Naquele 1994, eu trabalhava como editora-assistente do “Divirta-se”, a seção diária de cultura do “Jornal da Tarde”, quando a ocasião de entrevistar Fernando Sabino (1923-2004) se apresentou. O escritor que eu admirava tanto, mas do qual ninguém queria mais saber, descido aos infernos depois de narrar de próprio punho a vida da então ministra Zélia Cardoso de Mello, lançava um livro novo. Até que enfim, pensei. Fui até ele como o sedento corre atrás do primeiro copo d’água. Mas que decepção! Era como se o escritor, por meio do livro, narrasse a vida de Cristo com o objetivo de ser perdoado, e justamente perto do Natal. Uma história fraca, semelhante àquelas que os evangelizadores propagam em edições infanto-juvenis facilitadas, ou pelo menos, àquela altura, me parecia deste modo (jamais reli o livro). Matutei e decidi que ainda assim valeria a pena entrevistar o escritor. Por sua importância, até pelo imbróglio com Zélia, a ministra de aura corrompida que tinha a história impressa tardiamente, como sempre, nos nossos jornais.
Eu conhecera Fernando Sabino, cujo centenário de nascimento se recorda agora, nos bastidores dos shows do Nouvelle Cuisine, banda de jazz que, surgida no final dos anos 1980, tinha a participação de meu marido, o guitarrista Mauricio Tagliari. Lembro-me de uma noite em que, sentado ao lado da esposa, a bela Lígia, Fernando Sabino nos divertira ao espinafrar o amigo Vinicius de Moraes: “Só danço samba, só danço samba, vai vai vai? Isso é letra de música? Não dá”.
Pensei que, ao entrevistá-lo em sua casa, conseguiria frases divertidas assim. Vendi a pauta em reunião, o editor aceitou a ideia e peguei o voo para o Rio. Mas, ao visitar o escritor em seu apartamento simplório de Copacabana (cheguei a lamentar sua situação financeira, mas um editor de lá me garantiu que a pobreza de Fernando Sabino era só pão-durice), vi um homem diferente. Triste. Talvez porque Lígia não o quisesse mais.
Não me reconheceu daqueles tempos. E serviu café feito por ele mesmo na hora, obtido pelo filtro de pano que ia dar em um bule esmaltado branco. Sabino não queria falar sobre Zélia, nem eu, sobre o escrito novo. De minha parte, jovem, não sabia o que dizer sobre sua novela sem magoá-lo. Foi tudo difícil entre nós, um verdadeiro embate. “Quando vamos falar sobre o meu livro?”, ele me questionava, elétrico, e com razão. Mas eu o enrolei enquanto pude. E até consegui que comentasse sobre a vizinhança empobrecida, em uma narrativa direta, tão sua, a única que restou na minha memória daquele dia, embora eu não tivesse conseguido encaixá-la no tempo curto de edição e no espaço menor ainda da seção cultural:
Certo dia, em uma rua de Copacabana, Fernando Sabino ouviu um sem-teto bradar à mulher, sentada sobre a esteira de papelão: “Mas quando foi que lhe faltei?”
O escritor em 1994, na foto de Carlos Chicarino
Os pássaros bicam as flores de Fernando Sabino a cada 30 ou 60 segundos. Mas o escritor nunca está à janela para vê-los. É agitado esse homem de 71 anos e cabelos, em parte, muito negros. Fala a sua interlocutora enquanto aumenta o volume do som, prepara o café, mostra cadernos antigos e livros e exibe fotografias. Um beija-flor que pousa num pote de água açucarada parece mais sereno. Sabino não o vê. De costas para a janela, sentado na poltrona de seu apartamento em Copacabana, o autor de “O Grande Mentecapto” espia um enorme espelho. Eis o truque: Sabino observa os passarinhos, sim. Mas refletidos. São reflexos do mundo, o que ele vê. Heróis de grande plateia, que gosta de apelidar “literários”. Heróis com o nome de Zélia Cardoso de Mello. Ou Jesus Cristo.
Sim. O novo livro de Fernando Sabino, “Com a graça de Deus”, conta a história do Salvador. “Uma leitura fiel do Evangelho inspirada no humor de Jesus”, conforme ele nos relata no subtítulo. O escritor se declara um homem de fé. “Muito pequeno, eu olhava para o céu e me perguntava: ‘Onde isso começa? Onde acaba?’ Aos 11 anos, decidi que havia uma coisa misteriosa chamada Deus. E não pensei mais no assunto.” Sabino gosta de dizer que sua fé é irracional. “O problema não é eu acreditar em Deus. É ele acreditar em mim.” São tantos os livros sobre Cristo editados atualmente – 50 por dia, segundo seus cálculos – que o autor não considera possível lê-los todos. Ele não conhece os escritos de Claude Tresmontant, que enumeram, entre os erros de tradução dos evangelhos, aquele relacionado à palavra fé. Para o senhor Tresmontant, a fé deve ser entendida como no original hebraico: é um “estar certo da verdade”.
Fernando Sabino não se permitiu exagerado tempo para as pesquisas. Iniciou-as em agosto de 1993 e apresenta seu livro nesta semana de 1994. É uma história de Cristo em seu estilo: palavras simples e estudadas, narrativa clara. O humor é aquele contido em “The Humour of Christ”, título de um livro do teólogo Elton Trueblood que o inspirou a escrever. O escritor mineiro insiste que Jesus às vezes ri. Exatamente como o Cristo das lojas Piter. “Cristo era um convite à valsa. Comia e bebia. Mandava a festa continuar enquanto o noivo estivesse presente. E o noivo era ele”, diz. Precavido, avisa que, em sua obra, humor não significa escracho. É mais o que se poderia traduzir por um “jeito” do Senhor.
“Cristo tinha um cacoete”, crê. “Ninguém era bom para ele. Gostava de simular a impaciência”. Impaciência que também é a do ousado autor desta espécie de Novo Testamento facilitado. Em trechos de seu livro, ele repreende o estilo do Filho de Deus. Dá a impressão de querer que Cristo fale como ele, Sabino, escreve – fácil, sem um traço de rebuscamento, sem imagens intrincadas: “Por que Jesus teria de usar com homens tão simplórios, de alma tão cândida, uma linguagem assim requintada, cheia de metáforas, metonímias, palavras de duplo sentido? Ele próprio não dizia que se servia de parábolas para confundir os ímpios, mas as explicava para o bom entendimento dos discípulos?”, indigna-se à página 117. Talvez o Senhor risse, imaginando se ele sabe o que diz.
Certamente, Sabino sabe o que faz. “O escritor corrige a verdade”, argumenta. Foi assim com a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, que lhe forneceu material para o livro “Zélia, uma paixão”, de oito edições vendidas, quase todas elas nos primeiros meses subsequentes ao lançamento, em 1991. “Aparei os regionalismos de Zélia. Quando ela afirmava que havia uma ‘puta’ diferença entre isso e aquilo, eu tirava. Paulista usa ‘puto, puta’ pra tudo. Fiz o mesmo quando ela me disse que, em criança, sua relação com a mãe era ‘péssima’. Perguntei: ‘Zélia, você quer desgraçar a sua mãe?’ Tirei a expressão.”
Esse copidesque de intenções tem uma relação ainda carinhosa com a mulher hoje acusada de envolvimento com o esquema de PC Farias. Não entende a reação irada dos leitores ao texto. “Resolveram acabar comigo depois que escrevi esse livro”, ele diz, apontando um complô contra a brochura com a participação de empresários e do SNI, temerosos por revelações. Sabino atribuiu ao livro o mérito de lhe ter proporcionado uma grande experiência literária. Sentiu-se como um Tolstoi escrevendo sobre as ceroulas de Napoleão. Da paixão de Zélia à de Cristo, o pulo foi de três anos. Mas ele não quer que confundam seu sentido de oportunidade com oportunismo. Diz que não recebeu 2 milhões de dólares pelo livro sobre a ex-ministra, conforme parte da imprensa alardeou. Se ganhou a quantia, ele certamente não a distribuiu por seu aconchegante apartamento de Copacabana, no qual há muitos livros, um kit de bateria Pinguim e luxo nenhum.
“Ao contrário do escritor Ernest Hemingway, que olhava tudo no mundo pela última vez, eu olho tudo no mundo como se fosse a primeira”, ele diz. Sabino acha que está pagando um preço alto por ser Forrest Gump, o ingênuo interpretado por Tom Hanks no filme de Robert Zemeckis. Que não o culpem por agora estar cruzando o limiar da esperança, juntamente com o papa João Paulo II. O autor que criou um Cristo caricato em “O Grande Mentecapto” achou que era hora de construir um Cristo respeitoso. Se tudo se revelar um engano, será apenas mais um. “Sou um bobo. Um deslumbrado. Faço besteira o tempo todo. Nasci homem, vou morrer menino.”
O escritor baiano Itamar Vieira Júnior no Museu das Favelas, em São Paulo, a nos olhar a partir de cima: “A USP, coitada, não me fez mal nenhum”
Novo escritor brasileiro com maior número de leitores, o baiano Itamar Vieira Júnior fala aqui, com suavidade, sobre a porção recusada do Brasil que descortina em seus best sellers premiados. Com suavidade, baianidade, igualmente com certeza, a nossa foi uma entrevista muito batalhada. Eu a havia sugerido à editora-chefe da revista Robb Report, a incansável amiga Gisele Vitória, e ela topou. Mas não consegui que ele me atendesse. A Todavia, casa publicadora de seus livros no Brasil, descartou-me essa possibilidade de cara, alegando que o autor estaria inteiramente ocupado com outras coisas (mais importantes, eu sei) no período. Mas Gisele não é jornalista de aceitar um não desses. Soube de sua presença em São Paulo, para uma edição da Flipelô, a Feira Literária do Pelourinho, e acionou os promotores do evento. No dia 14 de julho de 2023, então, igualdade, fraternidade e liberdade à lembrança, que nos virássemos em meia hora para entrevistar o escritor, excetuados os minutos gastos nos trâmites de apresentação: a escolha difícil de uma sala do museu para conversar (“Vamos entrar no prédio, senão esse povo todo vai nos cercar”, aconselhou-nos ele no pátio de entrada) e a sessão das fotos de Marcelo Navarro para a revista, imagens que não coloco aqui porque fiz as minhas próprias pelo celular. No fim, com o açúcar da vontade derramado sobre o amargor das interferências, conseguimos uma boa conversa. Ele falou de algo que eu aguardava muito conhecer, a sua formação para alcançar a literatura. Me surpreendi em descobrir que este escritor ainda não sabe, de fato, se continuará sendo um… Itamar tem a compleição física forte e os pés no chão. Com eles, na adolescência, andou até a casa de Jorge Amado para receber seu autógrafo e acabou brindado com um conselho de Zélia Gattai. O menino não dispunha de livros em casa, mas tinha sede. E uma porção importante de sua musicalidade com as palavras veio das vozes do rádio, dos grandes compositores amados pelo pai. Viu muito seriado na tevê, o que faz sentido quando pensamos nos seus dois romances, espécies de roteiros indicativos de espaços, personagens, diálogos e ganchos para o próximo capítulo. Li “Torto Arado” e “Salvar o Fogo” apenas para fazer esta entrevista. Posso afirmar que não entendo o autor como uma espécie de Paulo Coelho destes tempos, como se tem sugerido, visto que os assim ditos romances do mago brasileiro de letras são desprovidos da organização literária que Itamar tem de sobra. Como eu a vejo, a estrutura emotiva de seus livros evoca aquela da britânica J K Rowling: em sua saga baiana de formação, espécies negras de Harry Potters desfilam pela Hogwarts do Jarê para colocar à prova a intensa mentalidade infantil contra o mundo adulto ruim. De resto, adorei ter-lhe perguntado qual seu problema com a USP, uma vez que no passado se disse desinteressado da opinião da universidade paulista sobre o que escrevia, e ele ter respondido: “A USP, coitada, não me fez mal nenhum”. Este baiano nos olha de cima de um pedestal. E como é bom que um baiano nos olhe assim.
POR ROSANE PAVAM E GISELE VITÓRIA
(Fotos de Rosane Pavam)
Aos 44 anos, o baiano Itamar Vieira Júnior tem a consciência afiada feito a faca que sangra os destinos em “Torto Arado”, o primeiro romance de sua trilogia da terra. Com 700 mil leitores em todo o mundo (e a cada minuto que passa, desde a realização desta entrevista, em 14 julho último, quem sabe eles sejam bem mais), o livro traduzido para 23 línguas e protagonizado por uma família semi-escravizada, sem direitos sobre o chão em que trabalha, nasceu do contato do autor, geógrafo, com os quilombolas da Chapada Diamantina. Neste ano, a trilogia ganhou o segundo volume, “Salvar o fogo”, que se passa no Recôncavo Baiano, e logo o terceiro volume prosseguirá o mágico percurso do rio até a Bahia de Todos os Santos, segundo insinua o autor.
Suave para dizer as asperezas de um Brasil recusado, Itamar Vieira recebeu-nos em meio à edição paulistana da feira literária Flipelô, ocorrida em julho último no Museu das Favelas. Recordou com doce baianidade sua infância em batalha pelos livros, a poesia sorvida por meio da música popular e o encontro com o escritor Jorge Amado. Explicou por que considera realismo o que faz e garantiu, apesar de vencedor dos prêmios LeYa, Jabuti e Oceanos, não estar de todo certo sobre seu futuro como escritor. Antes de tudo um forte, ele tem uma certeza, contudo. O Brasil precisa abrir-se à sua cultura múltipla para ser o Brasil de todos.
Quando a literatura começou para você?
Aprendi a ler com 5 anos e meio em Salvador, onde nasci, e já nessa idade lia e escrevia, sem saber muito bem o que estava escrevendo. A literatura não era objeto de interesse na minha família. Venho de uma geração de trabalhadores da cidade, mas meu pai foi criado até os 15 anos na área rural, no Recôncavo Baiano, que fazia parte de suas memórias. E o lado materno estava na cidade havia muitas gerações. Minha família, creio, era igual a muitas outras que adoravam contar histórias. Cresci nesse ambiente de muita memória. Embora a família jamais houvesse cultivado o hábito da leitura, por não ter escolaridade suficiente ou porque sua vida exigisse atenção para coisas mais urgentes, tive contato com a arte desde sempre, principalmente com a música. Meu pai era um grande apreciador de música popular brasileira, e por meio dela tive o primeiro contato com a poesia, as palavras, a melodia, a harmonia, com as coisas que terminam por refletir naquilo que eu escrevo. Eu ouvia o cancioneiro popular brasileiro, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento. O rádio vivia ligado, principalmente de manhã.
“Eu não tinha livros em casa. Meu vizinho pegava da biblioteca escolar e me emprestava. O primeiro que li, de 7 para 8 anos, foi ‘O caso da borboleta Atíria’, fabuloso. Terminei a leitura e fui escrever uma história”
Se não havia livros em casa, onde você fazia suas leituras?
Minha escola não tinha biblioteca, mas meu vizinho Raimundo estudava em um lugar melhor, onde havia uma. Ele me emprestava os livros de lá. Eu pegava um volume e no outro dia já tinha de devolver. Lembro-me especialmente da Coleção Vagalume, uma série de literatura infanto-juvenil editada pela Ática. Um desses volumes, creio, foi o primeiro livro que li, ou o primeiro que me impactou, “O Caso da Borboleta Atíria”, uma história fabulosa da Lúcia Machado de Almeida. Os personagens eram os mesmos insetos que eu via à minha volta, nas brincadeiras de rua. Como podiam ter uma vida tão rica? Era só no que eu pensava depois de ler a história.
A literatura é essa varinha de condão que torna tudo mágico. Quando li esse livro eu disse: “Quero fazer a mesma coisa.” Eu deveria ter de 7 para 8 anos. E foi um encanto essa história em particular, porque enriqueceu o universo dos animais que eu conhecia pelas brincadeiras de rua, o besouro, a borboleta, as formigas. A Lúcia fez todos esses seres viverem uma história de mistério com tanta qualidade que fiquei impactado. Logo que terminei a leitura, comecei a escrever uma história, também com animais, com insetos. Eu me senti muito inspirado por ela.
Você guardava o que escrevia?
Eu escrevia e ia para o guarda-roupa, porque uma vez minha mãe, dona Teresa, achou meus papéis e se sentiu preocupada. Lembro de sua decepção ao descobrir que eu escrevia. Ela era dona de casa, achava isso uma bobagem. “Você deveria estar estudando, mas está escrevendo essas coisas!” E essas coisas não eram exatamente narrativas. Era tudo muito teatral, às vezes. Tinha muito diálogo, imagem, representação, talvez como influência dos seriados de televisão aos quais a gente assistia quando criança, como “O Sítio do Picapau Amarelo” e outros dos Estados Unidos, como “A Ilha da Fantasia” “MacGyver – Profissão Perigo”, “O Incrível Hulk”.
Você lia Monteiro Lobato?
Só tive contato com Monteiro Lobato mais tarde e não me capturou, talvez por eu já ter acompanhado a série de televisão.
Seus livros parecem ter sido feitos para a encenação. Sua narrativa é direta, ativa, dialogada. E os personagens têm universos incríveis para mostrar, como o do jarê em “Torto Arado”, que mistura ritos católicos e afroindígenas. Você experimentou essa religiosidade na infância?
Cresci em Salvador, onde a religião está impregnada em todos os cantos. O catolicismo, o neopentecostalismo e a maneira profunda do candomblé estão por lá. Se são 365 igrejas em Salvador, os terreiros existem em número três vezes maior. Morei 20 anos em uma casa no bairro de Mussurunga onde, nos fundos, havia um terreiro de candomblé, então eu escutava todas as cerimônias. Minha família é cristã, mas, claro, na Bahia a religiosidade nunca é absolutamente pura. Se as rezas e as ladainhas não dessem certo, todos iriam procurar outro tipo de ajuda. Meu contato com essa religiosidade veio do cotidiano, mas o jarê em particular eu conheci mesmo por conta do trabalho, viajando pelo campo, pela Chapada Diamantina, trabalhando com comunidades negras rurais.
Quando você começou a trabalhar no Incra?
Há 17 anos, no Maranhão, onde passei três anos. Voltei para trabalhar na Bahia e depois de um ano, mais ou menos, comecei a atuar em comunidades quilombolas. Passei um bom tempo na Chapada Diamantina, onde tive contato com o jarê, que só existe lá, típica prática religiosa sincrética na qual se encontram referências das regiões brasileiras, de práticas xamânicas de matriz africana, mas também do catolicismo rural.
“Na minha pós em estudos étnicos estudei Antropologia, que ensina a se colocar no lugar de escuta das pessoas, sem emitir julgamentos. Aprendemos a ver como as pessoas olham a vida a partir de suas cosmovisões. Isto me levou para mais perto da literatura, onde se faz o mesmo”
Ali você também começou a pensar em desenvolver sua literatura?
Eu não venho da literatura, sou geógrafo de formação. Fiz pós-graduação no programa de Estudos Étnicos da Universidade Federal da Bahia, quando comecei a estudar Antropologia, que ensina a se colocar no lugar de escuta das pessoas, sem emitir julgamentos sobre aquilo que a gente escuta. Aprendemos a ver como as pessoas olham a vida a partir de suas cosmovisões. Exercitei isso com o tempo, o que me levou para mais perto da literatura, onde se faz o mesmo. A gente se envolve, se apaixona pelos personagens, mas não emite julgamento sobre eles. Deixa que vivam livres para praticar o bem e o mal, vamos dizer assim.
Esse contato com a antropologia chegou à pele, tanto que às vezes as pessoas veem em “Torto Arado” referências ao realismo mágico praticado por escritores como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Eu não gosto muito dessa ideia, porque no caso de minha literatura represento aquilo em que as pessoas de fato acreditam, sua maneira muito própria de ver o mundo. E quando a gente chama algo de “mágico” a gente fala a partir da nossa própria perspectiva, razão pela qual usa esse adjetivo.
A magia parece ser sentida, vivida por seus personagens. E talvez nem os realistas mágicos gostassem da expressão “realismo mágico”…
O García Márquez dizia: “Eu escrevo só realismo!” E embora ele não tenha me impulsionado a escrever de imediato, tornou-se uma grande referência. Creio que foi o García Márquez quem disse: “O Caribe começa na Bahia”.
Minha editora em Portugal recentemente mencionou a proximidade que sente entre minha literatura e a do Vargas Llosa. E aí eu digo que gosto da literatura dele – não dele em si, porque se tornou uma pessoa difícil politicamente para mim -, mas me sinto mais próximo do García Márquez, talvez por morar em um lugar onde essa experiência religiosa é vivida em profundidade.
Ler García Márquez a partir de “Cem Anos de Solidão”, por volta dos 19 anos, fez todo o sentido para mim. Suas possibilidades literárias não são exatamente aquelas racionais, eurocêntricas, ocidentais, que sacramentamos como verdadeiras. Ele pensa nas referências múltiplas de quem se viu afastado dos grandes centros e não foi escolarizado no tempo certo, mas que guarda essa experiência, essa profundidade de vida e sentidos. Depois, ao estudar também etnografias principalmente indígenas, deparei com sua cosmovisão, que guarda relação profunda com crenças populares tanto no interior do Brasil quanto em outras partes da América Latina. É impressionante. A gente nem se dá conta de haver relação entre uma coisa e outra, mas há sim, e profunda.
Seu contato com a obra de Jorge Amado veio depois?
Veio antes. E não por meio da escola. Eu morei um tempo em Pernambuco e lá, em uma biblioteca, encontrei uma não-ficção do Jorge intitulada “Bahia de Todos os Santos”. Levei para ler e fiquei pensando: “Nossa, é sobre Salvador, sobre a Bahia onde nasci, mas não conheço esse lugar em profundidade como ele está mostrando aqui, que coisa maravilhosa!” E aí comecei a ler a obra do Jorge Amado pelas bibliotecas.
Eu cheguei a encontrar o Jorge uns anos antes de ele morrer, em 1996. Adquiri uma edição popular de “Capitães da Areia” em uma banca de revistas, por cinco reais, e pensei: “Vou à casa do Jorge Amado pedir para ele autografar.” Mas eu tinha tanta vergonha! Queria que alguém pegasse o livro na porta da casa, desse para ele assinar e o devolvesse, porque eu não queria incomodar. E quando eu estive lá uma pessoa atendeu a porta: “Eu vou ver se ele pode assinar.” E um pouquinho depois: “Dona Zélia está lhe chamando.” Foi quando eu entrei e o conheci.
Ele já não enxergava direito, estava idoso. Mas quando lhe dei o livro para assinar ele viu que tinham grafado o título errado na capa, “Capitães de Areia” em lugar de “da Areia”. Ficou chateado, não comigo, com a editora, mas assinou o livro. Dona Zélia Gattai, sua esposa, foi quem conversou mais. Ela perguntou: “Você já leu algum livro meu?” E eu disse: “Não.” Então ela tirou da estante “Anarquistas, graças a Deus” e me deu. A gente começou a conversar: “Você gosta de ler?”, ela perguntou. E eu disse: “Gosto, e gosto de escrever também. Quero ser escritor!” Ao que ela retrucou: “Não tenha pressa, escreva no seu tempo, continue lendo bastante.” Estes foram seus conselhos.
Àquela época, o Jorge já estava um pouco deprimido, segundo me contou sua filha, a Paloma Amado. Ele mais escutou que conversou, acenando com a cabeça. Não existia celular, senão a gente tinha feito uma selfie. Não fiquei com nenhuma foto, porque nem sabia que iria à casa dele naquele dia. Eu brinco que foi meu batismo. Os dois me batizaram naquele momento. E depois desse dia fui ler tudo da Zélia também, porque ela tem uma obra memorialística muito importante sobre sua vida com Jorge, relata o exílio dele depois de seu mandato de deputado ter sido cassado, e suas viagens pelo mundo.
Você seguiu o conselho da Zélia? Esperou quanto tempo para começar a escrever?
Muito tempo. Eu nem sei se me considero pronto. A cada livro que escrevo vou aprendendo coisas novas, aprimorando. Mas eu demorei muito tempo para publicar. Primeiro eu fui estudar, trabalhar, cuidar das coisas urgentes da vida. Eu fiz uma publicação antes que nem considero, de próprio punho. Só publiquei de fato em 2012, o livro de contos “Dias”, que venceu o XI Prêmio Projeto de Arte e Cultura da Bahia. Cinco anos depois eu publiquei outro livro, “A oração do carrasco”, finalista do Prêmio Jabuti na categoria Conto, depois editado como “Doramar ou a Odisseia”. Em 2018 saiu “Torto Arado” em Portugal.
Por que Portugal?
Eu não tinha uma editora no Brasil. Havia publicado os dois primeiros trabalhos por editoras pequenas da Bahia, numa situação em que o livro não circulava, não chegava às livrarias. Quando terminei o romance, decidi: “Vou publicar”. Mas eu não mandei para nenhuma editora porque eu sabia que o livro iria parar na gaveta. Então resolvi mandar para um concurso literário. Procurei o prêmio Sesc, mas ele havia encerrado as inscrições um mês antes. Então descobri um edital do prêmio LeYa em Portugal destinado para literatura em língua portuguesa de qualquer parte do mundo. Seis meses depois soube que o livro tinha vencido o prêmio LeYa e o publiquei em Portugal.
Eu sou muito cético, tenho os pés no chão e fiz um envio protocolar, para tirar o manuscrito da minha gaveta. Mas depois pensei: “Será que Portugal vai ler?” Embora houvesse um brasileiro no júri, eu não tinha muita esperança que lesse. Mas quando o livro venceu, comecei a ser convidado para eventos, veio a publicação no Brasil e outros prêmios importantes chegaram. Isto foi me tornando um autor profissional nesse sentido de ser convidado para o espaço de eventos. Neste ano já me licenciei do serviço público e tenho vivido de literatura. Em verdade, tenho experimentado para ver se me agrada mesmo viver disso.
“Torto Arado” já nasceu como o primeiro volume de uma trilogia?
Antes de começar, não, mas durante a escrita me veio a certeza de haver mais a ser escrito. É um tema tão vital. Durante muitos anos eu percorri lugares e encontrei pessoas ameaçadas de perder aquilo que talvez seja a coisa mais elementar, depois do nosso corpo, que é o primeiro território para a gente existir, um chão para pisar, trabalhar. E isto não vale só para as pessoas do campo, vale para nós da cidade também. A gente tem a nossa casa, o chão que a gente pisa, a rua em que a gente trafega. E essas pessoas estavam ameaçadas, muitas ainda estão, em diversas partes do mundo, de perder isso. Este foi o ponto de partida de “Torto Arado”. Achei que ia me resolver com aquela história, mas no meio da escrita do livro eu já sabia que ela se prolongaria. E foi assim que eu cheguei ao segundo volume, é assim que eu tenho trabalhado para o próximo também, com o qual espero fechar, pelo menos em um primeiro momento, este ciclo.
Em “Torto arado” e “Salvar o fogo”, as figuras femininas são as protagonistas. Por quê?
Eu cresci em um ambiente em que as mulheres eram essas personagens fortes. Sempre digo que os homens, perto delas, eram figuras pálidas mesmo, não tinham metade da força delas. Eu fui criado em um ambiente machista. Os homens trabalhavam e as mulheres cuidavam da casa e da educação dos filhos. Eram mulheres atravessadas pela violência de gênero, em todas as suas forças, e acho que isso criou uma atenção para mim do que ocorria nesse lugar de vulnerabilidade. Elas não aceitavam isso, reagiam da maneira que podiam, mas sempre reagiam. E acho que isso criou em mim uma capacidade de observar, de compreender esse universo que depois reverberou no campo.
Ao trabalhar no campo, eu encontrei mulheres muito parecidas com elas, que enfrentavam as mesmas coisas e tinham de reagir. Testemunhei muitas mulheres em posição de liderança, dirigindo sindicatos, movimentos sociais, presidindo a associação de agricultores, o que é algo paradoxal. Se a gente pensar, no Brasil, seja nos tribunais superiores, seja no Congresso Nacional, a participação das mulheres ainda está aquém do que deveria ser. Mas, no meio do povo, isso mudou faz tempo. Nas periferias urbanas e no campo as mulheres conduzem muitas políticas. Então, essa compreensão me fez entender que era preciso contar essa história a partir de um outro olhar que não o meu, mas um olhar literário, vindo dessas personagens historicamente subalternizadas. É a mulher negra, a mulher indígena, a mulher mestiça, nesses lugares de profunda violência, mas é também onde a vida tem a capacidade de recomeçar sempre.
“É comum que o arcabouço teórico e metodológico do crítico seja eurocêntrico, venha de lugares historicamente de dominação. Mas há outras ontologias legítimas que merecem ser lidas atentamente. O que se dizia da literatura da Carolina Maria de Jesus? Que nem era literatura. E aí no ano passado Annie Ernaux ganha o Nobel de Literatura fazendo a mesma coisa, alta ficção sobre si. Mas ela é uma mulher francesa, e uma francesa pode…”
Quando “Torto Arado” chegou, em fevereiro de 2019, o Brasil temia a violência contra esses grupos. E, para além das qualidades literárias do romance, sua história encantou quem se preocupava com os rumos do país. Você se tornou popular, mas a crítica literária brasileira nem sempre pareceu aceitar isso, como aconteceu em relação a seu segundo romance. Você reagiu com força, por meio de sua coluna no jornal “Folha de S. Paulo”, à crítica que condenou “Salvar o fogo”. Por quê?
Parece que historicamente esta hierarquia sobre o que é arte se origina em espaços e lugares ainda empenhados nas estruturas coloniais. É muito comum que todo o arcabouço teórico e metodológico do crítico seja eurocêntrico, venha de lugares historicamente de dominação. E há outras ontologias legítimas que merecem ser lidas atentamente. O que se dizia da literatura da Carolina Maria de Jesus? Diziam que nem era literatura. E aí no ano passado a francesa Annie Ernaux ganhou o Nobel de Literatura fazendo exatamente a mesma coisa, alta ficção escrevendo sobre si. Mas ela é uma mulher francesa, e uma francesa pode…
O Brasil vive um momento muito interessante agora. Novas vozes têm chegado a esse lugar da alta literatura. Então é importante promover esse debate com a crítica, para mover as estruturas, para que não aconteça o que aconteceu com a Carolina e grandes escritores negros, como Lima Barreto e tantos outros que vieram e tiveram sua arte diminuída. Não é falar só por mim, é falar por todos os que estão fazendo isso nesse momento, como Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz, a indígena Julie Dorrico, o Ailton Krenak, que não é ficcionista mas tem escrito ensaios muito interessantes. Já passou da hora de o Brasil acolher sua sociedade, sua classe artística, a partir do parâmetro da multiplicidade. Somos muitos. E as universidades, espaços profundamente coloniais.
Você chegou a dizer que a opinião da Universidade de São Paulo não lhe interessava.
A USP, coitada, nunca me fez mal nenhum. Citei-a por ser um espaço simbólico do pensamento eurocêntrico colonial. Mas acho importante provocar o debate para que se possa desconstruir essa colonialidade muito presente.
Qual a seu ver é o ponto desse debate que precisa ser tocado com mais força?
Primeiro, reconhecer que a gente não rompeu com essas estruturas desde o passado. Este não é somente o caso do Brasil, estou pensando no continente americano, na África e na Ásia também. Criou-se uma forma predatória de habitar o mundo. A colonialidade foi a morte da autoridade, porque nesse momento as sociedades distintas desaprenderam a coexistir. O genocídio indígena foi matar quem era diferente. E a diáspora africana, subalternizar o diferente, desumanizá-lo. Criou-se um ranking de vida e valor que nunca foi desconstruído. Basta observar o mundo à nossa volta para saber quem ocupa os espaços de subalternidade, quem está vulnerável, quem sofre com preconceitos e de que maneira.
Ao compreender a história a gente vai entender o que acontece e projetar um futuro diferente. É preciso agir no presente para não reproduzir essas estruturas de nenhuma forma no futuro. Trata-se de um projeto de longo prazo que vai exigir muito investimento em educação, em cultura. E quando eu falo em cultura me refiro à extensão do projeto educacional. Não há educação desprovida de cultura, do conhecimento de nossas expressões intelectuais e artísticas. É urgente falar sobre isso para desconstruir esse estado de coisas. O Brasil só vai ser democrático se for para todos, não apenas para alguns.
Ao mesmo tempo, no Brasil, a elite não lê.
No Congresso Nacional, quantas pessoas serão leitoras? Acho que às vezes não sabem nem o que votam, a depender do assunto. Ninguém lê as matérias pautadas. Como alguém me disse nestes dias, não dá para esperar que a elite brasileira se ponha a ler.
“No Congresso Nacional, quantas pessoas serão leitoras? Acho que às vezes não sabem nem o que votam, a depender do assunto. Ninguém lê as matérias pautadas. Como alguém me disse nestes dias, não dá para esperar que a elite brasileira se ponha a ler”
Pensando em como você foi tocado por aquele livro aos 8 anos, como acha ser possível proporcionar o mesmo para uma escala maior de pessoas?
O Brasil ainda é profundamente desigual. Poucas pessoas têm acesso a livros, a bibliotecas. Então é necessário investimento, uma política pública muito abrangente que envolva as escolas, a aquisição de livros, a mediação de leitura para fortalecer as bibliotecas comunitárias, a promoção de atividades culturais. Nenhum ser humano pode prescindir da literatura, um direito, segundo escreveu o crítico Antonio Candido. Para ele, o conceito de literatura abre-se às lendas indígenas, às histórias familiares transmitidas de geração a geração. Essa dimensão subjetiva da vida existe em qualquer cultura, em qualquer meio, e a gente não pode sabotá-la. A gente precisa estimular para que elas floresçam e nos apontem para um novo caminho, um novo lugar.
Nesta entrevista que realizei com Lygia Fagundes Telles há 22 anos, em abril de 2000, para o caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil, a escritora reclama do pouco valor dado aos escritores, lembra de Clarice Lispector, ironiza Caetano Veloso, fala de sua relação com Paulo Emílio Salles Gomes e narra o encontro que teve com Simone de Beauvoir
A página em que a entrevista foi publicada, com foto de Juan Esteves feita na Academia Paulista de Letras
Lygia Fagundes Telles banha-se de uma certeza de Santo Agostinho, a de que o importante é a arte de viver num tempo de catástrofe, quando esta entrevista se inicia. Está impaciente, a autora de “As horas nuas”. No dia 1, Nélida Piñon e Lya Luft, conceituadas escritoras, vão homenageá-la com discursos na Bienal Internacional do Livro de São Paulo e, no próximo dia 24, sai o livro “Invenção e Memória”, com 15 contos que apresentam seu imaginário admirado de crueldades, mistério e um ensejo de esperança final. Ela tem tantos compromissos, tantos, e agora mais este. Àquela que pretende entrevistá-la, lança uma consideração de arrefecer. “Não importa nada do que eu diga. Meus livros é que importam. Leia estes papéis.”
Sobre as mãos da interlocutora, ela vai depositando impressos que contêm o resumo de sua ascensão literária e as breves considerações dos críticos, todos esbanjadores de enormidade – Otto Maria Carpeaux, José Paulo Paes, Sergio Milliet – sobre sua importância livro-a-livro. O que fazer? Lygia, 76 anos incompletos, está mesmo impaciente e, supõe-se, não apenas com jornalistas. Há os homenageadores que teimam em lhe dar mais idade do que tem. Os governadores. Os corruptores que revelam suas vocações a céu aberto. Os ricos compositores de música popular. Os estudantes que um dia lhe roubaram a obra de Jorge Luis Borges, autografada, da estante de retratos.
É preciso cobrir Lygia de razão. Sua impaciência cresceu a partir de um ato assinado há três anos pelo governo do Estado de São Paulo, extinguindo a verba honorária a que ela, procuradora autárquica do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, o Ipesp, teria direito. Seus vencimentos foram reduzidos a menos da metade do que eram. Lygia Fagundes Telles, escritora máxima brasileira, 17 livros publicados, dezenas de prêmios, ficções traduzidas em oito línguas, ficou sem dinheiro.
“Quando me ligam aqui dizendo que podem me pagar uma quantia simbólica por meus textos – e por simbólico entenda 300, 500 reais – minha orelha já levanta, meu cabelo já levanta”, diz Lygia com reiteração, com drama, numa pontuação em que sempre cabem muitos travessões e alguns recursos de estilo, como os itálicos. “Você veja. Os cantores, os compositores. Eles têm, um, apartamento em Paris, outro, em Nova York. Convidam Caetano Veloso para cantar e ele vai porque é um bom perfil – não exatamente um Rodolfo Valentino, como quer ser, com aquele turbante, não é um sheik -, muito bom cantor, compositor. Mas, para um escritor, não se paga o que se paga a ele.”
Há quatro anos, quando mudou de editora, da Nova Fronteira à Rocco, Lygia imaginou que poderia viver no Rio e lá, mesmo timidamente, montar o que ela intitula “uma nova frente de trabalho”. Mas o que ela desejava como moradia – “não uma cobertura, veja bem, um apartamento no Leblon” – não lhe foi acessível. Lygia, de elegância proverbial, lenços no pescoço, cabelos cortados em eterno chanel, e mocassins, quis viver com o conforto presumido de sua condição de dama das letras. Como não conseguiu, voltou a seu apartamento paulistano da rua da Consolação, aconchegante e digno, num prédio cercado por raras palmeiras imperiais.
“Seria preciso haver, para os escritores, as marquesas antigas, e duquesas, que convidavam e instalavam os artistas naqueles castelos, alas norte e sul, com empregados, por seis meses, para que escrevessem. Ninguém mais nos convida!” E mais travessões, e mais ênfase, porque agora a indignação quer saltar. “Eu devia – eu devia – me informar mais e falar com o Yunes [Jorge Yunes, o empresário com quem o prefeito de São Paulo, Celso Pitta, está envolvido em um escândalo de corrupção]. Parece que ele empresta.”
É nesses instantes em que ironiza as dores de sua particularidade e de seu país que Lygia está mais distante da mulher que escreve seus livros. Porque Lygia, autora – ao contrário da mulher que está na vida, relativamente indefesa, capturada pelas malhas dos executivos e das leis -, é segura, terrível soberana de todos os destinos. Uma escritora que explora as crueldades, e as expõe, que aponta os assombros de seus personagens, endinheirados ou pobres, e os derrete nas imagens literárias mais sintéticas e poderosas de que as décadas recentes têm notícia.
Lygia é rápida, de destreza exemplar. Neste novo livro, sua carpintaria de contista continua afiada. Em uma das histórias, um menino é acolhido por um velho, e a relação dos dois vai crescendo diariamente sob os olhos de um determinado comensal; um dia, um dos dois desaparece, por obra de seu par. Para quem a conhece, não há novidade desde o início: aquela história não acabará mesmo bem. A diferença, talvez, resida no fato de este conto não exalar, ao final, aquela ponta de crença de um desfecho feliz. Por onde a olhemos, é uma história de crueldade, num livro de crueldades e mistérios.
“Esperança, esperança, esperança, esperança”, brada Lygia, em novos itálicos, em sua residência na rua da Consolação. Sua esperança é a de ter inventado um novo gênero. O título do livro já diz: “Invenção e Memória”. Foi-lhe sugerido por uma frase anotada em algum lugar por seu marido, o crítico de cinema e escritor Paulo Emílio Salles Gomes, morto há 23 anos: “Invento, mas invento sempre com a secreta esperança de estar inventando certo.” Pois Lygia quer ter inventado isto neste livro: um gênero diferente dentro de seu próprio trabalho (não usa a palavra obra, por parecer grande demais), um gênero que asseguraria à ambiguidade uma avenida por onde passear. “Muitas coisas ali são inventadas, outras são memórias. Eu lá sei, não posso separar uma coisa da outra.”
É verdade que nunca pôde. Em seus livros, há, sim, crueldades, mas compartilhadas. Maniqueísmo e qualquer outra palavra que evoque contrastes evidentes entre o que é errado e certo não se aplicam a seus livros (ela prepara um romance, mas não adianta sobre o que tratará). “É impossível você separar, como num laboratório de física, o bem do mal”. Lygia se lembra de um padre de infância que lhe disse: “Miolo Mole – ele me chamava assim -, existe o bem e existe o mal. Quem escolhe o mal vai para o Inferno, quem escolhe o bem vai para o Céu.” E então ela via o clube da cidade, para onde se dirigiam as pessoas do bem. Mas seu pai ia lá também, jogar, e entristecia sua mãe. “Eu percebia esse lado no clube, uma porção do mal, você entende?”
Para Lygia, Santo Agostinho teria sido perfeito se houvesse levado, à vida de santidade, sua vivência anterior do pecado. A perfeição para ela, em se tratando dessas situações, foi personificada por Jesus. Não há quem tenha compartilhado sua glória, a de aceitar o mal como viesse. Nem mesmo seus próprios homens. Houve dois na vida de Lygia, o primeiro deles, um advogado, Goffredo da Silva Telles, que lhe deu seu único filho (também Goffredo, cineasta). Ela se lembra de ouvir o grande advogado dizer: “Não se adiante no tempo, Lygia.” Seu segundo homem, Paulo Emílio Salles Gomes, a escritora admirava e observava: “Ele arrebentava em ideias. Tinha essa coisa de certeza.” Ela o via como o filósofo Sócrates, praticando a “obstetrícia intelectual” em seus alunos, arrancando os fetos de seu pensamento, tamanha a sua lucidez, tudo num sentido diverso daquele em que ela caminhava. “Eu nunca tive essa carga tamanha de vontade.”
Lygia e Paulo viveram uma existência de 15 anos compartilhados, entre 1962 e 1977, sem filhos, mas com “o jovem”, como ele carinhosamente chamava o pequeno Goffredo, tido como seu próprio filho. “Resolvemos que levaríamos uma vida tranquila, nós e nossos gatos. Já tínhamos o jovem. Resolvemos que chega de filho. Chega de atormentação.” Ela o fazia ver coisas, o obstetra. Fazia-lhe ver que um dia os roteiristas de cinema respeitariam a profundidade de seus livros imagéticos. Se Lygia ainda não conheceu esses profissionais especialíssimos, a explicação foi mesmo dada por Paulo Emílio: os textos de Lygia provocariam uma sensação de intimidade tão grande em quem se aproxima deles que a oportunidade de invadi-la estaria aberta.
Nos anos 1930, quando Lygia vivia a meninice, aceitava-se que fosse estranha. Era uma mulher e, como mulher, dada à percepção, numa intensidade, ela crê, muito maior do que a encontrada nos homens. Para ela e para sua companheira, a escritora Clarice Lispector (1925-1977), Lygia até imaginou um qualificativo: bichos da sombra. “Nós nos desenvolvemos na sombra, mudas.” Esse é um assunto delicado, sua semelhança ou diferença em relação a Clarice – “desconfiada, esperta, ótima” -, aceita como a grande escritora brasileira do século, a inventora, justamente, de uma nova linguagem de percepção. Mas Lygia vê com tranquilidade os pontos que as tocam. “Éramos confessionais, perceptivas, mas éramos diferentes. E a diferença talvez residisse nas doses de mistério. O mistério, sal da ficção, acompanha o escritor.”
Não que Lygia deseje dizer com isso que o mistério, ponto de união com Clarice, deva afastá-la do leitor. Ela e a autora de “Perto do Coração Selvagem” conversavam muito sobre a mania que tinham os professores, nos anos 1960, de tornar seus livros mais complexos do que a necessidade, e, com isso, afastar os interessados possíveis naquelas tramas. “A gente seduzia os leitores, dizíamos coisas interessantíssimas, e os professores daquele tempo – isso estava na moda – vinham e destruíam tudo.”
Foi como bicho da sombra que Lygia, certa vez, recebeu um convite da escritora francesa Simone de Beauvoir para um chá, quando a escritora esteve aqui com o filósofo Jean-Paul Sartre, nos anos 1960. “Eu falava mal o francês, embora lesse e apreciasse muito a literatura francesa. Dizia: “Meu deus, o que vou conversar com Madame?” Simone, participativa – “a tal da revolução feminista estava começando” -, queria ler textos seus. Havia poucas traduções para o francês à época, e a escritora lhe deu a de um conto do futuro livro “Antes do Baile Verde”. Mas Simone pedia mais. E então Lygia se lembrou de outro padre, o canadense Paul-Eugene Charbonneau (1925-1987), que parecia entender suas ambiguidades e amara “Ciranda de pedra”, seu primeiro romance, a ponto de traduzi-lo.
“Era uma tradução, não sei se boa, porque na época eu não tinha condição de avaliá-la, mas feita com amor por um homem de vocação”, lembra Lygia. E então ela resolveu oferecê-la a Madame, ressaltando que o livro poderia lhe interessar por tratar da decadência da burguesia brasileira e de uma jovem desesperada, querendo fazer parte dela, e dela se libertando. Beauvoir, que partiria no dia seguinte, topou a oferta. “Deixe seu livro lá no meu hotel.” Lygia pensou: “Ela vai jogar isso no mar.” Mas, ainda assim, cumpridora de suas promessas, depositou o enorme embrulho com folhas datilografadas na recepção. “Tempos depois – veja que intelectual séria – chega uma carta dela escrita em papel quadriculado dizendo assim: ‘Gostei muito, que riqueza, pena que seu livro não veio escrito em francês parisiense, porque eu o lançaria aqui.”
Lygia, bicho da sombra, ficou “animada e quieta” com o elogio. Na mesma carta, Simone de Beauvoir comentava seus textos dizendo que se enredavam em tristezas e desesperos muito grandes, mas que depois mostravam a esperança. Identificava um gesto desse sentimento final em “As pérolas”, conto com que Lygia lhe presenteara. Nele, o homem rejeitado joga o colar esfacelado para sua mulher, que, com a peça, ansiava encontrar um novo amor. “Depois do que ela disse, me senti coerente comigo. Sou triste, às vezes, mas há um gesto final, de esperança, no que escrevo”, diz Lygia. “E essa carta de Simone de Beauvoir, na verdade, eu vou vender.”
O escritor e produtor de cinema narra com especial humor sua sina no desenho brasileiro
A bela, fluida e bukowskiana autopornografia de Otto Guerra
Dos livros lindos que recebo.
Você lê esta autobiografia do desenhista e produtor de cinema Otto Guerra de uma sentada só (ops).
“Nem doeu (autopornografia)” prova o que o seu humor fluido-surreal-alucinante porno-bukowskiano pode fazer por nós num país tão desgraçado quanto este.
Podemos rir!
Mas não rimos dele só porque somos maus. Rimos porque a saga deste escritor nem difere da nossa tanto assim.
E porque podemos, estimulados pelo homem, quebrar realmente tudo.
A editora do novo livro de Otto Guerra é a Mmarte (mmarteproducoes.com) e os editores, Márcio Jr e Márcia Deretti.
Na guerra, na escrita ficcional, no ensaio literário ou na tradução, este grande pensador, morto há cinco anos, negou a covardia
Boris Schnaiderman durante entrevista que realizei com ele em 2011, registrada pela fotógrafa Olga Vlahou: um sorriso sempre
Neste 18 de maio de 2021, completam-se cinco anos desde a morte do crítico, escritor e tradutor Boris Schnaiderman, que hoje teria 104 anos. A seguir, reúno o obituário que escrevi em 2016 à entrevista realizada no ano anterior em torno de seu último livro, “Caderno Italiano”.
Em foto de Olga Vlahou, o professor Schnaiderman, sua esposa Jerusa e esta jornalista, há dez anos
POR ROSANE PAVAM
O sorriso brasileiro, a alma russa, uma doçura no trato, a rara retidão. Morto em decorrência de pneumonia um dia após completar 99 anos, numa quarta-feira, dia 18 de maio de 2016, em São Paulo, Boris Schnaiderman viveu de traduzir. No título de um livro lançado em 2011, equiparou seu ofício a um “ato desmedido”, este para o qual, com modéstia peculiar, nunca se via pronto, embora o entendesse necessário, exigente de sua ousadia. Não somente verteu ao português os clássicos da literatura russa, libertando-a das más versões anteriores, como, por seu gosto e humor, preferiu exercitar a “tradução vivida”. Um ser humano, dizia, existe para traduzir aquilo que caminha em seu íntimo. E o tradutor deve ser um ético, um fiel, a quem não competirá desfazer do texto alheio, ainda que confuso. “Antes o obscuro que o óbvio, o frouxo”, proclamava, numa citação a Guimarães Rosa.
Tinha princípios e lutava por eles. Nos anos 1940, após a entrada do Brasil no grande conflito mundial, deu-se conta, sem o apoio dos pais ou dos amigos, que era preferível lançar-se à óbvia guerra, temeroso dela, do que acovardar-se na frouxidão. Não somente a terra a acolher sua família fugida dos pogroms, nos anos 1930, merecia sua batalha, como toda a humanidade. Na Itália, Schnaiderman lutou pela democracia, enquanto no Brasil havia a ditadura. E ele, que condenava todos os autoritarismos, até mesmo os atuais, vivia de inconformismo por saber que as duras batalhas da FEB eram ridicularizadas. “As pessoas não se lembram de que o Brasil participou da Segunda Guerra.” No ano passado, lançou Caderno Italiano, no qual deu sua visão dos combates, desta vez intitulando os combatentes, sem mesclá-los ficcionalmente como fizera em um dos mais belos textos da literatura brasileira, Guerra em Surdina.
Nos últimos tempos, revia suas traduções e esboçava as memórias da infância ucraniana, aquelas que lhe permitiriam contar a vida a partir de suas andanças em Odessa e seu testemunho, aos 8 anos, das filmagens de O Encouraçado Potemkin. Alguns meses antes de morrer, ainda tomava sua cachaça, recolhia a correspondência por baixo da porta, andava acompanhado pela Higienópolis onde morava e silenciava, os olhos sorridentes, diante de tudo o que lhe dissesse, com inteligente formosura, a esposa Jerusa Pires Ferreira.
A seguir, a íntegra da entrevista realizada com o escritor e professor em sua residência paulistana na tarde do dia 4 de setembro 2015, por ocasião do lançamento de Caderno Italiano.
Por cerca de uma hora e meia, Schnaiderman falou com calma e pausadamente, empenhado em ressaltar a participação brasileira na guerra. Sentado em uma cadeira na sala repleta de livros de seu apartamento, não se recusou a responder uma pergunta sequer.
Meu filho Bernardo Tagliari, Boris Schnaiderman e eu em foto que Carol Carquejeiro realizou durante a última entrevista que o professor me deu, em setembro de 2015
“Caderno Italiano”, seu novo relato sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra, tem o formato documental, ao contrário de “Guerra em Surdina”, de 1964. Quanto tempo de escrita o novo livro lhe tomou?
Pouco tempo. Cerca de um ano e meio. Quando escrevi Guerra em Surdina, havia limitações. Certas pessoas ficariam muito ofendidas, outras viriam a público desmentir o que escrevi. E coisas assim bem desagradáveis. Mas agora, passados esses anos todos, quase todo mundo já morreu, não há mais impedimento. E eu resolvi vir a público principalmente porque está tudo muito esquecido. Demais. Demais. As pessoas não se lembram de que o Brasil participou da Segunda Guerra Mundial. Os jornais noticiam quando há as datas e tal, mas o povo de modo geral esqueceu. Era uma contradição lutar pela democracia lá fora enquanto havia ditadura aqui. Fiquei perplexo porque esperava um desastre completo desta participação brasileira. Os soldados não tinham motivação para lutar. No entanto, lutaram. Uma coisa estranhíssima. Desempenharam muito bem, quando parecia que tudo iria resultar num desastre. E não.
Foi difícil tomar a decisão de participar dessa guerra?
Eu quis lutar. Foi antes ainda da minha convocação, não é, a minha vontade de ir para a guerra. Eu estava completamente arrasado com as notícias que chegavam da Europa. Já se sabia daquilo que depois chamariam de holocausto, aliás um nome muito inadequado para o que houve. A palavra holocausto significa o sacrifício a uma divindade. E esse sacrifício era em prol do quê? Não tinha um objetivo. Então, o nome me parecia completamente inadequado. Aliás, na França houve todo um movimento de intelectuais contra a designação desse massacre como holocausto.
Como o sr. avalia a participação brasileira na Segunda Guerra?
Fiquei perplexo porque esperava um desastre completo. No entanto, os brasileiros se saíram bem, realmente bem. Agora vêm essas conversas de que afinal de contas era uma linha de frente secundária, nem Stalingrado, nem o desembarque na Normandia… Tudo bem, mas não tinha nada de secundário naquele combate! Afinal de contas, um exército alemão foi imobilizado na Itália, uma coisa importante. Aliás, o fato de existir uma frente na Itália facilitou o desembarque aliado na Normandia.
A FEB teve algumas derrotas. O primeiro ataque ao Monte Castello resultou num fracasso completo, mas houve poucos insucessos. Incrível o que se conseguiu. A tomada de Montese, em abril de 1945, foi uma coisa extraordinária. Quer dizer, eu só participei calculando tiro. Mas os homens da infantaria lutaram de rua em rua e de casa em casa. Não se pode diminuir isso de modo nenhum. Eu continuo perplexo, sem compreender bem como foi possível que o combate se desse. Aqueles homens falavam mal da guerra, diziam que Getúlio Vargas tinha sido enganado pelo ministro Oswaldo Aranha, que nós havíamos sido vendidos por dólares (e era verdade). Eles tinham consciência disso, no entanto lutaram. Uma surpresa para mim.
A grande maioria dos soldados era da camada mais pobre da população. Os estudantes foram à rua pedir guerra na avenida, tal, mas na hora do vamos ver, eram bem poucos lutando. Havia alguns estudantes, claro. Eu fiz parte da Central de Tiro. No meu grupo de artilharia, havia vários estudantes convocados. Tínhamos uma situação concreta. Eu era um pacifista convicto, mas me convenci de que era necessário lutar.
Os soldados de divisões diferentes eram tratados de maneira semelhante por seus superiores durante a guerra?
Na artilharia, a diferença entre o soldado e o oficial era muito mais sentida. Na infantaria, a relação entre soldados e oficiais era muito melhor. Na artilharia, havia assim como que uma barreira entre os oficiais e os praças. Uma coisa que vem de longe, não é? De uns se acharem superiores aos outros. Não vinha de alguma especialidade exigida de quem calculava. O cálculo de tiro era uma função como outra qualquer.
Em“Caderno Italiano”, o sr. menciona uma discriminação importante no exército americano. Como a percebia?
No exército americano, havia um racismo entranhado. E no nosso, não. Os americanos nos diziam: “Vocês é que estão certos. Brancos, amarelos, negros, mulatos, todos misturados. Vocês é que têm razão! Mas nós não podemos. Nós não conseguimos. Para nós, negro não é gente.” Uma coisa terrível. Estivemos muito em contato com a oitava divisão negra americana, mas nessa divisão negra americana os oficiais eram brancos. Isto por si acarretava uma situação deprimente para nós. Admiro muito o escritor Rubem Braga. Gosto muito das crônicas de guerra dele, porque conseguiu captar com muita sensibilidade as situações humanas. Mas ele não menciona a questão racial no exército durante a Segunda Guerra. Nunca conversei com o Rubem Braga sobre isto. Só o vi uma vez, de longe, durante os combates. Eu fui o primeiro a calcular um tiro de artilharia na minha divisão. E o Rubem Braga estava lá para ver.
Tem certeza de que o cálculo de artilharia era uma coisa simples de fazer?
Muito simples, bastante simples. Era um cálculo feito na base das curvas de nível. Eu ficava diante de uma prancheta. Nela, estava o mapa da região, com as curvas de nível. E o cálculo era feito na base dessas curvas. Não usava réguas de cálculo, calculava no papel mesmo. O exército brasileiro teve toda uma formação pela missão francesa que veio ao Brasil. Nossa organização era baseada no exército francês. Mas depois fomos incorporados ao exército americano e tudo mudou. Em tempos de paz, no Rio de Janeiro, fomos treinados para usar o canhão de 75mm, adotado pelos franceses. E nesse sistema era o capitão comandante da bateria quem fazia os cálculos. Quando fomos incorporados ao exército americano, eles passaram a ser feitos por uma central de tiro. Um grupo de sargentos e cabos, comandado por um capitão, calculava. Mas no nosso sistema, o francês, éramos nós mesmos a fazer esses cálculos. Os americanos trabalhavam sob uma organização quase empresarial. A gente foi preparado de um modo no Brasil e deparou com tudo diferente na guerra. Fomos aprender lá mesmo. Improvisando.
O exército brasileiro oferecia a possibilidade de leituras aos soldados nos intervalos dos combates? O sr. escreveu cadernos naquele período?
Nós recebíamos alguns livros, sim. A Legião Brasileira de Assistência, organização presidida pela mulher do Getúlio, oferecia livros. Poucos, geralmente. E era muito individual, isso: ela ajudava uns, não ajudava outros. Por meio desses livros pude me interessar por Alphonse Daudet, para depois me decepcionar com suas posições, que conheci mais tarde. De Knut Hamsun, eu também gostava muito, e novamente só depois soube que aderira ao nazismo. Fiquei perplexo com as posições do Daudet, com o que aconteceu com o Hamsun.
E eu não conseguia escrever durante a guerra. Comprei um caderno e fiquei anotando umas coisas, mas por muito pouco tempo. Não valeu de nada.
Nem desenhei. Sou muito ruim de desenhar.
Pode não ter valido nada naquele momento, mas valeu depois, por certo.
Acho importante contar o que aconteceu. Acho importante lembrar. As pessoas saberem o que foi. Um livro sobre os acontecimentos não é uma coisa fácil de ser feita. Guerra em Surdina, eu levei muito tempo para colocar no papel, saiu 19 anos depois de eu ter voltado da guerra. Eu tentava e não vinha nada. A ideia era escrever assim que o conflito acabasse, mas eu não conseguia. Eu tinha lido muita literatura de guerra, mas minha experiência era completamente diferente de tudo o que eu havia lido.
O sr. sente falta de escrever ficção? “Guerra em Surdina” é um dos mais belos romances da literatura brasileira.
Uma tentativa de romance… Eu sempre quis fazer ficção. Mas não sou ficcionista. Minha autobiografia me arrasta mais.
Sua infância não valeria um livro?
Tenho vontade, sim, de escrever sobre a infância. Estou escrevendo agora. Eu tive esta sorte. Estou com 98 anos e continuo capaz de fazer as coisas. Então houve essa vantagem. Estou tentando contar minha vida desde a infância. Estou tentando, mas é muito difícil, porque aparece o problema, não é? Mostrar o podre das pessoas ou não mostrar?
O sr. deve ter muitas histórias a oferecer, como aquela em torno de seu testemunho sobre um clássico do cinema, aos 8 anos.
Acho que sou o único sobrevivente das filmagens de O Encouraçado Potemkin. Todo mundo morre. As pessoas foram morrendo e eu sobrevivendo. Talvez seja o único sobrevivente daquela cena. Isto foi em 1925. Em Odessa, onde eu vivia. Acontece que as crianças em Odessa tinham muito mais liberdade e circulavam muito mais pela cidade do que as nossas. Não havia quase trânsito. As potências ocidentais estavam bloqueando a Rússia, quase não circulavam carros na cidade. Só os veículos coletivos. Agora, automóveis particulares, não havia. Simplesmente não havia.
Então existia muito movimento pelas ruas. Eu andava pela cidade toda. Gostava muito daquele espaço da escadaria de Odessa, entre a parte alta e o porto. E uma vez eu estava sozinho na escadaria quando vi um movimento estranho. Era a filmagem do Encouraçado Potemkin. De repente, aqueles homens atiravam os chapéus para o alto… E apareciam aquelas mulheres com umas toaletes que não se usavam mais, muito estranhas para mim. Não me lembro bem, mas devo ter visto o próprio Eisenstein. E o cinegrafista dele, que filmava, o Tisse. Mas me recordo mesmo é das cenas. Vi os chapéus atirados para o alto, aquelas damas todas lá, saudando os marinheiros revoltados. Aquelas damas em toaletes muito estranhas, não é?
Odessa era uma cidade diferente das outras?
A disposição topográfica de Odessa é semelhante à de Salvador. Fica num platô. E na parte baixa há o porto e as praias. Suas ruas são bem paralelas, planejadas pelo primeiro governador. É um pouco diferente de outras cidades russas. Digo russa porque era ucraniana, mas, para mim, era tudo Rússia… Eu só falava russo, em volta todo mundo falava russo. Quando ia à feira, ouvia a conversa dos vendedores numa língua que eu não compreendia. Era o único contato que eu tinha quando criança com a língua ucraniana. Toda a vida restante se passava em russo. Odessa é uma cidade praticamente russa. Mas quando eu chego à Rússia (até recentemente, porque agora não estou mais viajando), todo mundo me conhece como odessita, por causa do sotaque. Nasci em Úman, uma cidade relativamente perto de Kiev, capital da Ucrânia. Mas para mim era tudo Rússia.
Seus pais não ensinaram aos filhos a língua de família?
Em casa, meus pais não falavam a língua dos judeus da Europa Oriental, o iídiche. Exceto quando queriam que nós, eu e minha irmã Berta (que foi engenheira civil), deixássemos de compreender alguma coisa. Então eu fazia um esforço e acabava compreendendo, porque em casa só se falava russo. Eu me interessei pela literatura iídiche, mas sempre em tradução. Não tinha livro em iídiche em casa. Meus pais abandonaram a língua, sei lá, por inércia. Precisavam viver em um meio no qual todo mundo falava russo… Mas eu tinha uma avó, mãe de meu pai, que veio morar conosco e só falava iídiche com ele. Quase não se comunicava com a gente, só falava com meu pai.
E seu pai reagiu mal à sua opção por uma carreira literária.
Aconteceu o seguinte. Quando tinha uns 12, 13 anos, disse aos meus pais que iria estudar agronomia. Tinha uma fantasia com uma vida no campo, essas coisas. Vim para o Brasil quando tinha 8 anos, em 1926, e sentia muita saudade de Odessa. Mas depois, aos 15, passei por uma crise. Eu me abrasileirei completamente. Fiquei lendo literatura portuguesa e brasileira, romances, poesias, Machado de Assis, José de Alencar. E resolvi que não iria fazer mais agronomia, que me ocuparia de literatura. Escrevi uma carta para os meus pais, caprichei na redação o mais que pude. Disse que não queria mais ser agrônomo. E minha mãe me chamou para conversar. Disse que literatura era muito bom, mas que precisava ser feita nas horas vagas, aos sábados e domingos, de noite. E me contou que a pessoa necessitava ter uma ocupação rentável enquanto fazia literatura… Eis por que, para satisfazer a família, fui para essa coisa de agronomia.
O sr. só conversou sobre isso com sua mãe?
Não falei com meu pai, era tudo com minha mãe. Escrevi uma carta para eles, que não era a terrível carta de Kafka ao pai, pelo contrário, tinha o tom amistoso. E eu era bem mais criança… Muito recalcada, retraída… Criança imigrada era assim. Não falava com as outras. Cheguei aqui, as frutas eram diferentes, eu não conhecia banana, mamão, coco. E meus pais tinham saudade da Rússia.
Como a família veio parar no Brasil?
Acontece que meu pai era comerciante. No regime comunista, não havia muito espaço para ele, um homem hábil, com as costas quentes. Ele se dava muito bem com as autoridades. Mas se ele tivesse ficado, teria sido fuzilado. Porque aquelas pessoas que o protegiam, o favoreciam, foram todas fuziladas como trotskistas. Sua fuga não foi questão de habilidade. Aconteceu que ele tinha um primo, Pedro, que estudava na Escola Politécnica de Odessa. Estudava e trabalhava ao mesmo tempo, para ajudar a família. O pai dele faleceu e ele se tornou arrimo de família. Um dia, foi expulso da universidade por ser de família burguesa. Revoltou-se e resolveu emigrar. Emigrou sozinho até a fronteira com a Romênia, onde contrabandistas, mediante certa quantia, ajudavam a pessoa a ultrapassar a fronteira. Atravessou a fronteira com a Romênia, ficou quase sem dinheiro e conseguiu chegar a Viena. Lá, dormiu em banco de praça para não pagar hotel e foi correndo de embaixada em embaixada para obter um visto de entrada em algum país. Conseguiu um para o Brasil.
As pessoas saíam da Rússia com um destino em mente. E, para atingi-lo, conseguiam o que se chamava Passaporte Nansen. Diplomata norueguês, Nansen trabalhava para a Liga das Nações e providenciava passaportes para os que saíam da Rússia. Com seu Passaporte Nansen, Pedro veio para o Brasil, onde passou muitas dificuldades. Trabalhou na construção civil como pedreiro, mas conseguiu se firmar. E escreveu umas cartas entusiasmadas para nós.
Meus pais então resolveram emigrar para o Rio de Janeiro. Mas de modo diferente das outras pessoas, que em geral saíram fugidas. Nós saímos com passaporte soviético, de capa vermelha, com letras douradas, a foice e o martelo dourados. Depois, no Brasil, tive problemas com isso. Imagine usar esse passaporte durante o Estado Novo! Eu consegui a naturalização brasileira após muito esforço. Não tinha recursos, portanto não podia contratar advogado nem despachante. Ia pessoalmente de repartição em repartição, mas consegui. Todos na família conseguiram.
Minha naturalização saiu em 1941. Mas me formei engenheiro agrônomo em 1940. Para registrar meu diploma, precisava estar naturalizado e ter prestado serviço militar. Então tratei de me alistar. Eu podia fazer linha de tiro, que era um tipo de instrução mais suave, ou o quartel. Quis o quartel, me chamariam para lutar. Foi uma complicação. Eu morava em Copacabana e tentei me inserir nas fortalezas do litoral. Não me aceitaram. Só consegui ser aceito num quartel em Campinho, depois de Cascadura. Eu acordava às 4 horas da manhã, tomava ônibus, bonde e trem e chegava em Campinho. Fiz lá o curso de sargento e fui convocado à guerra como terceiro-sargento. Dei baixa como segundo-tenente. Fomos todos promovidos depois da guerra.
O sr. se considera próximo do marxismo?
Passei por um período marxista. O que me distanciou muito do movimento comunista foi o pacto germano-soviético, em 1939. Fiquei com muita raiva, aquilo me afastou por muitos anos, mas depois voltei.
O cinema em algum momento foi fidedigno em relação aos acontecimentos que o sr. presenciou na Itália durante a Segunda Guerra?
Tive um tio que dizia não acreditar no Roma, Cidade Aberta, do Roberto Rossellini. Uma bobagem muito grande, porque eu testemunhei o que o filme mostrou em 1945. Vi que os italianos lutaram contra o fascismo. Os partigiani realmente se empenharam a fundo, com grandes perdas humanas e tudo. Uma injustiça muito grande dizerem que não fizeram nada. Quando nós entramos no norte da Itália, ele já havia sido tomado pelos partigiani. Tenho a maior admiração pela contribuição dos italianos na luta contra o fascismo. E Roma, Cidade Aberta me pareceu fiel. Vi Paisà na época do lançamento, 1946, mas não me lembro bem dele. A população italiana estava arrasada. Uma situação de degradação completa. Quando chegamos em Nápoles, era trágico.
Qual é o seu sentimento, hoje, sobre a guerra?
A guerra, a gente não esquece. Neurose de guerra todo mundo tem. Quem passou por aquela experiência tem neurose de guerra, é inevitável.
Como o sr. escreveu “Caderno Italiano”? Ainda usa a máquina de escrever?
Escrevo a máquina, não aprendi computação, não consigo. Por quê? Qual é a vantagem? Até hoje existem oficinas para máquinas de escrever, e eu mando a minha para eles. Sabe que há muita gente escrevendo desse modo ainda? Tanto que a gente ainda compra fita de máquina. O computador mudou o tipo de correspondência, não é? É imediata. Hoje em dia quase não escrevo cartas. A Jerusa [Pires Ferreira, sua esposa] manda as mensagens pelo computador. Ela está completamente computadorizada.
O sr. ainda escreve cartas? Pensa em publicar sua correspondência?
Minhas correspondências nunca foram publicadas. Nem quero que sejam. Eu guardo todas as cartas que recebo, mas hoje em dia quase não escrevo cartas. Não posso me queixar. Fico trabalhando, fico escrevendo, lendo, de vez em quando saio, acompanhado de alguém. Acordo cedo. Recebo muito livro, inclusive não há espaço para tantos deles em meu apartamento. No momento, revejo traduções antigas. Traduções novas, não mais.