Eustáquio Neves, maestria ancestral

O fotógrafo mineiro Eustáquio Neves, presente na 35ª Bienal de São Paulo, sobrepõe imagens cotidianas às da tradição negra de modo a construir narrativas memoriais 

Sobre o rei, a Coca-Cola e a flor: a mescla de sagrado e profano no quilombo dos Arturos

Eustáquio Neves é um mestre da ancestralidade negra. Cada fotografia deste brasileiro representa um conjunto de memórias simbólicas sobrepostas em negativos. Aos 68 anos, o artista aporta pela primeira vez na Bienal de São Paulo com cinco imagens de duas séries elaboradas a partir dos anos 1990 nos quilombos Arturos e Ausente. “Construo pensando no cinema, acumulando narrativas”, ele conta diante do prédio da Fundação Bienal, numa tarde abafada de setembro, dizendo-se mais afeiçoado à luz lateral do pintor Diego Velázquez e às paisagens dos cineastas Wim Wenders e Andrei Tarkovski do que à obra dos grandes fotógrafos.

De porte elegante, vestido com uma camisa Versace estampada em branco, ele não desfaz, contudo, dos mestres. “Os fotógrafos europeus não eram minha escola. Admiro o Henri Cartier-Bresson, mas eu usava uma 28mm”, diz sobre sua lente de predileção, apta a capturar detalhes, enquanto o francês, com a 50mm, buscava rapidamente cenas de rua. “Além disso, eu fazia todos os recortes possíveis na foto, enquanto ele era cartesiano com a imagem. Até me inspirava no cara, mas fazia tudo ao contrário dele”. 

Nascido em Juatuba, a oeste de Belo Horizonte, o artista aprendeu a exercer a criação livre, como fazem as crianças. E, quando menino, era determinado à moda de gente que cresceu. Filho de Tereza, dona de casa e trabalhadora de uma família estruturada, ele se recusou, com 7 anos, a conhecer o pai que o abandonara. “Me vestiram com o terninho branco de festa e disseram que meu pai estava na cidade: ‘Quer conhecer ele?’ E eu respondi: ‘Não!’ Ganhei um docinho, meu pai ficou me olhando de longe e não o encontrei nunca mais.”

Determinação nunca lhe faltou. Mesmo desejoso pelas artes, o jovem que desenhava tão bem, e que nunca parou de fazê-lo, cursou Química na faculdade. “Não tive a fotografia como projeto desde o início. Pensava em teatro, até em cinema, mas fui estudar violão clássico por dois anos enquanto cursava a graduação. Eu queria muito ser químico.” Nos anos 1980, formado, estagiou no Ministério da Agricultura, elaborando testes de insumos. Depois de seis meses, como só lhe pagavam a passagem, teve de repensar. Fez exame para Belas Artes e não passou, o que o levou a trabalhar no interior de Goiás, como químico. Não se apaixonou pela indústria impessoal do grupo Votorantim e investiu na curiosidade pela fotografia. Comprou uma câmera Yashica FXD Quartz que virou caderno de notas: “Fotografar era como fazer anotações sobre meu percurso.” Mapeava a fauna, a flora e a indústria de Niquelândia (onde o níquel era abundante), e revelava o filme colorido em Goiânia. 

Uma de suas fotopinturas: o talento para desenhar o precede

“Tirava fotos no tempo vago e as pessoas me descobriam. Nesse momento eu já tinha mais uma câmera, a Minolta. Os colegas compravam minhas fotos de paisagem para usá-las como cartões postais.” Um mercado se abriu. Ele clicava os casamentos dos amigos, seus filhos recém-nascidos e até os “recém-mortos” do lugarejo, onde havia a tradição de fotografar os falecidos. Demitiu-se e montou estúdio na cidade. Assim que sentiu ter evoluído, partiu para Belo Horizonte, em 1986. Submeteu três fotos de Ouro Preto em concurso, recebeu menção honrosa por duas delas e a terceira foi a vencedora (seria contra o regulamento levar sozinho os três primeiros lugares). O prêmio foi cursar aperfeiçoamento com Eduardo Castanho, que viu nas suas imagens, “fotos de autor”. 

Eustáquio Neves sabia o que queria desde 1982, quando uma exposição do artista Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) no Museu da Pampulha, em Belo Horizonte, o impactara pela sobreposição dos elementos. “Minha organização é outra, sabe? Eu preciso tropeçar em um troço meu que está ali no chão para lembrar o que tenho de fazer. O Bispo tinha essa ordenação nas coisas que eu também pratico, embora mentalmente. Ele me libertou para a fotografia que eu faço hoje.” O fotógrafo informou à esposa, a pesquisadora Lilian Oliveira, que seus dias juntos seriam financeiramente difíceis a partir dali, porque ele se entregaria às sobreposições. Mas tirou tudo de letra: “Não olho para trás, não vejo sofrimento. Minha carreira é tão prazerosa, faço o que preciso fazer.”

A rainha, personagem central entre os Arturos, comunidade que Eustáquio fotografou entre 1993 e 1997

No início dos anos 1990, conheceu o quilombo dos Arturos, em Domingos Pereira, Minas Gerais. Descendentes de Arturo Camilio, filho de escravizados falecido em 1956, os Arturos dão continuidade às práticas culturais da comunidade, entre elas as festas religiosas. Após diversas visitas, Neves fotografou integrantes e seus instrumentos, compondo doze imagens para a série, entre 1993 e 1997. Na sua imagem do rei da comunidade, Neves justapõe renda e moeda colonial no topo da foto com garrafa de vidro de Coca-Cola e flor à direita. Tais inserções simbólicas mesclam o sagrado e o profano no cotidiano, algo que ele experimentara por breves momentos na família católica. “Junto com a minha ferramenta fotográfica, os Arturos me levaram a falar das fronteiras cotidianas que uma pessoa negra vive no Brasil.”

A música, elemento central dos festejos no quilombo dos Arturos

Na sua família, a mãe era o mundo. Dona Tereza sonhava com a casa própria onde pudessem morar, mas nunca havia trabalhado no mercado formal, que talvez lhe possibilitasse a aquisição de um imóvel. A situação financeira de todos ao seu redor, contudo, parecia melhor. Os vizinhos com quem Eustáquio brincava e trocava porrada eram os filhos dos fazendeiros, mas ele não se dava conta de sua riqueza. Só adulto descobriu que um desses moleques vinha da família do rei do frango, que fornecia alimento para o Ceasa. “Quando minha mãe foi para Belo Horizonte, encontrou um menino da vizinhança crescido, dono de uma empresa de engenharia. Ele a empregou por lá, mas, como a empresa iria fechar, sugeriu-lhe trabalho em uma Cobal. Depois de um ano fazendo cestas básicas, minha mãe já tinha um cargo de chefia e conseguiu comprar um apartamento.”

“Última comunhão”, um retrato
de fé substituída

O candomblé não entrava em sua casa. Dona Tereza era católica e pôs o filho para fazer a primeira comunhão. Recentemente Eustáquio trabalhou sobre o retrato desse importante dia de fé e intitulou o resultado “Última Comunhão”. Na imagem original, o menino traz a vela e o livrinho tradicionais. Mas agora, por meio de sua arte de sobreposições, esses elementos se viram acrescidos de uma espada de São Jorge e um skate, além das coisas que ele enxergou cabíveis à criança de 7 anos que foi, comungando pela primeira vez.

Trabalhar sobre os retratos familiares é seu modo de reencenar a história, e também de questionar a invisibilidade de seus personagens. O sofrimento do homem preto, dentro de uma sociedade na qual o racismo é estrutural, não tem fim. E Eustáquio o encena por meio das máscaras que vai revelando. Um dia, pegou uma foto da mãe aos 18 anos. Ela havia saído da cidade natal, Pará de Minas, para ser fotografada em um estúdio de Belo Horizonte. E no retrato que compôs, ele sublinhou as marcas de seu sofrimento.  

A ausência, presente no retrato reelaborado de sua mãe, Dona Tereza, aos 18 anos

“Trabalho com quem está no meu entorno. Em Diamantina, onde minha mulher nasceu e hoje moro, conheci o Crispim, o Comendador do quilombo Ausente.” Eustáquio foi até ele em 1996. E sofreu para chegar, talvez porque um quilombo seja exatamente isto, um lugar preservado, de alcance difícil, proposital. “A gente foi com uma senhora e duas mocinhas até duas cidadezinhas próximas. Dormimos em uma pousada. E no dia seguinte esperamos ser orientados pela mata. O interessante é que, enquanto caminhávamos, reconhecíamos a figura do mineiro. Perguntávamos a quem nos orientava quando enfim chegaríamos, e a resposta era a mesma sempre: ‘Vinte minutos.’ Mas esses vinte minutos significavam horas andando com caixas onde iam a bagagem, os mantimentos, as roupas e o equipamento fotográfico.”

No díptico produzido a partir de imagens obtidas no quilombo Ausente, em 1996, a figura emblemática de Crispim e sua espada

Quando enfim chegaram, Eustáquio deparou com Crispim, o Embaixador dentro das celebrações de Nossa Senhora do Rosário. “E o que significa o Embaixador nesse cortejo da Nossa Senhora? O Embaixador sai à frente do cortejo com uma espada”, explica. “Fiz a imagem dele em um díptico. Cada dia é uma representação. Com a espada, ele incorpora o Embaixador. Crispim saía na frente do cortejo muito bem vestido, com sua coroa. Limpava o caminho com aquela espada para a Santa vir. E a outra função dele era a de Comendador. Quando morre uma pessoa na comunidade, é preciso que esse integrante mais velho, detentor de certos saberes, como o dos cantos para a morte, entoe-os para fazer a passagem do morto para o outro plano.”

Uma particularidade no seu jogo de imagens sobrepostas, também aplicado a Crispim, é que elas não devem ser necessariamente visíveis. “Para construir uma ideia, às vezes sobreponho dez negativos, mas só eu sei onde estão esses dez na imagem. Ninguém mais precisa saber. Só sentir”, diz ele, ainda hoje a utilizar a fotografia analógica. “No caso do Crispim, um díptico mostra a casa, uma forma de habitação que não é mais essa, substituída por alvenaria. Fiz este ensaio a pedido de uma revista inglesa, a C Magazine, parecida com um livro, de tão grossa (a editora, Helena Uchoa, não a chama de livro, quer que seja uma revista, mesmo…). E a coincidência que eu observo nessas horas é que um tempo depois de fazer meu trabalho para eles, vejo que a revista publica, na mesma edição, um ensaio do diretor Wim Wenders, cuja fotografia sempre me inspirou bastante.”

No seu processo muito particular de sobreposições, é inevitável evocar a revivescência de uma outra escola fotográfica, a pictorialista, que entre o final do século XIX e o início do século XX buscava dar às imagens a atmosfera impressionista da pintura. As fotografias de Eustáquio parecem citar de modo sofisticado essa ambientação, embora ele não a procure. A rigor, nem mesmo a fotografia o orienta. Depois que julgou ter entendido seus mecanismos, ela não lhe pareceu tão motivadora assim, “uma coisa meio sem graça”, até. O que este eterno apaixonado pelo desenho faz ainda não tem nome, embora esbanje sina, um tanto de ciência, tradição e beleza.

“Retrato”, marca do desenho jamais abandonado de Eustáquio Neves
O artista na rampa do prédio da Bienal em um setembro quente, vestido com a camisa estampada em branco da Versace

Walter Firmo, um sol invencível


O fotógrafo carioca Walter Firmo, de 85 anos, deu luz e dignidade aos grandes personagens da cultura do Brasil e também aos invisíveis, glorificados em sua negritude por meio de uma trajetória profissional premiada de sete décadas. Aqui, a entrevista que fiz com ele em dezembro de 2022, a pedido da revista Robb Report.

Walter Firmo, fotografado por mim
com as cores de sua alegria, em um restaurante do centro paulistano

POR ROSANE PAVAM

Repare no céu da bandeira brasileira, suas estrelas intangíveis e o lema de sonho. Walter Firmo é o sol vermelho que mora ali e a gente mal vê. O artista de 85 anos, olhos fixos no interior de seus personagens, amplifica o país num contexto de paredes coloridas, folhagens e janelas, a realçar sua dignidade. Com luz, porque é o sol, Walter Firmo contribui há sete décadas para construir quem somos, a nossa realidade inteira.


Foi em condição solar que o carioca, “chocolatezinho do Irajá”, conforme diz com ironia, encontrou esta repórter em outubro, num restaurante do centro paulistano, região por ele frequentada muito antes da miséria atual vista no entorno. Veio com o boné encarnado e o sorriso matreiro, às vezes com as lágrimas que ele temia chegarem em “jorro”. E narrou histórias de uma vida feita de arte, esta que o Instituto Moreira Salles, de São Paulo, mostrou em “No Verbo do Silêncio, a Síntese do Grito”, a melhor exposição fotográfica a ter início em 2022.

Pixinguinha em plenitude,
na foto de 1967


Ele nasceu de Maria de Lourdes, linda menina branca de 15 anos caída de amores pelo ribeirinho amazônico bom de briga, o negro José, de 25. O prenome veio de Walter Pidgeon, ator canadense que a mãe amava pela elegância. Firmo referiu-se a São Firmino, o santo do dia de seu nascimento, 1o de junho. Um tio sugeriu que abreviassem para Firmo o segundo nome, e isto talvez tenha se colado à criança como um destino. Pois trata-se de alguém firme desde a letra manuscrita com a qual dedica o catálogo da exposição à repórter.

Temperados pela paixão, Lourdes e José deixaram o filho à criação da avó Teresa até os 5 anos, numa casa cujo quintal era ao mesmo tempo sua prisão de segurança máxima e as portas para o imaginar. Vó Teresa era como as zelosas senhoras antigas, prenhe de histórias, e lhe interpretava canções. “Lábios que beijei, mãos que eu afaguei”, canta ele com voz bonita e clara, ao se lembrar dessa influência familiar que lhe deu o ritmo e o compasso das palavras poéticas.

Na festa de São Benedito,
Espírito Santo, 1989


Ele também leu Machado de Assis e Lima Barreto pela vida, embora tenha parado de estudar ao fim do Científico e feito da fotografia, sua universidade. “Trabalho fisicamente com os entornos, com os desenhos. Vou guardando o que vejo, como fazia Machado, que me parece um fotógrafo enrustido. Sabe quando ele descreve a luz que entra pela janela e pousa com sensualidade no espaldar da cadeira? Eu queria escrever assim, mas pelo menos eu tenho ouvidos bons e adjetivo bem.” Ama escrever, mas não é apaixonado por ler: “Como nasce uma pessoa assim?” Um dia pretendeu ser cantor. E até padre, depois de assistir aos salesianos rezarem a missa em latim.

Ele tem 1,60m, mas sua perspectiva é a de um gigante. Um homem para o palco, dada a verve em dirigir o espetáculo, algo que a fotografia
lhe permite fazer sozinho. Ele só se entendeu vítima de racismo em 1967, quando, em Nova York, um colega de trabalho se pronunciou contra a presença de um “negro analfabeto” na sucursal da revista Manchete. Daí para o cabelo black power, de protesto, foi um pulo. Começou no fotojornalismo porque aos 14 anos, quando se interessou pela Rolleiflex, folheava revistas como a “Life” na banca e via por ali florescer o poder imagético de um estadunidense negro como Gordon Parks ou de um europeu como Ernst Haas. Na revista “O Cruzeiro”, a estrela absoluta vinha do Piauí, de onde aliás partiu sua atual mulher, a doce Lili, 54 anos, que o emociona há quinze, desde o instante zero em que se conheceram para um trabalho a ser feito no estado.

O Bumba-meu-boi em São Luís, 1994, para destacar as festas populares


Em “O Cruzeiro”, o fotógrafo piauiense a causar imensa admiração em Firmo era José Medeiros. À sua maneira, Firmo queria, como ele, desbravar, conhecer. Fotografou em preto e branco desde a entrada na imprensa, aos 18, no jornal “Última Hora”, até conhecer a obra do estadunidense radicado no Brasil David Drew Zingg, a quem chamava de “mestre” e dele ouvia, em resposta, a mesma qualificação. Zingg era a cor. E em revistas como “Realidade”, “Manchete”, “Veja” e “IstoÉ”, além de atuar por conta própria, Firmo fez da fotografia colorida sua marca sensível, dos retratos às celebrações populares. Muitos prêmios, o primeiro deles em 1964, o Esso pela série de reportagens “100 Dias na Amazônia de Ninguém”, que pautou, escreveu e fotografou para o “Jornal do Brasil”, e um cargo como diretor do Instituto Nacional de Fotografia, da Funarte, entre 1986 e 1991, que lhe deu extensa compreensão artística, tudo isto e mais o fizeram brilhar pela brasilidade. “Já estou pronto para virar enredo de escola de samba. Vai, Firmo!”

Vendedor de sonhos na praia de Piatã, em Salvador, durante a década de 1980

Em 1967, a seguir o repórter Muniz Sodré, fotografou Pixinguinha para a revista “Manchete”. Terminada a entrevista no interior da casa de Ramos, Firmo perguntou se poderia levar a cadeira de balanço do músico para o quintal. Colocou-a sob a árvore, deixou um retrato seu ao lado e fotografou o mestre na cadeira, primeiro de perfil, carregando o saxofone nas mãos, depois de costas, pose original de que ele gosta mais, a exalar a plenitude do santo. Ele santifica seus personagens, negros em sua maioria, com os quais passou à convivência, caso da cantora Clementina de Jesus, de quem nunca perdeu um sorriso.

Integrante da festa de São João,
em Cachoeira, no Recôncavo
Baiano, em 1975

De vez em quando, ele que se entende com “alma ternurinha” dá “o coice” e se impõe. É preciso saber ser duro como foi com o poeta João Cabral de Melo Neto, que não gostava de ser fotografado. Firmo esperou acabar a entrevista que ele dava a José Castello para colocá-lo à janela. E para que o poeta fosse até lá, disse firme, elevando a voz: “Embaixador!” João Cabral concordou prontamente, assim como fizera o artista Arthur Bispo do Rosário, que tampouco queria ser retratado. Em 1985, ele obedeceu a todas as instruções de Firmo sem dizer palavra, até posar diante de um agave que evocava suas chagas emocionais. Firmo também simulou a saída de Madame Satã, figura célebre que deixara a prisão em 1976, por uma abertura na porta de ferro de uma loja do Rio. Os pretos brasileiros foram glorificados em sua fotografia, que surgiu de uma cumplicidade além das palavras. Não importa em que inverno vivessem, Walter Firmo descobriu dentro deles um verão invencível.

A glorificação da negritude na Festa de Bom Jesus da Lapa, na Bahia de 2001

As cópias imperfeitas

No primeiro passeio ao ar livre, pela praça 14 Bis, em São Paulo, eu tinha quatro meses. Curti? Não sei. Talvez tivesse sono. Talvez desconfiasse…

As fotos foram feitas por Walter Pavam, meu pai, reveladas e ampliadas em formato pequenino no banheiro de nosso apê alugado de um quarto no Bixiga. Nunca vi estas imagens coladas nos álbuns, estes que ele compunha como se diagramasse livros.

Esperava o foco perfeito da sua Flexaret, o enquadramento ideal, o sorriso de seu personagem ou a surpresa. E estas imagens não resultaram no que pretendia exatamente. Mas, como prezava a fotografia como entidade, não jogava nada fora, nem seus erros.

As duas imagens estavam localizadas em uma das pastas nas quais ele acumulava suas frustrações, as cópias imperfeitas, fosse pela foto em si, fosse pela ampliação malsucedida.

A primeira imagem não tem meu sorriso, e talvez ele estivesse insatisfeito com a composição. A segunda, compôs como queria, com essa diagonal rumo ao infinito, meu sorriso e o esplendor da praça ao fundo. Mas o fundo, justamente, parecia estourado e indefinido.

Então guardou tudo. Para usar depois? Era muito comum que ele desse cópias aos parentes, amigos presentes nas fotos. Muita gente que conheci só teve imagens de infância porque meu pai lhe deu. Uma grande generosidade da parte dele, porque levava a sério a infância. Mas o papel fotográfico era caro, suado para ele, que o usava também profissionalmente, para ampliar seu horizonte na pintura.

De todo modo, estas são tentativas muito bonitas da forma como foram feitas. O tempo as valorizou. Ou ganharam imenso valor pra mim.

Obrigada, menino velho, por tudo e em tudo que me fez.

Um dia no museu

Depois de exatos um ano e meio sem ir aos museus, fui ontem a dois. Os avisos sobre a pandemia são tão perceptíveis em cada canto, as pias dos banheiros, interditadas com tamanha fita isolante vermelha a intervalos frequentes, que é impossível esquecer de quem manda sobre nossa impotência, mas eu esqueci. Eu sou uma agitação interna tão grande depois de uma visita ao museu que é como se meu coração parasse por idênticos intervalos isolantes, e a química em minhas mãos para estancar o vírus não me atrapalhasse em nada.

Mário Cravo, eu e a praga do vidro sobre as molduras, no Masp

Deve ter pesado sobre essa intensidade o fato de que passo por uma suspeita ocular e a cada dia sinto necessário ver mais e mais, como se fosse a antepenúltima vez. Gosto de sentir isso, todas as urgências me confortam, porque também se tornam uma desculpa para, em casa, abrir meus livros de fotografia sem uma razão prática, sem um objetivo finito, sem a praga do dinheiro a queimar mais essa luxúria de perceber e sentir, e neles eu mergulho profundamente.

E eu me sinto livre, enfim, porque não gosto de colocar em prática o que vejo e sinto, e porque dificilmente serei compreendida quando exponho minha percepção. Conheço pessoas excelentes a compreender o que escrevo e a pedir um texto meu com alegria, até para sofrer de surpresa, mas, nestes últimos tempos, tenho escrito para gente ruim de novo, povo do dinheiro, dos editais e das assessorias de imprensa (me perdoem vocês, assessores, que não compreendo como aguentam). E me enraiveço ou rio.

Anteontem, por exemplo, uma galerista que desejava aparecer no meu texto informativo mais do que eu julgava ser de merecimento quis me machucar com uma estocada, dizendo que eu escrevera adjetivos. Não liguei. Sei que ela desconhece o significado de um adjetivo. E nunca, nunca mesmo, desde os tempos longínquos de submissão ao manual da Folha, liguei para essa interdição de classe gramatical. O que todo mundo tem contra os adjetivos? E os gerúndios? Leio os pobrezinhos como prêmios, anéis onde se esconde uma pedra vermelha, e luto para assentá-los bem na terra do meu jardim.

Mas isso não é importante. (A propósito, Senhor Democracia reclamava do “mas” em início de frase. “Você escreve bem demais para insistir nessa mania”. E eu ria por dentro, por saber a origem italiana da restrição). Importante é sentir que vivo três vezes mais quando vou aos museus. E aconselho a vocês que vivam também.

Fui ao Masp e percorri novamente tudo. Os moços das curadorias andam atrás do déficit histórico e expõem mais mulheres que antes. O acervo esteve bagunçado pro meu gosto, uma vez que deixaram a espantosa virgem com o menino de Bellini pro fim da viagem. Mas algumas autoras romperam o caminho da identificação nos cavaletes da Lina Bo Bardi, completando a composição no verso da tela, razão pela qual me diverti, doce vingança à necessidade que ela nos impõe de ter de olhar o tempo todo para trás em busca do nome do autor.

“O implacável”, de Maria Martins,
no Masp

Revi Maria Martins e senti o conforto de sua adjetivação. Seres míticos compostos de sentidos. Tormentos que nascem dos ventres de bronze. As figuras do “implacável” e do “impossível”. Que mulher. De Gertrudes Altschul, redescoberta aqui depois de exposição no MoMA (mas é claro), gostei deveras das sobreposições, como se a fotógrafa sonhasse explicitamente, e apreciei ainda mais os rostos raros e graves de seus personagens infantis (enquanto, nas fotos, a autora aparece rindo sempre).

No IMS, novas sobreposições, desta vez inesperadas, porque de Madalena Schwartz sobre Ney Matogrosso, para que seus movimentos não se perdessem. Que aparição representou o Ney no sopro do tempo! Mas o esforço de Madalena (que levava seu cachorrinho nas sessões) para capturá-lo na sua elasticidade expressiva o tornou interessantemente rígido. Os retratos de Madalena são poses estudadas, teatro explícito, e pelos filminhos ali exibidos sabemos que ela irritava os personagens com sua insistência e sua timidez. Alguns retratos de Paz Errázuriz também estão lá, e senti a diferença, a intensidade, a falta de intenção, a dor subjetiva de suas transexuais em comparação com as de Madalena.

Mário Cravo Neto também se expõe no IMS, e é previsivelmente um deslumbre. De Salvador a Nova York e à Dinamarca, captamos aquele seu furor de vida, que, ao contrário do que acontece com a doce Madalena, raramente se congela. Ele era escultor, como o pai, antes de se acidentar, imobilizar-se por um ano e passar a fotografar como gosto e necessidade. Mestre da subexposição com uma razão, a de viver com seus personagens, a de rodar como suas baianas, no caminho de exprimi-los, ele é um pintor também, e suas aquarelas são o que são, movimentos.

Saio do dia do museu como sempre, tentando, sem exatamente conseguir, expressar minha intensidade

Saí do dia do museu como saio sempre, com vontade de perceber o mundo à volta, mas meu telefone sobrecarregado dificultou os registros. De todo modo, contudo, porque a vida continua, eu seria interrompida, razão pela qual não liguei muito pra essa limitação, e sonhei à noite, e continuei feliz.

meu vazio instante

feita nos anos 1980, esta imagem me abriu uma possibilidade para a fotografia e para a vida.

eu era jovem e impetuosa. (talvez me reste algum ímpeto, às vezes.)

nos meus 20 anos, emocionei-me ao conseguir esta imagem para um trabalho de faculdade.

minha intenção era somente clicar a bela janela do bixiga, bairro onde eu morava, com a olympus portátil que uma colega me emprestara. mas eis que esta senhora apareceu. pedi-lhe que se virasse pra mim e ela não se virou. ficou assim, olhando o infinito, por um bom tempo. minha timidez me perguntava se eu deveria clicá-la sem que me autorizasse. minha ousadia decidiu por mim. a senhora não se importou com a foto que eu fiz.

somente depois descobri que fotografia de rua é feita principalmente assim. com o senso claro de que algo está sendo tirado de quem não nos vê. ou, como dizia meu querido e divertido flavio damm: “aproximar-se como um gato, fugir como um rato”, eis o que um fotógrafo de rua deve fazer.

só assim, meio caçadores, meio ladrões, obtemos a imagem límpida, não preparada, desnuda, a verdade por um segundo, principalmente a nossa, e então para sempre.

e será nosso dever devolvê-la ao universo como uma leitura digna, divertida ou dramática, da situação vivida. uma oferta à humanidade.

quem acolheu com assombro esta foto (e as outras do trabalho) foi meu então professor, tornado amigo para sempre, carlos moreira, para mim um dos mais extraordinários fotógrafos do mundo. me deu nota dez.

carlos me ensinou toda a base do que sei, em tantas conversas que acabávamos por fazer, durante curiosos e intensos encontros que aconteciam entre nós de dez em dez anos, a maioria deles gravados.

ultimamente, a seu pedido, eu vinha escrevendo um livro sobre sua vida. nos dávamos bem, ele me contava quase todas as coisas. mas acho difícil, por uma série de razões, que esse livro saia um dia.

choro em pensar que não tenho mais o carlos a meu lado. suas conversas sobre fotografia eram aulas para a vida. pura filosofia, em estado de beleza.

sempre soube que sofreria com sua partida, que fará dois anos logo mais, embora tudo dele ainda viva em mim.

eu apenas não previ que a dor seria tão grande.

e o vazio.