prestígio e por seis anos aconteceu do ponto de vista internacional. Mas é como se você desse o Ministério da Cultura para o Pelé, sendo que Pelé tem mais prestígio do que ele.” Eu tremi ao ouvir e Emanoel, nem um pouco ao falar. Tempos depois, voltamos a conversar sobre divertimentos. Adeus, meu querido! E por tudo e tanto, obrigada.

A simpatia, a empatia e o brilho de Emanoel, captados por Olga Vlahou

Um projeto cultural para o Brasil é o que pede com urgência, mas também descrença, o artista plástico Emanoel Araújo, criador do Museu Afro-Brasil e de outras iniciativas que tiraram o País de sua condição de envergonhado vira-latas da cultura no mundo. O Brasil não tem projeto algum neste quesito, ele crê. Como o cientista político Antonio Gramsci, otimista na ação e pessimista enquanto pensa, Emanoel afirma que o país oferece enorme complexidade a quem vá gerir sua cultura. O assunto é tão difícil que ele hesita ao transformar suas reflexões em sugestões para o futuro Ministério da Cultura de Dilma Rousseff.

 

“Para começar, em um país tão grande como este, não sei se a política cultural deveria emanar de um centro político”, ele considera. “Quando você sai de São Paulo e alcança o Rio, já enxerga um patamar abaixo. Então, como unir as políticas? Nem mesmo o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio, pode expor inteiramente o seu acervo. Os museus federais, aqueles que ainda existem, lidam com salas limitadas e a impossibilidade de fazer suas exposições circularem. Há os pontos de cultura, e mesmo nós, no Afro-Brasil, somos um pontão. Mas se não há banda larga para esses pontos, o que fazer? Piranhas, em Alagoas, como fica? Talvez nem seja preciso viajar. Na zona sul de São Paulo os pontos não funcionam”, ele situa.

 

As dúvidas de quem administra a cultura brasileira começam pela escolha de uma prioridade quando nem mesmo a saúde, a habitação e a educação estão resolvidas no país. A seu ver, é somente ao priorizar a cultura que ela florescerá, à moda do que aconteceu nos Estados Unidos, um país assemelhado ao Brasil por ser americano, colonizado, diversificado etnicamente, recente em sua formação. “Os norte-americanos não são hegemônicos por acaso. A cultura foi seu único acerto. A pop art e o expressionismo abstrato se espalharam como, na antiguidade, a civilização Greco-romana ditou seus princípios. E os norte-americanos lidaram com o assunto por meio do compromisso de toda a sua sociedade com a cultura.”

 

Para Emanoel, mais vale seguir o exemplo do lado de cá do Atlântico do que o modelo estatizante europeu. Nos Estados Unidos, os museus são em sua maioria particulares, ele argumenta, e a questão cultural não fica inteiramente no âmbito do governo. Há os endowments for arts, que estabelecem a doação de dinheiro ou propriedade, muitas vezes anônima, a uma instituição da cultura. Os museus são organizados de maneira mais livre, no sentido de que são organizações independentes do Estado, muito embora existam aqueles geridos pelo Smithsonian Institute. 

 

“Nos Estados Unidos, existe o que não há aqui, o compromisso social com a cultura. Não vigora nos espectadores norte-americanos do museu, da orquestra ou do teatro, uma situação de passividade. Eles não apenas assistem ao espetáculo. Fazem com que o evento aconteça. Não são meros captadores.” Por isso, o compromisso social deve ser fomentado como meta brasileira, ele crê. Os ricos têm de ser levados a contribuir, já que também usufruem do espetáculo. Um ato pelo “compromisso ativo” dos afortunados, encena Emanoel: “Eles não podem lavar as mãos, viajar e achar que vão se integrar na cultura europeia sem tomar conhecimento da sua.”

 

O Ministério da Cultura, colocado nos moldes atuais, deveria empenhar-se na construção de uma instituição profissional, disposta a promover estratégias e políticas públicas que pudessem estruturar culturalmente o país. “Não se pode fazer da cultura um fato isolado de prestígio, centrado na figura do ministro. Gilberto Gil tem seu prestígio e por seis anos aconteceu do ponto de vista internacional. Mas é como se você desse o Ministério da Cultura para o Pelé, sendo que Pelé tem mais prestígio do que ele.”

 

Um grande projeto cultural para o Brasil, “que a essa altura não tem um grande projeto cultural”, envolveria a iniciativa privada, os ricos e o Estado. Bolsas de estudo concedidas nos moldes dos endowments e das instituições smithsonians seriam mais do que desejáveis. “Dar incentivo fiscal aleatoriamente a projetos culturais não basta. Também não adianta só patrocinar um filme. Seria preciso definir questões. De que maneira as filarmônicas e os museus poderiam funcionar?”, ele projeta.

 

Emanoel lembra também que a legislação é antiga sob o ponto de vista da preservação do patrimônio histórico. “Não adianta insistir em restaurar pelos mesmos processos segundo os quais os monumentos foram construídos. Este é um país tropical sujeito a todas as intempéries, a todas as pragas. Se você não restaura, ou restaura errado, o patrimônio vai embora, irrecuperável, como tem ocorrido agora. Veja as igrejas de Salvador, a Igreja São Francisco de Assis, totalmente ameaçada.”

 

O agitador teme a letargia local, por exemplo, ao taxar as obras de arte que saem do país. A arte brasileira, mesmo diante de sua importância histórica, desde o barroco, está fora do mercado, ao contrário do que acontece no Chile, Colômbia, Venezuela e Uruguai, sem contar o que ocorre no México ou Estados Unidos, ele lembra. “É preciso investir nas pessoas, na arte, na educação, para que um país se possa apresentar ao mundo.” À moda do que ocorreu com a implantação da lei do ensino da música, a ser imposta às escolas brasileira sem nenhum preparo ou formação cultural de professores, propõe-se avançar no Brasil deixando o irresolvido pelo caminho. “Nós vivemos pulando, como se não fosse necessária uma sequência natural das coisas. Pulamos dos anos 1940, quando se formou um projeto cultural com Getúlio Vargas, para a ditadura e os anos 1960, os movimentos populares de cultura, e depois a censura.”

 

E a única maneira de incentivar a cultura brasileira é gostar de ser brasileiro, ele diz. “A minha sensação é a de que persiste a vergonha de ser brasileiro. No século 21, a gente ainda tem de se envergonhar disso? Por que, ao chegar um visitante por aqui, temos de levá-lo à favela, como fizemos com o Bill Clinton ou a rainha da Suécia? Por que não os levamos aos museus? Essas pessoas não têm responsabilidade perante a situação social do Brasil. A constatação de mudança social não tem de partir da consciência estrangeira, mas nacional. E, neste sentido, a saída para a cultura no Brasil é a de fazer como no México, que promoveu uma grande campanha nacionalista, com os murais de Diego Rivera e da arte de Siqueiros. É preciso gostar do Brasil, com todos os senões.”

Sobre o Sayad que conheci

Compartilhei algum espaço na vida com o João Sayad, que morreu hoje, inesperadamente para o conhecimento da maioria de nós.

Uma vez, nos anos 1980, ele caminhava ousado, sem segurança, pelo repleto viaduto do Chá, mesmo sendo autoridade da economia do Sarney. Parecia um desenhinho andando rapidamente, encurvado, de terno escuro, com as mãos no bolso e todos os olhos a seu redor. Esperei pelo pior, mas não veio. Tinha determinação e estrela, por certo.

Depois eu o entrevistei como secretário de Cultura do Serra, nos anos 2000, e foi uma enxurrada de coisas gritantes ditas por ele naquele tom baixo, calmo e irônico, pelas quais, como repórter, agradeci bastante.

Esse que era tão grande amigo de Fernando Haddad queria acabar com o programa Manos e Minas da TV Cultura, que a seu ver era muito ruim e destoava de tudo. E desejava resultados espelhados na PBS estadunidense.

E, mais divertido, me contou que Serra ligara puto pra ele depois de um Roda Viva com Gilmar Mendes no qual a Catanhêde resolvera “desafiar” o presidente do STF. Sem noção que sou, já fui dizendo que era mesmo estranho ele mandar soltar o Dantas. E Sayad, cândido: “O Daniel?” Sem deixar de completar, no seu tom baixo: “Eu também não gostaria de ser levado preso de pijamas à noite.”

Estava quase gostando bastante dele, mas não consegui.

Que vá na luz.

Pior que o Führer. Acho que ele vai gostar

Insônia é fogo e me lembra que Hitler fez mais pela cultura de seu país do que Verme.

Hitler exigia cinema bom e apaixonou-se pela loucura de Leni Riefenstahl, além de conseguir reter na sua administração atores como Emil Jannings (“O Anjo Azul”) e diretores como Walter Ruttmann (“Berlim, Sinfonia de uma Metrópole”).

Nana Caymmi apoiou Bozo, que por sua vez destruiu nosso cinema e nossa cinemateca, mas não sei se Bozo gosta de Nana Caymmi, isto se souber de quem se trata. O único apoplético a serviço do Verme com algum relevo acidentado talvez seja Amado Batista.

E sei lá do que mais essa anticriatura gosta e o que aplaude, a não ser o caixa eletrônico quando espirra.

Fake fashion, a onda

Quão chocante lhes parece que uma empresa cobre para vestir alguém virtualmente, como a Carlings tem feito na Noruega?

Para mim, o choque é quase zero.

Nossos olhos tristes já são maquiados por meio dos filtros de selfie do Instagram. E pagamos indiretamente por esse embelezamento. Os anúncios infindáveis que suportamos na rede constituem o preço.

E se pagamos de um jeito enviesado pelo direito à boniteza esfumaçada, arrasadora de espinhas, olheiras e rugas, por que não deixaríamos que uma marca de roupa nos “vestisse” por um custo menor do que o da roupa verdadeira?

Eu não pagaria por isso hoje. Mas talvez no futuro o próprio Instagram nos venda disfarçadamente a possibilidade, da qual eu talvez usufruísse como quem brinca.

Não queremos aparecer nas imagens ainda mais feios do que somos, certo? E isto desde a segunda metade do século XIX, quando a fotografia começou a ser comercializada, espalhando a onda da beleza filtrada dos retratos.

Já que a pandemia nos força a viver reclusos (pelo menos nós, os exaustos conscientes), não há por que a indústria deixe de tirar proveito também disso. Será mais uma oportunidade de incutir em nós o consumo em prol da jovialidade exigida pelo mundo de aparências.

Sete de Abril, um orgulho

A rua Sete de Abril, antiga rua da Palha, nasceu no século 18 e no seguinte abrigou célebres bordeis.
No 20, viu ser fundado o Museu de Arte de São Paulo em suas bases.
A história, pelo que sei, jamais lhe escapa.
Mas não gosto dela só por isso.
Gosto das linhas.
Da promessa de luz que ela enseja à distância, em seu início e no final, numa praça e em um antigo largo.
Um lugar aonde, criança, eu festejava ter de ir para tirar sangue, porque assim ganhava o direito de comer um pão de queijo de verdade, como não vejo mais, num bar ao lado do laboratório.
Um lugar onde hoje converso com minha costureira linda, onde compro vinho e livros novos mais baratos.
A Sete de Abril é oito, é nove, é dez, centenas de vezes eu mesma.
Me dá um orgulho demasiado ser sua vizinha.

A quem se destina

Aproveite a chance rara de assistir de graça a “Todas as horas do fim”, o documentário sobre Torquato Neto que é só poesia

Nosferatu como um profeta triste

Há três anos apareceu com imenso lirismo este filme dirigido a partir de depoimentos, da pontuada narração de Jesuíta Cardoso e de outros filmes – os de Torquato Neto, em super-8, e aquele de Ivan Cardoso, por exemplo, em que o poeta da literatura e da música do Brasil é um vampiro convicto, de sandálias e cabelo longo.

Três anos e este “Todas as horas do fim”, dirigido por Eduardo Ades e Marcus Fernando, ainda dói na gente. Em quem é gente no Brasil. Em quem não se cansa de penar para entender por que um poeta da vida tenha escolhido a morte, suicidado com gás, aos 28 anos, em 1972.

E no entanto Torquato surgia pleno no mundo, gênio precocemente, poeta desde os 9, filho único de pais amorosos, magro, seco e severo como eles na Teresina que era a sina de todos…

E mesmo sendo pai de Thiago, outra realização de amor, marido de Ana, sua santa, isto não o impedia de imaginar que, tendo concluído sua obra, viver não seria mais preciso… E o que dizer daquela ditadura que não parecia ter mais fim, nem nada de si?

Caetano e Gil eram seus amigos da Tropicália, em que Torquato nem mesmo acreditava de início. Hélio Oiticica podia dizer-se fartamente admirado por ele, assim como Glauber Rocha, assim como o cinema. Um poeta a observar toda a arte, toda a vanguarda, todo o sentido.

É um filme de ritmo e canção, que busca a poesia com simplicidade, razão pela qual a encontra, embora não a discuta nas linhas próprias de Torquato Neto nem trace os paralelos entre elas e os versos, por exemplo, de um conterrâneo como Mário Faustino.

É madrugada, passou das três, e eu tive de reescrever isto tudo! O texto primeiro, o blog comeu…

Torquato, é você aí?

Poeta desde os 9 anos que ele foi

Aqui vai o streaming do documentário “Torquato Neto – Todas as Horas do Fim”, dentro do projeto “Em Casa com o Cine 104”:

https://vimeo.com/460725286

senha: torquato_104

Até as 20h de 9 de outubro de 2020

Um amor em cada porto

O filme “Martin Eden” transpõe para a Itália heroicamente desiludida a obra de Jack London sobre o engajamento das palavras

Luca Marinelli é Martin Eden, entre ferozes utopias

Metade deste Martin Eden (2019) é só o Jack London que amo e seus Estados Unidos da América, aqueles onde o escritor viveu, entre 1876 e 1916. A outra metade é a Itália idealizada, amada igualmente, onde este filme foi escrito a partir do livro homônimo e em parte autobiográfico de London, máxima ficção sobre a honra perdida do jornalismo, minha profissão e meu descontentamento.

Então é muito o que peço a este filme desde seu início, que faça jus ao que espero, na verdade anseio, aquilo por que luto e pelo que vivi por tantos anos, desde a adolescência tardia embebida pelos textos mágicos do escritor, alguns deles que também ousei traduzir (no volume 11 da coleção Para Gostar de Ler, 5 reais na Estante Virtual).

Jack London, no reino dos fortes

Martin Eden, por favor, não é apenas a história amorosa e aventureira de um marinheiro alçado ao fervor das palavras, estas que já sentia suas mesmo antes de deparar com o insólito universo liberal dos letrados. É antes um filme-estudo sobre a promissora ascensão socialista, que logo cederia lugar à Primeira Guerra, fagulha a acelerar a mais nova, infame e persistente ameaça à igualdade, o fascismo.

Jack London acolhia as ideias de Spencer, bem explicitadas neste filme, e traduzidas pelo escritor numa espécie de socialismo utópico que deveria ser conduzido por indivíduos fortes como ele próprio. Este indivíduo político que London lutou pra ser durante seus intensos 40 anos de vida e uma literatura tomada pela paixão que contamina, rasga e exaspera os sonhos, acabou um dia, adivinhe, a se diluir na autoimagem condescendente estadunidense, aquela segundo a qual a todos em sociedade se dá a oportunidade de tornar-se o que bem projetar. De pensador temperamental em prol da justiça social, Jack London, melhor dizendo, sua aura pública, foi então aos poucos associada a uma imaginária essência voluntariosa e benéfica do capital competidor.

Em que pese o fascismo

Minha alegria diante deste filme nasceu primeiramente disto, de ele não se deixar cooptar por nenhum capitalismo. Não reconstrói Martin Eden para o bom palato estadunidense. O homem foi e será para sempre muito difícil de engolir, nos diz. Bruto, verdadeiro. Antiliberal. Para dar conta de seu protagonista, o diretor e roteirista do filme (junto a Maurizio Braucci), Pietro Marcello, chamou o forte ator Luca Marinelli, de longo nariz e olhos azuis. Ele é Martin porque é o Éden também. Um ator para fortalezas e nuances.

Com Elena (Jessica Cressy), sonho azul
Com Margherita (Denise Sardisco), um vermelho furor

Ele briga, ama, peleja na siderurgia, envia mais e mais originais às redações, sempre rejeitados, quer bem à irmã como London também quis, para só depois de muita humilhação e acolhimento proletário se tornar um profissional sem qualquer escusa, sem jamais aceitar o posto no escritório que lhe apontava sua noiva rica, ilustrada e delicada para palavrões.

A imensidão que engendra a revolução

O filme perturba os tempos. A indefinição de onde nos encontramos, dentro dele, é uma de suas porções adoráveis. Quando proletário, Martin Eden é também o mundo dos pobres italianos desde as greves piemontesas até aquele dos anos 1970 em que a televisão se infiltra aos poucos como adorno principal unificador. Quando se mete entre os ricos, o filme penetra facilmente no século 19 onde esta história começa, com seus salões vastos e sua preciosa decoração imperial. Você nunca perceberá exatamente em que ano estará, exceto quando descobrir que é este o jogo do filme, desenraizá-lo até que atinja a realidade dolorosamente imutável de nossos próprios tempos de desilusões.

Nápoles para marinheiros

Ambientado em Nápoles, que espertamente substitui a fria Oakland do livro, Martin Eden fala principalmente sobre a fúria heróica que acometeu o italiano no pós-Segunda Guerra. Um heroísmo fatalmente sucedido pela vilania pequeno-burguesa (bem pequena) do boom econômico, segundo a forma cinematográfica paciente com que Mario Monicelli a descreveu. É isto mesmo o que parece. Por vezes o belo ator Marinelli adentra o terreno abraçado por Alberto Sordi na dura commedia all’italiana… Estará ele a reviver o jornalismo idealista e o ardor militante fulminados pela paixão impassível de Uma Vida Difícil, de Dino Risi? Toda a parte final do filme é um grito do grotesco que acomete os bem-sucedidos, todo o épico do horror cômico em que os sonhos findam…

O mar que marca

E isto tudo com tamanha textura nas imagens, uma granulação a evocar os impressionistas, o azul sobressaído, os homens a se movimentar na multidão!

Que filme surpreendentemente atual com que gastar suas horas tristes.

MARTIN EDEN
Diretor: Pietro Marcello
Itália, 2019, 129 min

John Huston, por que o senhor faz filmes?

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John Huston no set de Moby Dick, por Norman Parkinson

Da série Maravilhas no YouTube.
O diretor John Huston é perguntado aqui sobre por que faz filmes.
Bem, ele diz, faz filmes porque é fascinado pelo meio em si.
Para ele, o cinema descreve melhor o processo do pensamento do que os livros.
E olha que Huston foi um excepcional leitor.
Ele diz também que não procura passar qualquer mensagem em seus filmes (não, segundo saiba, conscientemente).
John Huston dirige filmes que de alguma forma lhe interessem, esperando que haja, no público, alguém como ele, ou que ele seja igual a seu público.

Ninguém derruba a história

“Fantasmas em Roma”, clássico de Antonio Pietrangeli, ronda o YouTube em versão original

As assombrações se divertem, capitaneadas por Mastroianni

“Fantasmas em Roma” é um filme divertido, crítico e bonito de Antonio Pietrangeli (como, de resto, todos os que ele fez), além disso bem-sucedido nos cinemas paulistanos à época de seu lançamento, em 1961, quando todo o bom cinema merecia um circuito comercial na cidade. Redescubro-o no YouTube em sua versão original sem legendas (“Fantasmi a Roma”), com música de Nino Rota.

O diretor Antonio Pietrangeli

Pietrangeli começou como roteirista e auxiliar de direção de Luchino Visconti em “Ossessione”, versão italiana de 1943 para o clássico noir de James M. Cain. Este romano escreveu para muitos outros máximos diretores de seu país, como Pietro Germi (Gioventù Perduta, 1948) ou Roberto Rossellini (Dov’è lá Libertà, de 1954, com Totò). E foi crítico dos bons.

Morreu de maneira trágica, como tragicômica era a maioria de suas histórias, à moda da mais famosa, “Io la conoscevo bene”, de 1965, na qual Stefania Sandrelli vive uma jovem impedida de realização social pelo preconceito que então rondava a mulher. Pietrangeli morreu afogado quatro anos depois de realizar este clássico, enquanto filmava a sequência final de “História de um Adultério”. Aos 49 anos, caiu de um penhasco onde se colocara para orientar seus atores.

Duas almas contra um especulador

Este “Fantasmas em Roma”, excelente representante da aguda commedia all’italiana, escrito por ele, Ettore Scola, Ruggero Maccari, Ennio Flaiano e Sergio Amidei, heróis do roteiro cômico em duas gerações, é atípico de uma carreira dedicada a compreender a complexidade feminina. Mas, sempre um ácido crítico do consumismo especulador, Pietrangeli mostra aqui a farsa embutida na tentativa de derrubar a história (personalizada por um velho casarão) para nela construir um supermercado.

E o papagaio do príncipe não recitava Lampedusa…

No palazzo em que se passa a trama, mora um príncipe decadente (o grande ator e dramaturgo napolitano Eduardo De Filippo), que fala sem sucesso com seu papagaio morto, incapaz de declamar Lampedusa, como haviam lhe prometido. Don Annibale di Roviano vive entre os fantasmas de sua família, embora não possa vê-los, nem saber que eles o protegem. Os Roviani são a ruína (“rovina” em italiano) que persiste com seu respaldo. O fato de ser um príncipe que não trabalha ainda lhe dá uma posição em sociedade.

Marcello Mastroianni interpreta Reginaldo di Roviano, o fantasma de uma espécie de Casanova, e mais dois outros papéis – o de um de seus tortos descendentes e o de um terceiro debiloide que ele não suspeitava pertencer a sua linhagem. Vittorio Gassman é o fantasma irascível de Caparra, pintor rival de Caravaggio, chamado pelos outros na batalha contra os novos ocupantes.

Vittorio Gassman é o pintor
diante de uma Sandra Milo que se
suicidou por amor

À parte a vistosa aparição de Valentina Cortese, vivente enlouquecida pela traição do marido, a esmolar nos restaurantes sob o apelido de Rainha, uma doce Sandra Milo representa o fantasma de jovem que se suicidou de paixão. Um menino (Claudio Catania), irmão mais velho de Don Annibale, morto criança, ronda rindo os espaços do casarão, da escola (onde ajuda uma protegida) e da rua, para onde Sandra Milo vai todas as noites atirar-se novamente ao rio. Enquanto isto, o Frei Bartolomeu (Tino Buazzelli), morto pela boca, que ardia por um polpetonne, ainda fareja o melhor prato de comida entre os vivos.

Com eles ninguém pode

Estas assombrações são molecas, felizes, vestem as roupas prateadas das estrelas invisíveis, riem-se, enfurecem-se, erram os costumes. (Mastroianni se interessa por uma cantora que descobre ser um cantor…) Mas que ninguém ouse ocupar o retiro dos fantasmas. Se depender dos Rovianni, não vai ser desta vez que a história será destruída por uns maços de dinheiro da velha corrupção.

Um pensamento amoroso

Uma vez o Renato Pompeu, jornalista e escritor brilhante, me disse isto que vou contar agora pra vocês.
Ele não falava mal de livro ruim.
Isto porque sentia o peso da responsabilidade.
E se sua crítica fosse no futuro a última na Terra sobre um objeto extinto, o livro, justamente?
A resenha deveria então servir para mais do que simplesmente classificar uma obra no presente como boa ou ruim.
O texto deveria evocar a literatura, para que os leitores a reconstruíssem no futuro, por meio de novos livros.
Bonito, não?
Ontem tive de escrever sobre um filme que não julguei de todo bom.
E o pensamento do meu amigo retornou.
Mas e se meu texto fosse o último no futuro a restar sobre o cinema, este que teria se perdido?
Então minha responsabilidade cresceria.
Não que o filme que eu resenhasse fosse ruim.
Mas tinha um problema (a meu ver).
Embora ainda evocasse lindamente o cinema!
Este que no presente dá a impressão de se perder…
Então lutei pra aplicar ao cinema o princípio do Renato em relação à literatura.
Nem todo filme é cinema, como nem todo livro, literatura.
Porém, cinema e literatura precisam continuar a existir.
A se refazer.
Espero que minha crítica tenha dito isto.
Hoje e no futuro, se algum futuro houver…
Mais importante que tudo isto, como sou feliz por ter usufruído da amizade com o Renatão!
Uma riqueza amorosa de pensamento, como muitos livros não conseguem conter.