Engasgados na conjunção

Os textos jornalísticos de alguns portais existem por si, sem se importar com quem os lê.

A moda por lá é enfileirar a conjunção “que” em orações infinitamente subordinadas.

Imagino que emendar uma coisa na outra ajude a quem tenha pouco tempo pra escrever e publicar.

Porém, fica feio. A gente engasga de ler aos socos.

Já temos tantos problemas!

A culpa interditada: Lygia vê Capitu

Lygia Fagundes Telles
em foto de Olga Vlahou

Nesta reportagem publicada em 21 de agosto de 2008, Lygia Fagundes Telles fala sobre o roteiro feito em parceria com Paulo Emilio Salles Gomes, relançado em livro, que muda o foco narrativo de “Dom Casmurro”

Os diretores de cinema apareciam de mochila nas costas para visitar Lygia Fagundes Telles e Paulo Emilio Salles Gomes naquele ano de 1967. Ela era, como é ainda, uma das grandes escritoras do Brasil, e ele desfrutava o título de maior crítico de cinema em terras nacionais. A Vila Mariana onde moravam, dizia Paulo Emilio, fora um charco originalmente, e por esta razão ele apelidara seu apartamento paulistano de Sapos. Um dia, o diretor Paulo César Saraceni chegou ali munido não só de mochila, mas de um olhar oblíquo e dissimulado. Com ele, Saraceni os convenceria a transformar em roteiro de cinema o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.  

 

“Este Capitu nos deu uma tarefa difícil”, disse Paulo Emilio a Lygia, quando Saraceni, em quem ele vira aquele olhar da protagonista do livro, deixou Sapos para trás. O casal não começou imediatamente a trabalhar na adaptação do romance de 1900 no qual Bentinho, apelidado dom Casmurro, desconfia que sua amada o trai com o amigo Escobar. Seria preciso convencer Lygia de certas coisas antes, ela que era formada na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e fazia julgamentos a partir de evidências.

 

Quando leu o livro de Machado de Assis pela primeira vez, ainda universitária, Lygia se convencera de que o protagonista era um homem “inseguro e invejoso”, desmerecedor de confiança, ainda mais porque não outra voz, além da sua, falava no romance. Na segunda leitura, contudo, ela mudaria o pensamento por completo. Sim, Capitu seria a amante de Escobar. Ele era um homem muito mais atraente do que Bentinho, para começar. E havia alguns “indícios jurídicos” muito fortes a serem considerados pela escritora para que ela estabelecesse a culpa deste Leviatã.

 

Em uma cena do livro, Bentinho se cansa do espetáculo de teatro a que assiste, volta para casa e lá está Escobar com Capitu. Não havia motel para encontros naquele tempo, então é claro eles faziam ali o que não poderiam fazer em outro lugar. Depois, havia outra coisa. O menino Ezequiel, embora exímio imitador de todos, remedava perfeitamente Escobar, o que fora notado por ninguém menos que a própria Capitu. O velório de Escobar, por fim, sepultara qualquer chance de redenção à mãe de Ezequiel. Dona Sancha, a viúva, chorara tanto na ocasião quanto a traidora. As lágrimas de Capitu formaram mais um daqueles mares de ressaca, capazes de arrastar um observador, dois ou três, para dentro de si.

 

Estas certezas todas, apresentadas com eloqüência de advogada já na rua Sabará onde os dois passaram a morar, deixaram incrédulo o marido da escritora. Paulo Emilio era um grande professor, mas, se entrasse nesta discussão à maneira de Lygia, não convenceria a talentosa mulher de seu ponto de vista. O negócio era agir como padre: “Você precisa se limpar, você não pode julgar Capitu”, disse ele a Lygia, certo de que as provas que ela acumulara se mostrariam inúteis. O que ele pregou à esposa no momento seguinte a convenceu em definitivo: “Se o triângulo amoroso existe ou não, isto não interessa a você. Tem de haver a dúvida, ou haverá traição a Machado de Assis.”

 

O escritor narrara para intrigar, e teria esclarecido a trama ao final, fosse esse o seu desejo de ficcionista. O que ele parecia almejar, contudo, era que ficássemos discutindo aqui por longo tempo sobre um enigma maravilhosamente urdido e sem solução. Tão essencial é este livro que Lygia, por exemplo, tem-no como o primeiro de Machado, seguido de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. É uma tendência que de certa forma a Universidade de São Paulo segue: Dom Casmurro como a melhor fabulação, Memórias, como a experimentação maior.

 

Se não poderia culpar Capitu em seu roteiro, Lygia enfocaria o sofrimento terrível de Bentinho. Que outra coisa faz este personagem dentro do livro, a não ser penar? O roteiro seria, neste ponto, sobre o sentimento de ser traído, não sobre a traição. E seus autores fariam mais uma coisa interessantíssima, ousadíssima, para falar na língua de superlativos do agregado José Dias: anulariam o foco narrador. No roteiro, não é Bentinho quem conta a história. É um terceiro que urde a trama, iniciada na lua de mel de Capitu e contada livremente pelo tempo de vida dos personagens.

Nascido desta escolha, o livro que originou filme homônimo de Saraceni em 1968 resulta suave, mas intrigante. E é capaz de impacientar quem aguarda respostas claras ou anseia sempre pelo ponto de vista roubado. Goffredo Telles Neto, o filho de Lygia, morava com ela e Paulo Emilio naquele ano de produção crucial, e tomou as folhas datilografadas por Lygia para saber o que tanto elas tramavam. O Jovem, como o apelidara Paulo Emilio, leu e ficou sem entender aonde a escritora queria chegar. “Mamãe, dá sua opinião de uma vez! Ela traiu ou não?”, ele a inquiriu. E a autora foi sincera com o filho: “Eu não sei, eu não sei!” 

 

Lygia tem 85 anos. Para ela, ainda hoje, a traição é  “a dor maior”. Os tiros que de vez em quando os ciumentos desferem sobre as namoradas, segundo ela tem notícia a partir da leitura “destas revistas”, ainda prosseguem acontecendo. Seu ponto de vista, portanto, parece validar-se todos os dias. A traição incomoda. É eterna, enquanto o homem é breve. Paulo Emilio morreu em 1977  e o único filho de Lygia, Goffredinho, há dois anos. Lygia entende de que o sofrimento trata.

Ela dá entrevista no apartamento que habita há um bom tempo nos Jardins paulistanos, em cuja entrada há palmeiras imperiais. As palmeiras são bonitas e resistem à poluição, aos carros que buzinam, à gente que passa, vinda da rua Oscar Freire chique. Lygia não arreda pé dali, apenas para eventos aos quais os amigos insistem em convidar. O livro “O Demônio do Meio-Dia – Uma Anatomia da Depressão”, de Andrew Salomon, ainda repousa em um canto de sua sala, mas parece não se relacionar à pessoa que dá a entrevista.

 

A escritora é pessoalmente assistida pela neta, a professora de português Lúcia Telles. Aos 29 anos, Lúcia trabalha sobre cartas de Paulo Emilio para um mestrado. E ajuda Lygia em tudo, até quando uma palavra lhe falta. A certa altura da conversa com a CartaCapital, sugere à avó que catequisar é  o vocábulo certo para designar quem deseja transmitir a mensagem cristã. Com a neta ao lado, Lygia está bem. Ela liga a televisão minúscula onde a avó assiste a Ciranda de Pedra, uma novela que a diverte, sem qualquer relação com seu romance de 1954, segundo Lygia sabe muito bem. Ela também sorri, e fala como atriz, ao invocar seu muito querido Machado de Assis e a própria literatura. Queria tanto que seu Capitu fosse filmado de novo!

 

Está indignada, por ora, que a imitem e ainda cometam a ousadia de lhe mandar os originais com as imitações para ler. Rubem Fonseca lhe contou que isto também vem acontecendo com ele. A literatura de Lygia é inconfundível, forçoso notar que não a imitariam direito. Ela tem um conto que o filho não teve tempo de filmar, Potyra, sobre um vampiro que deseja morrer no Brasil. Quem sabe, entre os contos e o romance novos que prepara, não caiba uma roteirização desta peça ficcional, em companhia da neta constante? 

 

Esta escritora se diverte, apesar de tudo. Eleva a voz como uma atriz e pontua com graça as frases perfeitas. Está lúcida e grande, e seu olhar ainda encara o interlocutor como quem o arrasta.

 

A poesia anarco-malandra do Brasil

Algo que realmente amo em nossa língua oral brasileira é a troca constante que se faz entre as segundas pessoas e as terceiras.
Um assunto interminável.
Um verdadeiro destrambelhamento amoroso fragmentado pra matar de inveja o Rolando, nosso Barthes.
A primeira pessoa, por exemplo, todo mundo sabe conjugar.
Eu sou!
Eu fui!
Eu serei!
Mas ninguém quer saber de gramática a partir daí.
E as canções populares falam por si.
(Melhor dizendo, pra ti, meu amor.)
Se eu sei quem tu és, sou muito formal contigo, muito distante, e tu és uma estátua, em verdade, que nem sonho tocar.
Quando digo “tu é”, pelo contrário, tu tem carne, sou melhor, mais íntimo, mais corisco contigo, minha Dadá!
Eis por que “és” pode ser aplicado eventualmente ou em tese à terceira pessoa, para dignificá-la, bajulá-la, engrandecê-la, mas serve pouco pro amor que não é velho, não é parnasiano e está no aqui-agora pro que der e vier.
“Fazes” diz mais ao meu tesão inatingível do que “faz”, que a gente aplica no arroxa suado de todo baião.
Então, simplesmente, “tu é” ou “tu foi meu amor” é melhor do que “és” ou foste meu amor”, especialmente quando desejo enfatizar o que precisa ser dito urgentemente a ti. Sendo que, na realidade, “foste” é um coitadinho que ninguém reconhece: “fostes” para o “tu” grandioso é sempre muito melhor.

(Me procurem outra hora para mais dicas sobre a poesis anarco-malandra do Brasil. Estou trabalhando por vós!)