Fiz esta foto hoje de manhã por trás da vidraça de um café na praça Dom José Gaspar, no centro de São Paulo, onde moro.
Eu contemplava a estátua de Dante Alighieri à distância quando o sem-teto se aproximou do lixo, para vasculhá-lo, em sua fome.
Coloquei-o no enquadramento apenas porque fazia sentido a presença desse personagem forte, a expressar a miséria brasileira, diante da representação do escritor que nos relatou a perambulação da alma humana pelas profundezas, pela culpa.
Mas só depois de fotografar e de publicar a imagem no Instagram, sob a legenda “Dante vê”, fui capaz de entender (sempre em parte) o que fotografei.
Ao rever a foto horas depois de tirá-la, enxerguei nessas espadas de são jorge em primeiro plano as chamas do inferno.
Alguém olha desde o inferno para este ser!
Quem?
Talvez todos saibamos. Talvez todos tenhamos contribuído para que nosso semelhante chegasse a esse lugar.
O mais interessante para mim, contudo, não é exatamente essa constatação.
A foto me diz mais.
Ela fala de mim, igualmente, sob outra perspectiva.
Fala de minha procura, feita à luz do dia, diante do mundo e da minha consciência.
Eu estou do lado de lá, como num sonho.
Sou eu o miserável que procura saciar a fome, à semelhança elegante do meu personagem sem-teto.
Mas que fome é a minha?
O que procuro entre os vestígios deixados por outros seres humanos?
E que inferno me localiza, me observa?
É incomparável o que a gente encontra depois de olhar o que fotografamos.
As escolhas de composição e enquadramento, fazemos por instinto, num instante.
Mas esse instinto que formata a imagem, na verdade, nasce antes, de um acúmulo.
De uma meditação contínua sobre o que somos, da confusão imagética e de conhecimentos que assimilamos pela vida.
Amo a fotografia de rua porque ela me permite acessar esse inconsciente, com aparente racionalidade, num segundo.
Me ponho a ler o texto de um desses curadores/historiadores da arte que gostam de meter seu pitaco sobre fotografia.
A certa altura, o pensador diz que no trabalho de determinada fotógrafa “não se percebia nenhum cacoete da fotografia direta, por exemplo, ainda muito valorizada naquele período”.
Chego a ter pena.
Fotografia direta, “cacoete”?
“Ainda muito valorizada”?
Talvez esses críticos/historiadores/curadores não passem mesmo de avaliadores de mercado.
Me retratei nesta imagem há dois anos e poucos meses, antes de uma conversa que fiz a pedido do Instituto Moreira Salles, em São Paulo, sobre a obra da fotógrafa estadunidense Susan Meiselas.
Eu estava mais do que feliz naquele dia com o convite para falar ao público ao vivo, ademais no solo do museu que pra mim é um fundamento. Mas me sentia apreensiva também.
As conversas na biblioteca do IMS, eu percebia, não situavam muito o assunto fotografia como eu o via, antes se centravam nos temas desenvolvidos por seus realizadores – e quando o assunto é fotojornalismo, como no caso desta grande profissional, talvez não se pudesse nem devesse fugir deste enfoque, pois o assunto e seu viés dizem tudo sobre a grandeza política, a ética de um autor.
Ainda assim, me pus a falar sobre o que fazia sentido pra mim, não somente sobre a atividade de strippers nas caravanas daqueles anos 1970 que Meiselas acompanhou, mas também sobre a luz, as escolhas de um fotógrafo, o que o ampara, linhas, prontidão, sua formação visual, a construção de seu olhar.
Eu talvez não erre ao dizer que a conversa foi um sucesso, já que o público maravilhoso (muitos homens e mulheres da vida comum, velhos, jovens, alguns lindos amigos e a turma do educativo do museu, tão nova) estava aberto a ela, até ansioso por ouvir meus pensamentos, entender minha leitura da fotografia, influenciada que é, entre outras, pela obra e pela genialidade do fotógrafo-pensador paulistano Carlos Moreira.
E então, logo em seguida a este evento, veio a pandemia e anulou minha sensação de que eu poderia levar adiante meu intento, o de promover a modesta organização de um curso sobre a ação das mulheres artistas na fotografia, bem antes e bem depois de Meiselas. O IMS não me chamou para refletir sobre isto, até porque passou a haver uma onda de estudos acadêmicos sobre o assunto, e meu “orientador” (mais que isso, pai, irmão, amigo), apesar de ter sido um professor exímio na Escola de Comunicações e Artes da USP, não escreveu livros, não provou sua tese aos pares acadêmicos e muitos fotógrafos brasileiros ignoram o grande artista que ele foi.
É claro que, diante da derrocada de tudo, pensei em fazer algo por mim mesma, ainda mais em meio a esses tempos que provaram a serventia disciplinar do zoom, mas ainda não consegui. Não apenas porque me alimenta o calor das presenças físicas, mas porque não sei empreender negócios em meu nome como deveria saber. Ainda espero levar isso pra frente, contudo, assim como espero organizar um minicurso para os amigos interessados na comédia italiana, esta que foi tema do meu doutorado na História da USP.
Eu sou um pouco distante dos modos presentes de fazer as coisas, talvez não tenha a proatividade exigida, como eles dizem, mas sei que isto, mais que um problema, é uma circunstância que um dia chegarei a remover como quem estende as roupas no varal ou prepara a mesa pra comer.
Além do mais, a vida é esse risco todo mesmo, esse perigo que a gente sabe quem detectou, e não há como viver sem resistir.
As qualidades do meu pai como fotógrafo eram imensas. Imensas mas severas. Todos tínhamos de posar em nosso melhor estado pra ele. Porém, aqui, não foi possível que ele nos controlasse a este ponto. Meu irmão caçula dava seu primeiro passinho, com um ano, e a arrumação não iria funcionar! Foi também uma das únicas fotos que ele fez neste trecho de calçada estreita onde estava o prédio da rua Santo Antônio, para onde nos mudamos. E sobre mim? Eu era uma espécie de mãe alternativa do meu irmão. Mas me parecia com um menino da época, com meus cabelos repicados e meu short-e-camiseta. Me chamavam de menino também. “Ei, menino!” Eu não ligava. Menino era só liberdade.
Acabo de comentar com uns amigos daqui como rio e choro o tempo todo durante a vigência pandemente de meu país, como tudo fotografo (embora isto faça sempre), e como tudo quero ser, o presente, o passado, e como vejo um futuro, quem sabe, engordando (sem ser triste) a cada dia, e como tudo quero amar. Há quem não me entenda, quem não me veja, nem agora, nem antes, muito menos na imagem do que será, não importa, não os vejo nem entendo tampouco, eu que vivo ao lado deles. Perdoem a enxurrada de fotos, de auto-imagens, de desconcertos neste fluxo demonstrativo de nossas vidas que eram uma antes e agora são outras. Perdoem-me a ausência de outros rostos, perdoem que seja o meu. É um processo de cura e entendimento, quem sabe, e espero que o aceitem os que me têm amizade, talvez só eles, viva eles!, e que tudo viva em nós.
Meu Instagram é basicamente o que vejo. E para comemorar a publicação de número 10 mil, escolhi fotos aleatórias que tirei nestes últimos tempos.
Nem de longe será uma seleção das imagens que me representam. Muitas permanecem por aí, perdidas, porque não sei armazenar essas desimportâncias.
O indiscutível é que gosto de olhar. Um pouco, às vezes muito, fotografar me ajuda a suportar. Também diria viver.
Nos últimos dias, depois de um skatista abalroar meu pobre pé já calejado pelas ruas esburacadas, fiquei em casa repousando com minhas imagens. Separei mil delas, que um dia espero transformar em um caderno. Quem sabe ele faça surgir a sensação de que não estive à toa, de que por meio da fotografia conheci o mundo dentro de mim?
Revelava e ampliava os filmes em casa, no único banheiro de nosso apartamento alugado nos anos sessenta.
Isto quer dizer que, dependendo de como fosse, tínhamos de esperar pela revelação terminar ou pedir pra usar o banheiro do zelador.
Meu pai fazia as cópias em papel com um ampliador que ele mesmo construiu, no qual encaixava uma lâmpada philips. Se nela houvesse um logo desenhado, ele passava para o papel fotográfico. Não raro nós, os personagens, aparecíamos sorridentes sob o desenho da lampadinha nos álbuns da família.
As fotos, ele ampliava pequenas, do tamanho do negativo de sua flex tcheca, a Flexaret.
O papel fotográfico precisava ser controlado devido ao alto preço. Cortado em miúdos pedaços.
Nem por isso, contudo, meu pai deixaria de presentear com uma pequena cópia todo amigo ou parente que aparecesse numa fotografia que ele tivesse tirado.
Nos cliques de aniversário, seu flash era uma lâmpada que mantinha acesa sobre algum banco ou mesa.
E não só.
Meu pai pintava com um pincel algumas fotos pb, já que o filme colorido, mais caro então, raramente podíamos comprar.
Ele era também e principalmente um grande desenhista e pintava quadros, embora eu hoje raramente encontre as telas nas quais apareci bebê.
Tudo isto pra dizer que tive uma sorte danada.
Embora minha cama fosse o sofá da sala e minha mãe precisasse pedir açúcar na vizinha quando meu pai se via desempregado, sempre tivemos fotos pra curtir e livros de arte pra ler.
Então, não necessariamente o fato de uma família dispor de vários registros fotográficos significa que tivesse dinheiro de sobra pra gastar.
Na primeira foto, em meio às montanhas de seu retiro na Baviera, o chanceler Adolf Hitler abraça sorridente Rosa Bernile Niernau, com 6 anos de idade naquele 1933 em que ele ascendia ao cargo de premiê da Alemanha. A avó de Rosa era judia, mas, mesmo depois de descobrir o fato, Hitler se recusou a cortar laços de amizade com a menina. As flores sobre o papel fotográfico foram pintadas por Rosa, apelidada pelos nazistas de “a criança do Führer”. Hitler guardou a imagem tirada por Heinrich Hoffmann depois de inscrever, em seu verso: “A querida e considerada Rosa Bernile Niernau, Munique, 16 de junho de 1933.” A peça foi leiloada em Maryland no ano passado por 11,5 mil dólares e o colecionador, não revelado.
Na foto abaixo, de Sérgio Lima, Jair Bolsonaro sorri extasiado ao erguer nos braços Yasmin Alves, 8 anos, durante a visita que fez a sua casa na região de Estrutural, uma das mais pobres do Distrito Federal. A justificativa oficial para a visita, realizada neste abril de 2019 em que Bolsonaro completa três meses à frente da presidência do Brasil, é desfazer o mal-entendido de que anteriormente a criança tivesse se negado a cumprimentá-lo. Yasmin é negra, ele sabe disso e nós também.
Todo político faz fotos com crianças.
O político populista as utiliza para propaganda.
E só o tempo, ou a história, ensina o que eles decidiram propagar.
Oito meses antes de morrer, o dramaturgo editou na Alemanha Oriental imagens da guerra anteriormente publicadas por revistas como a “Life”, acrescidas por seus poemas-legendas
“Esta coisa dominou o mundo uma vez. Seus conquistados o superaram. Contudo, desejo que vocês não gritem de alegria por tal razão; o útero do qual isto rastejou permanece fértil.”
A faixa estendida neste 24 de abril de 2019 na praça Loreto, exato local de Milão onde o corpo de Benito Mussolini se viu exposto de cabeça para baixo, há 74 anos, renova os alertas à ameaça fascista. Na faixa, leem-se a frase “Honra a Benito Mussolini” e a assinatura “Irr”, abreviação de “Irriducibili”, nome da principal torcida organizada do time de futebol Lazio.
O último 20 de abril marcou também o aniversário de Adolf Hitler, nascido há 130 anos. E talvez, com seus atos, os torcedores fascistas do time mantivessem implícita uma vibrante comemoração às ideias do ditador, duvidoso “irmão” do Duce.
De qualquer maneira, na praça Loreto, neste 24 de abril que antecede em um dia a comemoração da libertação da Itália na Segunda Guerra, os fascistas usaram a saudação romana, simbólica do regime de Mussolini, para manifestar sua torcida pelo time, que hoje joga contra o Milão pelas semifinais da Copa da Itália.
O dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956) cansou-se de alertar sobre o perigo fascista, que atos como esse apenas demonstram ser permanente. Ele deixou sua Alemanha em 1933, ano em que o chanceler Hitler foi eleito, rumo à Dinamarca, à Suécia e depois à Califórnia, por conta da perseguição a suas ideias marxistas e a seu teatro libertador (e nos Estados Unidos se viu caçado pelos macartistas; mais tarde narro a vocês aqui no blog um episódio que ilustra a perseguição).
Brecht era também um apaixonado pela fotografia. Desde os anos 1920 compilava em grandes cadernos de esboço as imagens publicadas por revistas como a Life sobre a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial. Após o conflito, e vencendo a censura, o dramaturgo fez publicar em 1955, por meio de uma editora satírica da Alemanha Oriental, a Eulenspiegel, uma coletânea de 85 dessas imagens, intitulada “Krigsfiebel” (bíblia ou guia da guerra). As fotos exibidas pelo volume, editado em dezembro de 1955, oito meses antes de sua morte por ataque cardíaco, mostravam líderes nazistas e aliados, a destruição urbana causada pela guerra, os civis desolados e os inimigos mortos.
Contudo, ele acreditava que as imagens, embora potentes, não exprimiam sozinhas realidades complexas. Eis por que decidira acompanhá-las de “fotogramas”, como as intitulava, com uma densa, às vezes irônica, legenda em quatro versos. Como fazia em suas peças, coordenava então imagens e palavras de modo a provocar o leitor a pensar criticamente e a questionar seu conhecimento limitado sobre o fascismo e o capitalismo.
Quando as vendas do livro decaíram, Brecht o ofereceu a bibliotecas e outras instituições, sob a alegação de que a “louca supressão de todos os fatos e julgamentos sobre os anos de Hitler e a guerra” deveria ter um fim. Ele planejava acompanhar o livro de um outro volume, “Friedensfibel” (guia ou bíblia da paz), mas tal obra ficou inacabada.
A foto que publicamos aqui, retirada de seu livro-álbum e de autor ignorado, mostra Hitler em um pronunciamento de 1934. Na edição estadunidense, cujo título é “War Primer”, e que ganhou republicação em 2017, lê-se a legenda com o nome do ditador alemão e sua data de nascimento: “Hitler: 20 de abril de 1889”. Embaixo da foto, segue um fotograma em quatro versos, cuja tradução aproximada é esta, retirada do livro “Literature and Photography”, organizado por Jane M. Rabb e publicado em 1995 pela University of New Mexico Press:
“Esta coisa dominou o mundo uma vez.
Seus conquistados o superaram.
Contudo, desejo que vocês não gritem de alegria por tal razão;