Algo como a morte

Certa vez um editor me pediu para fazer matéria sobre determinado volume de ensaios do Otto Maria Carpeaux.

Fiquei muito feliz com a incumbência.

Até demais.

Pensei: como um assunto bom desses caiu comigo e não com os lobos de sempre?

Não demorei a perceber que se tratava de uma armadilha.

Ao abrir o livro, vi que fora organizado por Olavo de Carvalho.

Isto faz tempo, vinte anos, mas Olavo já era então uma porcaria. Astrólogo que maltratava mulheres e se dizia filósofo. Uma porcaria não por ser reaça, mas por ser Olavo mesmo.

Meu editor havia batido boca com ele pelo jornal em torno de uma pseudoquestão erudita. Meu editor também era reaça, jovem discípulo do Francis, condição que os jornalistas “de cultura” da época almejavam.

(Uma professora da ECA deu de comparar meu estilo ao do Francis, sei lá por quê, e eu, mesmo aluna dela, rejeitei ofendida a comparação. Queria pra mim um vigésimo da iluminação de Lúcia Miguel Pereira! Deixa o Francis pros meninos!)

O editor havia então me dado o livro como tarefa porque não queria se ver com o astrólogo novamente.

O discípulo do Francis, que se achava melhor que o Francis, me disse o seguinte: que eu poderia fazer a matéria sobre o Carpeaux desde que não entrevistasse o organizador do livro.

Estranho, né?

Mas, do meu ponto de vista pessoal, magnífico.

Meu editor quis me colocar no fogo e eu fingi que não percebi. Na época tinha dois bebês em casa, trabalhava e saía correndo pra amamentar e medicar. Escrevia nos intervalos da vida. Não ia perder tempo com essa preocupação.

O que eu não sabia era que observar qualquer coisa sobre Olavo vinha já acompanhado de muitas ofensas virtuais.

Desconhecia sinceramente o eco de suas aberrações pronunciadas e fiz a reportagem.

Escolhi um sobrevivente da época do Carpeaux para que descrevesse o crítico pra mim. Era o poeta Sebastião Uchoa Leite, o melhor tradutor da Alice do Lewis Carroll. Ele havia trabalhado como estagiário numa enciclopédia dirigida pelo crítico, e crescido a seu lado a partir de então. (Não me recordo bem que caminhos me levaram a esta informação que funcionou como descoberta na época.)

Um gênio poético, um ensaísta, um homem das palavras, gente muito boa. Uchoa Leite tornou-se minha fonte amiga.

Mal saiu a matéria, o Olavo começou uma campanha contra mim nos seus espaços e naqueles de seus discípulos. Não reconhecia Uchoa Leite como discípulo. Disse que eu tinha inventado a história! Por ter deixado de ouvi-lo, gracejou, eu deveria ingressar na dupla sertaneja pavam-pavamzinho. Por meu lado, eu certamente esperava um insulto melhor…

(Não foi o único a correr atrás de mim na vida jornalística, claro. Me vi perseguida por umas figuras a quem, como a ele, inicialmente não dava a menor importância, e pensando bem, ainda não dou. Entre outros, por Paulo Coelho, que jurou lançar seus poderes de guerreiro para obstruir minha “luz”; por Pablo Capilé, que não se dirigiu a mim pessoalmente, preferindo em lugar disso ordenar o ataque de suas galés.)

Ser achincalhada por Olavo, aprendi, equivalia a um certo elogio. Não que tivesse me achincalhado, na verdade. Não falei nenhuma bobagem no texto, por sorte, e ele não tinha por onde andar. Mas como ousei não entrevistá-lo para realizar a matéria?

Na redação, todos comentavam os ataques de Olavo a minha pessoa com inveja clara.

E eu tinha de contornar os lobos jornalistas feridos por minha fama!

Muito divertido e tal.

Mas ninguém consegue imaginar isto hoje, estou certa.

Olavo, ele próprio, interessado em organizar os ensaios de um Carpeaux!

A vertigem da queda transformou-o em algo diferente, não?

Algo como a morte.

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