Blog

O Anjo Torto, meu celular e eu

Não tenho religião. Mas tenho um anjo da guarda. Anjo Torto. Dou bastante trabalho pra ele desde sempre. Nestes meus dias de inferno astral, então, nem sei como o querido tem sido capaz de me suportar.

Sou desligada e preocupada ao mesmo tempo. Quero rir depois de chorar. Porto sacolas, mas preciso ser leve. Quero sair para cumprir meu dia enquanto fotografo a rua. Ou será o contrário?

Fotografia de rua me faz feliz. Me descubro e me reflito com a câmera do celular à mão. Tá, o Sebastião Salgado que vocês adoram dizia que celular não faz fotografia, nem fotografia vive da cor. Não ligo pra seu Salgado, nunca liguei, o que me torna uma extraterrestre ainda maior dentro do meu campo político de esquerda. Mas prefiro não me estender em assunto polêmico que, no fundo, nem me interessa.

Ninguém (ou quase) posa pra mim. Do fundo do coração, preciso revelar o escondido. Caço imagens à moda do que o Flávio Damm me ensinou, silenciosa como um gato ao me aproximar, rápida como um rato ao fugir, com a intenção de, ao fotografar, devolver ao mundo um pouquinho da beleza que vi, do erro que constatei, do humor de que desfrutei, da surpresa. Às vezes tenho sorte, às vezes não.

Hoje saí pra hidroginástica, no centro da cidade, com celular à mão. Na ida fotografei e na volta também. Tive sorte?

No retorno, comprei produtos orgânicos no instituto Feira Livre e fui à farmácia à procura de um remédio difícil de achar (semana passada quase morri de dor no ouvido direito, era infecção e fungo, eu estava bem lesada; hoje fui correndo à dermatologista porque uma pequena mancha áspera aparecera nas costas; a velhice não deixa ninguém em paz). Depois de não achar o remédio em duas farmácias, decidi colocar o fone de ouvido para ouvir o spotify, mas qual o quê? O celular não estava mais comigo, não.

Gelei porque não posso pagar um aparelho novo no momento, nem devo, o que mais me faltava? Não consigo viver bem sem ele, contudo. Voltei ao mercado à procura do objeto, quase certa de encontrá-lo, mas nada; nas farmácias, a chance ficou menor ainda. Corri para casa de modo a tentar fazer um tracking no bichinho, só pensando: vou perder aquela foto X! A Y terá ficado escura demais? Vivo com celular o tempo todo por causa do vicio fotográfico, melhor que gim e drogas, e quase não tenho outra razão para carregar o telefone – exceto escrever.

Fiquei triste, mas brava também. O que o Anjo tinha a dizer? O quê, seu Torto duma figa? Há dois anos, Anjo aparecera na minha vida depois de salvar meu celular. O bichinho havia caído diante da estação Sumaré do metrô. Foi resgatado por um jovem que atendeu minha ligação. Mais. Mês passado, um amigo da vizinhança achou meu RG no chão, me procurou no Facebook e gentilmente me entregou o documento em casa. Por que só agora fiquei na mão, Anjo?

Eis que adentro o saguão do prédio onde moro e o porteiro me recebe como se diante de uma equação matemática, coçando a cabeça.

– Dona Rosane!

Olho para a mesa de madeira escura da portaria e grito:

– Meu celular, João!

Estava ele ali, com um bilhete ao lado, no qual se lia: “Fábio, da Vivo, telefone tal”.

– Então, que coisa! Ele achou seu celular caído na rua, não conseguiu abrir porque a senhora bloqueou a tela. Daí – o cara é da Vivo, né? – ele foi até a patrulha da Polícia Militar na avenida Ipiranga, que destravou o aparelho. Ali eles acharam o telefone do seu marido, ligaram e o moço da Vivo veio entregar pra senhora!

Anjo, mil desculpas. Anjo amado. Anjo de mon petit coeur!

Resumindo a história, virei atração no prédio. Contei a história pros coletores do lixo e eles ficaram parados diante de mim por muitos segundos, sorrindo de cabo a rabo. O zelador ligou pro meu marido, orgulhoso de um policial ter aparecido à porta junto com um moço (da Vivo!) trazendo um celular pra sua senhora. O porteiro da tarde, já informado, acredita que sou boa na vida, ou o Anjo não me ajudaria. O vigia do condomínio veio me ver de perto.

Sim, sou boa na vida, Junelson! Só posso ser. Embora isso não mude nada no mundo mau, meu Anjo Torto vai fazer bonito.

Agora, que história é essa de a PM abrir o celular da gente na hora que quiser?

sem idade

o youtube mostra o funeral do mujica.
vontade de chorar.

a menina renad, de gaza, sorri famélica no Instagram.
choro de verdade.

o que os governantes fascistas terão feito aos craqueiros sem-teto desaparecidos do centro de são paulo?
meu punho se fecha.

leio críticas (como se fossem balas) atiradas ao comportamento de janja.
peço calma?

não tenho mais idade para a humanidade.

mas eis meu problema.

insisto em viver.

O épico humorístico dos vinténs

 

Um dos maiores diretores da comédia à italiana, Mario Monicelli encenou pequenos anti-heróis incapazes de realizar as burlas em que se empenhavam

 

O diretor italiano Mario Monicelli,
atento à busca pelo anti-herói
moderno sem lugar no mundo

 

Mario Monicelli dirigia para a frente sem largar o retrovisor. Atrás dele vinham velozes as farsas mudas de Harry Langdon, Charles Chaplin ou Buster Keaton, projetadas nos cinemas barulhentos da infância, e também as peças da commedia dell’arte que, renascidas com sucesso em teatros empoeirados de sua juventude, pintavam tipos cômicos universais. Roteirizado coletivamente de modo a compor uma espécie de sucessão de quadrinhos em página de jornal, este cinema pleno de gags e diálogos rápidos supunha um espectador do palco de variedades na sala de projeção. Sua cinematografia de amplos contextos, planos-sequência, raros closes e largos espaços ao ar livre, nos quais o fundo da ação multiplicava significados, apontava para o futuro neorrealista.

 

Ele que frequentemente reinventou a própria história ao dizer que nascera em Viareggio em lugar de Roma (além disso, às vezes falseando a idade em um ano, ao brincar ter aparecido no mundo em 15 de maio de 1916, não em 16 de maio de 1915) enxergava seu trabalho como uma contribuição ao neorrealismo, um gênero de grande importância que tivera público pequeno e durara pouco. Admirava o inventor de tudo, Roberto Rossellini, sua naturalidade ao conduzir as histórias entre o drama e o humor, como se elas seguissem, na tela, o fluxo da vida. Por meio de Rossellini buscou sua verve, uma linguagem de apelo comercial que pudesse fazer a comédia avançar como nunca antes, adicionando-lhe um tom crítico-dramático, às vezes trágico.

 

Monicelli começou na indústria manejando claquete, depois de ganhar um prêmio como realizador iniciante em Veneza, aos 20 anos. Passou a roteirista e começou a dirigir na companhia de Stefano Vanzina, o Steno, os filmes do maior cômico italiano, Totò. No final dos anos 1940, Monicelli já conduzia os próprios trabalhos, cujos roteiros elaborava durante longos encontros, às vezes em restaurantes romanos, com a amiga Suso Cecchi D’Amico e os companheiros saídos do jornal humorístico “Marc’Aurelio”, como Agenore Incrocci, o Age, Furio Scarpelli, Marcello Marchesi e Vittorio Metz.

 

Nascido de tal explosão coletiva, o fazer inovador de Monicelli era uma espécie de contradição, porque, ao acender as máscaras da comédia clássica, ele despia a sociedade contemporânea de seu respectivo mascaramento social, demolindo preconceitos e engodos, exatamente como se estivesse na metade do século 16, quando a commedia dell’arte apareceu na Itália. Rir para castigar os costumes era desejável, mas, em seu caso, servia também para reconstruir um país devastado pelo fascismo. Um pouco à moda de Pier Paolo Pasolini, o cineasta amigo com quem jogava futebol, Monicelli construiu a mitologia de um anti-herói moderno sem lugar no mundo. Este protagonista era um malandro iludido, um italiano médio sedento de arranjar-se durante o boom econômico do pós-guerra e frustrado ao constatar que o sistema tudo transformava em mercadoria, até ele próprio, com a mal disfarçada intenção de destruí-lo.

 

Vittorio Gassman, Tiberio Murgia e
Marcello Mastroianni em “Os Eternos Desconhecidos”, de 1958: uma paródia que fundou o
movimento cinematográfico
commedia all’italiana

Exemplar entre as obras dessa corrente, “Os Eternos Desconhecidos” parodiava em 1958 o filme de assalto “Rififi”, um sucesso dirigido pelo estadunidense Jules Dassin três anos antes. A paródia de Monicelli não apenas inaugurava uma trajetória mundial de filmes sobre assaltantes trapalhões. Principalmente, fundava um gênero humorístico capaz de fazer algo jamais realizado pelo neorrealismo: uma crítica social duradoura e popular ao establishment antes que a televisão se impusesse no final dos anos 1970 e enfraquecesse todo o cinema do país.

 

“Os Eternos Desconhecidos” lançava assim a “comédia à italiana”, intitulada ironicamente deste modo, no início, pela imprensa que desejava depreciá-la, e depois assumida como designação por seus artífices, perfeita para caracterizar um enfrentamento cômico radical tão peculiar ao país. O fogo das catarses não era obrigatório nessa corrente. Em seu lugar, havia um humor frio que, ao contrário de esquentar a plateia, chiava ao ser jogado no lago gelado, segundo uma imagem construída décadas antes pelo dramaturgo Luigi Pirandello. Na comédia à italiana, portanto, buscava-se não a risada a qualquer custo, mas a reflexão humorística.

 

O humor frio nascido em Monicelli espalhou-se por obras de escritores, músicos, atores, diretores e fotógrafos empenhados em sofisticá-lo durante três décadas. Contudo, apesar desse sentido evolutivo, as leis da comédia à italiana já estavam descritas no filme inaugural. Em “Os Eternos Desconhecidos” inexiste o final feliz porque a competência dos personagens em abraçar a burla é menor do que aquela exigida para a conclusão bem-sucedida do empreendimento. A perseguição atrapalhada desse objetivo resultará em morte, encenada na história da comédia pela primeira vez. Com roteiro de Age e Scarpelli, “Os Eternos Desconhecidos” serve-se de comédia física, além de usar estereótipos dialetais para provocar uma reação no espectador. Importante notar que todas as situações vêm narradas sob a perspectiva realista. Nada do que acontece numa comédia à italiana parecerá estranho à vida.

 

Gassman (centro), entre Mastroianni e Carla Gravina em “Os Eternos Desconhecidos”: Monicelli
descobriu o ator para a comédia neste filme

Vittorio Gassman interpreta aqui seu primeiro papel cômico, e a convite de Monicelli, que intuiu o potencial do ator dramático para o gênero. A caracterização de seu pugilista incapaz de ganhar uma luta incluiu um recurso de maquiagem que diminui a testa e dá os contornos faciais da estupidez. Ademais, o personagem reitera sua capacidade “científica” de planejar um assalto, o que provoca um contraste humorístico constante nas situações desenhadas, todas a provar o contrário do discernimento técnico que o pugilista acredita ter.

 

A relação de atores a cercá-lo é extraordinária. Marcello Mastroianni vive um fotógrafo fracassado, terno e mal-humorado, cuja mulher presa não pode cuidar do filho dos dois e lhe designa a tarefa, considerada imensamente difícil por ele. E de que modo quem não sabe cuidar de um bebê fará sua parte no assalto? Enquanto planeja o golpe, o personagem de Renato Salvatori, recém-saído do orfanato onde estão suas “três mães” funcionárias, tenta aproximar-se da siciliana vivida por Claudia Cardinale, em seu primeiro papel no cinema. Contudo, é impedido pelo irmão da jovem, interpretado por Tiberio Murgia, um garçom da Sardenha que Monicelli levou ao cinema para interpretar o siciliano patriarcal sem noção. Carlo Pisacane, esfomeado e velho, concretiza o ambiente miserável, subproletário. E Totò surge como o bandido “experiente” capaz de instruir o bando a arrombar “cientificamente” o cofre.

 

A periferia de Roma está diante de todos, como no neorrealismo, vista a partir da laje de um prédio onde Totò espalha seus ensinamentos impagáveis. É um filme de fotografia em preto e branco belíssima a cargo de Gianni di Venanzo, que depois deste filme fotografou, entre outros, “O Eclipse”, de Michelangelo Antonioni, e “Oito e Meio”, de Federico Fellini. O fracasso, sendo pobre, revela-se nobre nesta farsa que inclui o jazz instrumental de Piero Umiliani a evocar, de forma irônica, a atmosfera sofisticada do filme original de Dassin.

 

Alberto Sordi e Vittorio Gassman
em “A grande guerra”, vencedor de
Veneza, 1959: heroísmo tardio e morte em
um filme humorístico boicotado
pelo Exército italiano

Não é diferente a revolução provocada por Monicelli quando faz avançar seu grupo cômico rumo ao grande conflito mundial iniciado em 1914. Em “A Grande Guerra”, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e vencedor do Leão de Ouro de Veneza em 1959, ao lado de “De Crápula a Herói”, de Rossellini, os precários soldados vividos por Gassman e Alberto Sordi querem se dar bem, mas estão em lugar e hora errados, jogados à má sorte e à falta de comida, igualmente incapazes de vencer o frio, como o empreendimento bélico lhes impõe. Desde o anúncio de sua feitura por um cineasta humorístico, o filme revoltou o Exército italiano e Monicelli mal pôde usar equipamento real durante as filmagens. Contudo, as máximas gags construídas pelos roteiristas Age e Scarpelli permaneceram, acompanhadas pelo heroísmo tardio dos soldados e pela morte.

 

Morrer foi também inevitável cinco anos depois, quando o cineasta construiu sob atmosfera documental e máxima dedicação de Marcello Mastroianni a epopéia do fracasso de liderança durante as primeiras greves do Piemonte, no final do século 19. A partir do cenário real de uma fábrica ainda existente daquele período, o fotógrafo Giuseppe Rotunno evoca em preto e branco as primeiras capturas das câmeras fotográficas. Era um dos filmes que Mastroianni mais amara fazer, injustamente excluído da competição em Veneza por seu diretor Luigi Chiarini, cineasta e crítico de origem fascista que, imiscuído nas hierarquias cinematográficas de Benito Mussolini, desentendeu-se com Monicelli ainda nos anos 1930.

“O Incrível Exército Brancaleone”, o maior sucesso comercial de Monicelli, lançado em 1966: uma farsa histórica que o grupo Monty Python parodiou

 

A saga de Brancaleone, contudo, talvez seja a mais explícita entre estas ao encenar, por meio da farsa histórica, um mal-estar existencial vivido desde sempre na “península” (nos últimos anos de vida, Monicelli se divertia em dizer que o seu não era um país, mas um acidente geográfico, visto que não soubera operar revoluções). De todo modo, construída pelos mesmos Age e Scarpelli como paródia medieval, esse épico do fracasso surgiu em 1966 para acrescentar humorismo reflexivo às novelas de cavalaria. Não à toa o grupo britânico Monty Python parece proceder a uma paródia dessa paródia nove anos depois, no filme “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, criando gags a partir de situações semelhantes, como o atravessar de pontes, a caverna guardada por um animal feroz ou os assassinatos desenfreados até que o cavaleiro se surpreenda ao chegar onde a virgem se esconde.  

 

Em “O Incrível Exército Brancaleone”, Monicelli novamente reencena um grupo de falidos diante de uma tarefa maior que seu tamanho. Os eternos desconhecidos da vez buscam a terra prometida espiritual enquanto mergulham na tentação de resgatar regalias terrenas. A fotografia de Carlo di Palma, exímia nos tons primários vivos, e o figurino de Piero Gherardi inspirado nos filmes de samurai de Akira Kurosawa contrastam com a falta de rumo dos personagens, aumentando assim o efeito cômico já tão bem encenado pelo cavaleiro bastardo de Gian Maria Volonté, o judeu sem posses de Carlo Pisacane e o burro brutamontes que Folco Lulli interpreta. A língua falada por eles é também uma construção. Monicelli a solicitou a seus roteiristas a partir de uma mistura de variações dialetais contidas nos versos de cavalaria dos anos 1000.

 

No início, ao perceber que não entendia direito o que diziam os falantes da nova língua, o produtor Mario Cecchi Gori supôs que o público também se confundiria e quis declinar das filmagens. Monicelli então propôs que o produtor não lhe pagasse cachê, apenas uma futura participação nos lucros de exibição, e continuasse produzindo o filme, o que Gori concordou em fazer. O acolhimento popular resultou no maior sucesso comercial da carreira de Monicelli. Um diretor olhava para a frente sem se esquecer do retrovisor.

 

Quatro anos depois de muita insistência, desta vez por parte do produtor, saía “Brancaleone nas cruzadas”, jogo melancólico no qual o cavaleiro interpretado por Gassman enfrenta a Morte. Não à toa, ali, ela aparece representada por Monicelli de maneira tão risível quanto desafiadora. Na infância, o futuro diretor fora o primeiro da família a presenciar o corpo inerte do pai Tomaso, jornalista, editor e escritor que se suicidara no banheiro, em 1946. Mas nos seus filmes os funerais possibilitaram deliciosas situações cômicas. Monicelli desdenhava da velhice, que dizia não conhecer, e das doenças, jurando jamais haver contraído um resfriado. Diretor de sete dezenas de filmes, escritor de mais de uma centena, atirou-se do quinto andar de um hospital romano em 29 de novembro de 2010, aos 95 anos, justamente quando iria dar início ao tratamento contra o câncer na próstata, sua primeira doença grave. Morreu quando chovia. Ou como diria um de seus netos à irmã mais nova, Monicelli abriu as asas para voar até o céu, para o futuro que ninguém mais, exceto ele, pudesse buscar.

A nova arma do agro é a indústria cultural. Que tal termos a nossa, Lula?

Trupe Benkady apresenta “Nimba”
na Liberdade, em março de 2018

Sou Lula 3 até o fim.

Porém me aborrece sua gestão cultural, por variadas razões.

Como explicar que tenha ignorado a cultura do campo, por exemplo?

Por que não designou um representante do MinC para debater política cultural na Feira Agrária do MST, hoje em São Paulo, apesar dos insistentes pedidos da organização do evento?

Presente a uma mesa-redonda à qual também  compareceu o músico, dançarino e pesquisador Antônio Nóbrega, a líder do MST no Pará Maria Raimunda César de Souza foi na veia: o governo não esteve lá porque sua política pública para a cultura inexiste no campo.

E mais. 

Segundo Raimunda, o agronegócio não precisa mais dar tiros no peito dos sem-terra o tempo todo. Ele já entendeu que matar um militante não mata sua ideia. Sua arma agora chama-se indústria cultural: basta que ela destrua um patrimônio imaterial de gerações para que o trabalhador não se reconheça em comunidade e vá procurar pertencimento em outro lugar-armadilha.

(Resumindo, Gusttavo Lima na Globo destrói o homem do campo de forma mais eficiente que um lança-chamas.)

O que falta ao governo, diz Nóbrega, é construir uma política cultural popular de fato, longe dos balcões de negócio. Sem essa orientação geral, vai ser muito difícil assegurar uma corrente de culturas populares, já mantida a muito custo por gerações de populações subalternizadas.

Fiquei muito tocada por esse debate, que em verdade parece eterno no Brasil. 

Se perdermos a cultura, perderemos a chance real de fortalecer nossa democracia e torná-la duradoura.

Que tal dar ouvidos ao MST também no campo cultural, Lula?

O tempo, o vento, o Piauí

O piauiense Edvaldo Pereira da Silva:
panos célebres na praça Dom José Gaspar

No caminho para a ginástica das terças-feiras, esta que hoje nem mesmo haveria (a memória, como de uso, me traiu), deparei mais uma vez com os panos coloridos ao vento, amarrados na grade do respiradouro do metrô. Panos muito famosos. Às vezes são apenas eles, às vezes, a tenda do morador que constrói a instalação. Frequentemente ele deita por ali para se refrescar. O importante, me parece, é que tudo infle e cresça a caminho do céu.

Eis uma atração na praça Dom José Gaspar paulistana que nunca me animei a fotografar, eu que gosto de espiar, pela modesta câmera de telefone, apenas o que normalmente não se vê. Mas hoje foi diferente, porque a instalação vinha retumbante. Azul, amarelo, verde e branco, sim, como o Brasil. Normalmente nos esquecemos desse branco que quer dizer não sei o quê em nossa bandeira conspurcada, e desse azul do céu. Como eu jamais havia visto essa combinação de cores ali, parei para olhar.

O branco à frente: às vezes nos esquecemos
da cor na bandeira conspurcada

Ao lado da ventania, apareceu-me o autor. Edvaldo Pereira da Silva, um homem de olhos claros e elegância natural, tem 49 anos e está em São Paulo há trinta. É soldador, mas há três anos, sem emprego, virou um sem-teto da praça, a morar com seus panos e cão sob uma marquise do prédio na rua Bráulio Gomes. Edvaldo se aproximou e me orientou a fotografar seu trabalho, que intitula “Arte sobre o vento”, com o fundo das árvores. (Pode ser “Arte sopra o vento”, um título ainda mais bonito. Edvaldo não tem os dentes da frente e fala rápido, e eu me envergonhei de pedir que repetisse o nome da instalação.)

Ele ganha a vida como artista de rua de obra única, mas sempre variada, a depender dos panos que lhe dão. A gente admira seu trabalho e lhe dá o dinheiro que puder. Ração pra cachorro também é bem-vinda. Como se trata de um homem articulado, perguntei-lhe por que não tentava um novo emprego como soldador. Poderia conseguir um lugar pra morar. Respondeu-me que não. Era melhor trabalhar nisso que lhe dá prazer do que em certos empregos por aí.

“De Floriano??”

Disse-me ser do Piauí. Surpresa, contei-lhe que minha mãe nasceu em Teresina e que, durante a infância e a adolescência, minhas férias eram piauienses. “Em Teresina?”, perguntou. Disse-lhe que não, que ficávamos em Floriano. “Floriano? Sou de Floriano!”, respondeu, sem acreditar (o pequeno vídeo abaixo mostra sua reação). Eu ri muito, o que não chega a ser novidade. Gosto de gargalhar, e alto. Ele sorriu bastante também. 

Ao saber que eu conhecia Floriano…

A coincidência, contudo, pareceu-lhe tão extraordinária que ficou me testando. “Rio Parnaíba, certo?” E eu: sim, a gente passeava no cais e comia no restaurante Flutuante. “Do outro lado do rio, ficava Barão de Grajaú?” E eu: isso, no Maranhão. “Sabe aquela torre imensa? Eu pulava do alto, direto no rio.” E eu: nem nadava nele, de medo da correnteza, nunca subi na torre, não!

Diante da obra, a expressão do autor

Ele nasceu no bairro do Matadouro e estudou até a quarta série na Unidade Escolar Djalma Nunes. Saber como foi parar na vizinhança a céu aberto talvez seja tarefa para as próximas vezes. Quis que eu fotografasse a instalação em sua presença, mas demorou bastante tempo para acertar os panos em ascensão, sua obra como deve ser. Tudo leva tempo, tudo o tempo leva. Mostrei-lhe minha foto tirada no cais, durante a adolescência, e ele hesitou em atestar veracidade. “Mas no seu tempo devia ser mesmo assim.” 

Na adolescência, posei no cais à frente
do Restaurante Flutuante, em Floriano: o rio

Parnaíba separa a cidade piauiense de
Barão de Grajaú, no Maranhão

No dia seguinte…

O crepitante Carax, em duas lições

O filme de Leos Carax que será precedido de um curta de Alice Rohrwacher e JR, a partir de 17 de abril

“Não sou eu” talvez resuma Leos Carax. Este seu documentário de 2024, em exibição no IMS Paulista, no IMS Poços de Caldas e no Cine Arte UFF, em Niterói, a partir de 17 de abril, precedido do curta de Alice Rohrwacher e JR “Alegoria urbana” (no qual Carax também atua), apresenta-se como chave interpretativa para a obra do diretor francês de 65 anos. 

Realizado para uma exibição jamais concretizada pelo Museu Pompidou – e que perguntava “onde está você, Leos Carax?” -, o filme, exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, outubro último, apresenta o cineasta à sua maneira poética. Não sendo um inventor, mas um mestre (isto se aceitarmos as categorias determinadas aos artistas por Ezra Pound), Carax espelha e arredonda o cinema de arestas de Jean-Luc Godard, este sim o criador de uma nova trajetória cinematográfica, cuja voz aparece em um trecho deste documentário solicitando-lhe um encontro.

Diretor de “Os amantes de Pont-Neuf” (1991), Carax escondeu a narrativa tumultuada da nouvelle vague em um invólucro de clareza fotográfica e argumentativa. Foi um filósofo do amor. E também, como se autodefine neste documentário, um heterossexual e judeu do século XX que buscou a liberdade e a igualdade, a seu ver escassas na Europa dos Le Pen, naquele Israel de Netanyahu, na China de Xi Jinping, nos EUA de Trump ou na Rússia de Putin. 

Carax, por isso mesmo, não esteve em nenhum lugar – ou, pelo menos, não em um novo lugar. A sua perspectiva foi a de revisitar os lugares já percorridos, acrescentando-lhes um espírito de época tantas vezes indesejado. Perseguidor que advoga o déjà-vu, Carax defende repetir planos como recurso para construir alegorias do presente. O documentário, em que ele também cita trechos de suas obras, refaz uma estética tardia de Godard: cenas de arquivo do cinema e do jornalismo colam-se a palavras e letreiros, formando um mosaico poético-reflexivo de efeitos crepitantes.

Iria tudo muito bem se sua narrativa não contradissesse um dos princípios do cineasta, exposto no documentário: o de que o belo contém a imperfeição. Por que então Carax não abraça as camadas reflexivas pontiagudas que elevam a beleza do cinema de Godard? Se um rosto é belo justamente por conter a assimetria de uma pinta, por que retirá-la?

Carax cochicha a Naïm El Kaldaoui o sentido da
revolução, no curta “Alegoria urbana”

Carax parece bem melhor – ou coerente – ao atuar como um diretor canastrão de balé no curta “Alegoria urbana”, de Alice Rohrwacher e JR, também presente na 48ª Mostra. O seu personagem ensinará ao menino interpretado por Naïm El Kaldaoui o sentido da revolução: ela deverá mostrar aos acorrentados da caverna de Platão que as sombras às quais se acostumaram não são a realidade, antes constituem sua prisão.

Como a China construiu sua hegemonia mundial: minha entrevista com Giovanni Arrighi

Em 2008, o intelectual italiano aceitou conversar comigo sobre a perda da liderança estadunidense em favor daquela do país asiático: “A China adotou mudanças graduais sem aceitar a terapia de choque neoliberal”

Funcionário do correio leva correspondência
na garupa da bicicleta em Pequim, 2007
:
“O sucesso da China se baseia em saber que aquilo que fez não poderá ser seguido por ninguém. Os chineses insistem no respeito a suas soberanias e tradições, e isto parece confortador para todos. O que os outros realizarão a partir disto é problema dos outros”

Em 2008, o pensador italiano Giovanni Arrighi, então com 71 anos, lecionava Sociologia e dirigia o Instituto para Estudos Globais em Cultura, Poder e História da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Nas últimas três décadas, havia consolidado sua relevância intelectual ao estudar a crise da hegemonia estadunidense dos anos 1970 e as transformações político-econômicas mundiais das décadas seguintes, que passaram pela expansão vertiginosa da China até a crise financeira de 2008. No ano anterior, a editora Boitempo lançava no Brasil o último livro de Arrighi, “Adam Smith em Pequim: Origens e fundamentos do século XXI”, sobre a substituição dos Estados Unidos como líderes incontestes internacionais. Um livro incrível, um assunto e tanto sobre o qual conversar.

Propus entrevistar o professor milanês naquele junho de 2008 e ele aceitou. Era um cavalheiro paciente. Respondeu com muita gentileza às perguntas que lhe fiz por telefone e não recusou continuar nossa conversa no dia seguinte, depois de eu ter verificado a qualidade pífia da gravação, feita com o aparelho de terceira linha fornecido pela redação pagadora. Eu não sabia que Arrighi tinha câncer. Não teria insistido na entrevista se tivesse sido informada sobre a doença que o mataria no ano seguinte, vinte dias antes de completar 72 anos. 

Naquele momento, o mundo sofria outras convulsões. Barack Obama, presidente dos Estados Unidos por dois mandatos seguidos, entre janeiro de 2009 e janeiro de 2017, nem havia sido eleito ainda (Arrighi não dava sua vitória como certa). Lula, contudo, já exercera sua primeira presidência do Brasil (2003-2006) e cumpria um segundo período como presidente (entre 2007 e 2010). Eu entendia muito bem o privilégio da situação brasileira. Mas não teria sido possível, para mim, prever a virada fascista de que seríamos vítimas dez anos depois desta conversa, muito menos a necessidade de Lula voltar ao poder para garantir nossa existência democrática, 15 anos depois.

No livro “O longo século XX”, publicado em 1994, Arrighi desenvolvera o tema da progressiva recuperação do Leste asiático como centro econômico mundial, posição que havia perdido para o Ocidente pan-europeu (Estados Unidos incluídos) desde o século XIX. No alvorecer dos anos 2000, contudo, a China, já considerada líder regional por sua população, extensão territorial e relativa posição de força no Extremo Oriente, exibia um desenvolvimento econômico espantoso, atraindo a atenção mundial para sua caminhada rumo a uma posição hegemônica.

Àquela época, a trajetória estadunidense era inversa. Enfraquecidos pelo atoleiro iraquiano, à beira da depressão e com um fantástico déficit em transações correntes financiado pelo Japão e cada vez mais pela China, os Estados Unidos se viam vitimados por essa virada histórica. Ela acentuava a possibilidade de equalização do poder mundial entre o Ocidente conquistador e o não Ocidente conquistado, como previra o filósofo escocês Adam Smith no longínquo século XVIII.

A proposta investigativa de Arrighi em “Adam Smith em Pequim” era ambiciosa. Ele desejava identificar as conexões entre o que fazia da China a grande economia mundial até meados do século XIX e o que tornava possível sua transformação, em dias correntes, na protagonista de um fantástico ressurgimento econômico. 

A seguir, a entrevista.

Giovanni Arrighi durante palestra em Grahamstown, África do Sul, para a divulgação de seu livro
“Adam Smith em Pequim (Origens e Fundamentos
do Século XXI)”, em 2007:

“Os Estados Unidos não são mais hegemônicos. Por enquanto, são aqueles com o maior aparato militar, capaz de destruir qualquer país. E é precisamente por isso que podem dominar: porque têm um impacto sobre o mundo muito maior do que qualquer outra nação. Este domínio, contudo, não significa que os outros países necessariamente seguirão sua
liderança. Na verdade, eles
não a seguem mais”

Em seu livro “Adam Smith em Pequim (Origens e Fundamentos do Século XXI)”, o sr. desenha a perspectiva da decadência econômica estadunidense e a confronta com a ascensão chinesa. Contudo, diz que essa decadência estadunidense se anuncia sem a imediata perda de domínio político no cenário mundial. Como se processaria o domínio sem a hegemonia?

A hegemonia, da forma como a entendo, envolve liderança, capacidade de mobilizar outros países de acordo com uma agenda particular. Em outras palavras, significa fazer com que os outros países acreditem em um consenso em torno deste líder, na sua capacidade de agir em favor do interesse dos liderados. Neste sentido, os Estados Unidos não são mais hegemônicos. Por enquanto, são a maior economia, e aquela com o maior aparato militar, capaz de destruir qualquer país. E é precisamente por isso que podem dominar: porque têm um impacto sobre o mundo muito maior do que qualquer outra nação. Este domínio, contudo, não significa que os outros países necessariamente seguirão sua liderança. Na verdade, eles não a seguem mais. Os Estados Unidos permanecerão dominantes, mas não aptos a liderar o mundo como fizeram, por exemplo, ao final da Guerra Fria. Naquele período, eles eram capazes não só de criar alianças políticas e combinações, mas também tinham o poder de induzir europeus e japoneses a superar antigas diferenças com o objetivo de reconstruir a economia mundial. Agora, os Estados Unidos não têm mais o poder para exercer a liderança rumo à reconstrução. É assim que eles têm o domínio sem a hegemonia. 

Em 2009, o presidente dos EUA conversa
com o presidente chinês Hu Jintao
durante a cúpula do G-20, em Pittsburgh:
Barack Obama viu-se em posição “delicada”
para reverter a desastrosa guerra de

George W. Bush e liderar a
reconstrução econômica mundial

E esta incapacidade pode permanecer mesmo que o candidato democrata indicado Barack Obama chegue à presidência?

Obama pode fazer uma diferença, no sentido que não deverá causar desastres políticos semelhantes aos promovidos pela administração de George W. Bush. Obama e mesmo o candidato republicano John McCain, contudo, estarão em uma posição muito delicada neste sentido, porque os desastres cometidos por Bush não serão fáceis de reverter. Se houver mesmo uma mudança profunda nas políticas estadunidenses, como Obama parece invocar, embora ainda não se saiba ainda que mudança será essa, isto claramente poderá melhorar a imagem dos Estados Unidos não só na Europa, mas também na África e em outras partes do mundo. Esta mudança daria sinais de vida à hegemonia do país.  Mas seria uma situação temporária, porque esconderia as causas reais dos problemas americanos.

E quais são esses problemas, na sua visão?

Em primeiro lugar, os Estados Unidos não são os mais competitivos economicamente, à moda do que foram naquela idade do ouro. São, em verdade, devedores mundiais, e mantêm um déficit na balança para o qual não há perspectiva clara de resolução.

A crise hegemônica estadunidense vinha sendo anunciada e deveria acontecer naturalmente, independentemente das ações do governo. Quando os Estados Unidos iniciaram esta guerra no Iraque, tinham a intenção de superar a “síndrome do Vietnã”, a derrota naquela guerra. Bush esperava que a disparidade de forças entre os EUA e o Iraque, se comparadas às dos Estados Unidos e daquele Vietnã apoiado pela força militar soviética, resolvesse a guerra rapidamente. Em outras palavras, George W. Bush esperava que a invasão do Iraque revertesse o veredito do Vietnã em favor dos Estados Unidos, o que não aconteceu. O Iraque não os ajudou neste propósito, e as coisas ficaram ainda piores para eles. Os estadunidenses não foram capazes de superar a resistência iraquiana, não criaram um Iraque segundo seus desejos; em lugar de promover a democracia na região, ali instauraram o caos. Neste sentido, a credibilidade do poder militar estadunidense como uma força construtiva caiu por terra como nunca ocorrera antes. Não é fácil imaginar como qualquer um possa reverter isto agora.

O presidente dos EUA é
recebido em banquete pelo presidente chinês
Jiang Zemin em Pequim, 1998:

Bill Clinton e as nuances de um “poder suavizado”, mais “inteligente”, que não
ousou voltar ao Iraque depois da
primeira Guerra do Golfo

Mas por que o senhor aponta este ponto de ruptura na administração Bush e não na de  Clinton, que o precedeu? 

Porque a administração Clinton revelou-se muito mais inteligente do que esta. A principal diferença entre os dois governos foi a percepção de Bill Clinton de que não deveria contrariar a Doutrina Powell. Esta doutrina estabelecia que, depois da primeira Guerra do Golfo, não se deveria voltar ao Iraque, uma vez que o país já demonstrara não saber sair dele _ o grande exército estadunidense, neste caso, não poderia, nem deveria ser usado. Havia um entendimento de que este uso não se provaria eficiente, que não se deveria promover um novo Vietnã, não só em razão desta doutrina que estabelecia a cautela na aplicação do poderio militar dos Estados Unidos, mas porque o país teria a chance de exercer a hegemonia de maneira mais suave, por meio de um acordo econômico que levaria o nome de globalização. Globalização foi a palavra-chave da administração Clinton. 

O presidente Bill Clinton, portanto, conhecia melhor esses limites impostos ao poder. Por isso era mais cauteloso na hora de fazer valer sua força militar. Enquanto a guerra travada por sua administração no Kosovo queria mostrar, entre outras coisas, que era dispensável o apoio da ONU às ações estadunidenses aprovadas pela Otan, a Guerra do Iraque iniciada por Bush dispensava até mesmo o apoio da Otan.

Contudo, depois de 1997 e 1998, quando o poder econômico “suavizado” de Clinton foi exercido em seu ponto mais elevado, houve uma mudança significativa da relação dos Estados Unidos com o mundo. Em toda a parte o déficit aumentou tremendamente. As dívidas estadunidenses cresceram. Os Estados Unidos se viram diante não mais de países do Primeiro Mundo, mas daqueles do sul global, dos países anteriormente comunistas, como a Rússia. 

A bolha estadunidense estava se desfazendo. Globalização e liberalização vinham, em realidade, minando o poder dos Estados Unidos. Foi então que o país decidiu voltar militarmente à cena, para restabelecer sua posição no cenário mundial. Em lugar de resolver o problema, os estadunidenses o tornaram maior ainda quando decidiram endurecer. Sua ação se tornou mais efetiva interna e externamente. 

Ronald Reagan, quando ascendeu ao poder nos Estados Unidos, teve problemas semelhantes. Ele introduziu políticas econômicas muito duras e restritivas, que provocaram uma imensa recessão no país. Mas não há, atualmente, a perspectiva de uma recessão como aquela. Agora, a situação exige encontrar barganhas não somente com os europeus, mas com os novos poderes asiáticos e latino-americanos.

Obama pode tentar acomodar as coisas. Mesmo entre os conservadores, há diferentes posições diante desta situação e não está claro qual delas emergirá. De toda forma, não acredito, como nunca acreditei, que os Estados Unidos venham a passar por uma catástrofe como a recessão dos anos 1930. Isto não quer dizer que a crise atual inexista. É uma crise acompanhada de transferência de poder. Mas os Estados Unidos resistem à transferência. Resistir a ela foi o que Bush fez, o que tornou, como sabemos, as coisas piores. É preciso, do ponto de vista do poder estadunidense, que ele encontre formas de tomar pulso novamente da situação.

O presidente dos EUA George W. Bush
entre o embaixador dos EUA no Iraque, Zalmay Khalilzad, e o comandante das forças multinacionais em Bagdá, George Casey, em 2006:

“A credibilidade do poder militar estadunidense
como uma força construtiva caiu
por terra como nunca antes, incapaz
de superar a síndrome do Vietnã”

O sr. diz que a China é a grande vencedora da luta contra o terror patrocinada pelos Estados Unidos após o ataque às Torres Gêmeas, em 2001.

A China se revelou mais competitiva economicamente, exercendo o poder nesta base não militar. Nos anos 1980 e 1990, ela venceu uma batalha gradual na qual demonstrou mais eficiência econômica do que a Rússia no cenário mundial. A Rússia destruiu seu sistema de planejamento, sem a capacidade que teve a China de se voltar ao mercado. Sem adotar a receita neoliberal do Consenso de Washington, a China foi mais aberta que o Japão, por exemplo, aos investimentos estrangeiros, desde que servissem a seus interesses nacionais. Soube fazer sua industrialização voltar-se à exportação. Mais do que no resto do mundo, na China o governo investe diretamente para promover a colaboração entre universidades, empresas e bancos estatais no desenvolvimento da informática. A China não aceitou a terapia de choque neoliberal. Fez as mudanças gradualmente, o que provou ser acertado.

Neste momento, os chineses estão mudando, em seu entorno, a situação de muitos outros países, como os da África, como a própria Rússia, o Brasil, a América Latina. Eles criam uma nova conjuntura, por serem mais competitivos que os Estados Unidos. Estatisticamente, há uma situação de maior igualdade entre as nações depois da ascensão chinesa. A igualdade é crescente também dentro do próprio país. O problema é como manter esta situação em progressão. Há uma nova consciência para os problemas ecológicos e sociais que cresce rapidamente. A dificuldade é que, em se tratando de um país de tão grandes dimensões, a China não pode controlar tudo o que acontece em todas as províncias.  É minha posição moderadamente otimista, mas não cega, ao que acontece por lá. 

Integrantes da comunidade Uighur realizam
danças tradicionais em Pequim, 2017:
“Os chineses sabem muito bem que não estão oferecendo um modelo para as outras pessoas.
Eles acreditam, em outras palavras, que seu sucesso é baseado em uma espécie de característica histórico-geográfica que não

pode ser reproduzida além
dos limites do país”

Supondo que a China vença a batalha econômica, e faça mesmo este tipo de ascensão pacífica, como o senhor anota em um dos capítulos de seu livro, de que forma conseguirá vencer igualmente a batalha pelas mentes e corações mundiais? Como seria possível aceitar globalmente o estilo chinês de viver, que comporta alguns elementos  de repressão e pobreza?

A China, apesar de todos os avanços, é, de fato, um país pobre. Mais pobre, proporcionalmente, que o Brasil e a América Latina (seus índices per capita são mais altos do que os da África). Entendo o que está em questão. Como pode ser hegemônico um país que, no fundo, é pobre? Um país pobre que está ausente da tradição ocidental? E está emergindo como um país poderoso, apesar de, em certa medida, ser o mais pobre do mundo. 

Mas a questão é que os chineses sabem muito bem que não estão oferecendo um modelo para as outras pessoas. Eles acreditam, em outras palavras, que seu sucesso é baseado em uma espécie de característica histórico-geográfica que não pode ser reproduzida além dos limites do país. O consenso de Pequim parece mais aceitável ao sul global do que aquele de Washington, nos anos 1990, já que não oferece uma solução global para os problemas de todos os países. Parece haver o reconhecimento de que a China encontrou um modelo, mas que o modelo dos outros será encontrado por eles próprios.

Seu sucesso se baseia no fato de que o que a China fez não poderá ser seguido por ninguém. Os chineses insistem no respeito a suas soberanias e tradições, e isto parece confortador para todos. O que os outros realizarão a partir disto é problema dos outros. O medo de que o Brasil, os Estados Unidos ou a Europa adotem um modelo político-social parecido com o chinês é baseado em nada, realmente. Além do mais, não há um histórico chinês de tentativa de colonização mundial, antes de autodefesa. Eles sabem que vêm de uma tradição diferente e que não há nada a ganhar impondo-a fora de seus limites. Têm noção de que um consenso em torno do poder econômico é mais produtivo do que aquele militar, do que uma guerra patética contra um país como o Iraque. É uma simples questão de cálculo.

Exército chinês atravessa Drongpa,
no Tibete, em 2007:
“A China se baseia nos limites territoriais desenhados no século XVIII. Isto pertence a sua doutrina moral. O próprio Dalai-Lama sabe disso melhor do que ninguém, que não pode conseguir a independência tibetana diante da China da
maneira como o Ocidente a desejaria”

Ou de pragmatismo.

Sim, eles são muito pragmáticos e sabem que não adianta imitar o Ocidente em certas particularidades. Aprenderam uma lição no Vietnã. Voltaram ao exercício tradicional do poder econômico, não do militar. O poder militar chinês é essencialmente, como eu disse antes, o de autodefesa. O que os chineses não farão é qualquer tipo de concessão em relação a Taiwan ou ao Tibete, porque se baseiam nos limites territoriais desenhados durante o século XVIII. Isto pertence a sua própria doutrina moral, de certa forma. O próprio Dalai-Lama, do Tibete, sabe disso melhor do que ninguém, que não pode conseguir a independência de seu país diante da China da maneira como o Ocidente a desejaria. 

Um robô confidente no filme
“Levados pelas marés”, de Jia Zhang-ke, 2024:

“Nos próximos vinte ou trinta anos haverá muitas surpresas em relação ao que pensamos agora. A grande utopia liberal do consenso de Washington entrou em colapso, e agora vivemos a grande utopia da emergência asiática,
uma diversificação entre os modelos
comunistas e capitalistas”

Nos próximos vinte ou trinta anos haverá muitas surpresas em relação ao que pensamos agora. A grande utopia liberal do consenso de Washington entrou em colapso, e agora vivemos a grande utopia da emergência asiática, uma diversificação entre os modelos comunistas e capitalistas. O modelo não é preciso, e ainda bem que não o é. Veja que a Europa caminha para uma guinada ao fascismo, como na Itália de Silvio Berlusconi, e há Ângela Merkel na Alemanha, além de outras figuras do passado. Seria interessante ver Barack Obama neste cenário _ não acho que ele tenha grandes chances de ganhar a presidência, mas as chances existem. 

Depois de tudo isso, é possível que tenha lugar uma utopia latino-americana.

O sr. realmente acredita nesta possibilidade?

A América Latina tem promovido sua guinada à esquerda. Se considerarmos o que houve politicamente na região nos anos 1970, a emergência de ditaduras militares, este momento traduz uma mudança considerável. Houve períodos de um revival democrático, depois uma tentativa de liberalismo, e agora a América Latina entrou nesse período de crítica do regime liberal. É uma nova cultura, talvez. Em termos de relações econômicas internacionais, a América Latina tem as melhores chances em muitos anos, em razão também dessa ascensão chinesa. Está-se criando uma grande unidade continental. Claro que esta evolução também precisa ser traduzida em termos de reformas sociais. 

O chanceler da República Popular da China, ministro Yang Jiechi, com o presidente Lula e o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, conversam em Brasília sobre relações
multilaterais nas áreas de tecnologia,
agricultura e energia, em 2009:
“Internacionalmente, Lula tenta preservar esta porção do continente diante de uma investida dos Estados Unidos. Economicamente, suas decisões
têm dado ao Brasil uma condição de maior independência em relação às outras nações”

O sr. tem uma avaliação sobre a posição do presidente do Brasil neste cenário?

Lula é uma imagem mista, como você sabe. Internacionalmente, creio eu, ele está indo muito bem, tentando preservar esta porção do continente diante de uma investida dos Estados Unidos. Economicamente, não sou tão crítico quanto à disciplina adotada por seu governo, porque suas decisões têm dado ao Brasil uma condição de maior independência em relação às outras nações. Socialmente, não sou familiarizado com a situação brasileira para emitir opiniões.  

Os jorros de Wesley, um homem-cinema

Wesley Pereira de Castro,
co-diretor de “Um minuto é uma eternidade
para quem está sofrendo”

Sinto-me amiga de Wesley Pereira de Castro desde que há mundo, embora o tenha conhecido apenas no desabrochar da pandemia. Um conhecimento parcial, é claro, entranhado no jogo de palavras à distância e pelos áudios do WhatsApp, que Wesley entende um tanto metálicos.

Ontem pude finalmente abraçar este sergipano em sua fortaleza frágil – e ágil. Um homem que sorri. Um homem bonito, os lábios que são um desenho, as unhas tão bem cuidadas e pintadas que me envergonhei um pouco das minhas. Me lembrei de passagem daquele José Mojica Marins que, adolescente, eu avistei num ponto de ônibus da mesma rua Augusta ontem percorrida por nós. Sem cartola ou capa, vestido com uma camisa branca, o Mojica à paisana não tinha nada de seu personagem Zé do Caixão, exceto as unhas longas e firmes. 

Tampouco eu sabia que Wesley era esse homem-cinema total. Enquanto andávamos pela avenida Paulista, conversando, a câmera despertava de seu celular. Sabedor do que queria registrar (a primeira foto já valia), dirigia a si próprio e a mim. “Olhe para lá”, me dizia, ele que pisava naquele território pela primeira vez. Ação, corte, edição: Wesley faz tudo isso como extensão do que é. Move-se e pensa dramaticamente. No olho, o frame.

Wesley olhou tanto! A vida, claro. Mas também as palavras e os filmes. E talvez por este motivo tenha sido tão natural, para ele, que se tornasse um diretor de cinema com um sem-número de referências, além de crítico inegável, apaixonado, amantíssimo, o único aliás que consigo acompanhar sem nunca esmorecer, um pouco pelo brilho da reflexão original que espalha em tudo, outro tanto por sua generosidade, pelo privilégio de que desfruta em ser tão honesto e centrípeto (desta maneira vê a si) nas suas atribuições de avaliador.

“Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo”, seu primeiro longa-metragem, já vencedor do prêmio Aurora na 28ª Mostra Tiradentes, foi co-dirigido pelo amigo sergipano de duas décadas Fábio Rogério. Dele, de sua experiência como editor excelente e ritmado, veio a ideia de realizar uma obra cinematográfica a partir do que Wesley é, de seus registros no celular sobre o cotidiano na casa da família em Aracaju. (Uma curiosidade é que Rogério chegou a duvidar de ter mesmo composto um filme ao final do processo de edição…)

Os pequenos vídeos dentro do longa mostram o quintal de Wesley, seus jabutis, galinhas, patos e cachorros no cio, a casa, a tela de tevê, o banho de chuveiro como que nascido de um filme de Totò (o primeiro no qual atuou, “Fermo con le mani”, de 1937, no qual se desenrola a gag em que o ator se banha de cartola). Neles estão também a pia cheia ou vazia, a faca, a mãe Rosane – filósofa de mando e origem, a ironizar sobre o filho querer tudo, menos o que tem -, muita água de chuva inundando o quintal enquanto escasseia a água de uso (haja inconsciente para rolar), as doações que alimentaram a família durante a pandemia, a vivacidade do diretor combinada a uma melancolia agitada, seus momentos de pânico, alguns filmes que ele viu, os parágrafos de uns livros lidos, os seus pensamentos que são um sentir e um sempre inesperado humor, capaz de ora esfriar, ora animar os sentidos do espectador lanceado.

Foi só quando vi o filme ontem, numa sessão do Cinesesc dentro da 13ª Mostra Tiradentes São Paulo, que entendi melhor o Wesley com quem passeei feliz horas antes. Ele está preso ao cinema. Isto é bom, ocasionalmente ruim? No filme, a certa altura, o diretor indica a exaustão de abrigar na mente uma câmera que tudo enquadra, junto a uma moviola imaginária constante, a determinar o ritmo e o movimento desses enquadramentos. A sua parece ser aquela prisão que implica prazer e que ocasionalmente pede liberação, assim como um rio contido, de repente, vaza pela cidade. Eis talvez por que seu pênis apareça tanto no filme. Este seu amigo no mais da vida “desereto” (mas não deserto) pode desprender em jorro diante de uma atemorizante faca polanskiana colocada na pia. E isso pode ser tanto o começo quanto o fim do eterno ciclo que, um dia, ele espera encerrar por deliberação pessoal.

É um filme feito de dor, mas também de amor e humor. Por me sentir amiga de Wesley, tantas vezes temi por ele, chorei por dentro, enquanto, na mesma fileira em que eu me sentava na sessão, ele ria alto de si próprio em tantas situações nem tão divertidas assim dentro do filme. A naturalidade com que uma sequência de seu inconsciente se segue a outra, com tantos bichos na casa a revelar essa imanência-transcendência, me lembrou aquela do diretor Luis Buñuel, suas aranhas, escorpiões e insetos colocados nos filmes sem razão aparente, mas a espetar os sentidos dentro de uma narrativa que se liga à vida. Wesley me pareceu buñueliano também por não saber o que fazer sem o cinema, e por atuar junto a um condutor consciente, capaz de expressar todo o peso de sua arte. Seu Fábio Rogério é como o roteirista Jean-Claude Carrière para o diretor espanhol, um artista a organizar o fluxo.

O filme que custou apenas 2 mil reais (gastos, em verdade, para a confecção do cartaz e das legendas em inglês exigidas pela Mostra Tiradentes) tem tanto mais, até um divertido cu piscante! E os efeitos visuais nascidos da precariedade da câmera surgem sublimes, como aqueles que Wesley produz ao agitar o celular, indicando “loucura”. Só posso esperar que seu filme jorre em novas exibições pelo Brasil e pelo mundo e que o Carrière deste Buñuel o acompanhe, empurre e console, salvando-o para viver e acontecer.

Lutar queima, lutar dói

Sofro com a virose que me toma há alguns dias, mas, sinceramente, sofro mais (a mente, os nervos) diante do assassinato cotidiano.

Mulheres degoladas, apedrejadas e concretadas por quem há muito dispensou o respeito por seus corpos.

A polícia que é a mesma, indigna em qualquer lugar do mundo, massacrando os velhos argentinos sem dinheiro para comer e medicar-se.

As árvores garroteadas e tombadas em decorrência da inação do podre poder público municipal, como se fossem tão-somente empecilhos à urbanidade.

Os sem-teto estendidos na calçada, tratados sem qualquer cerimônia pelas peruas de remoção e pelo vice-prefeito (vice? prefeito?), que resolveu mirar em Padre Júlio nas redes sociais.

Estudantes vistos como cachorros pelo Grande Laranja porque ousam protestar contra o genocídio palestino.

O genocídio palestino.

Há dias nos quais não damos conta de nada, de nadinha que parta da humanidade. E mesmo assim, se não combatermos por ela, quem seremos? Como viver? Lutar é meter a cara nas chamas para apagar um incêndio que não cessa. Lutar queima, lutar dói. Ah, se houvesse trégua para lutar.