O filme de Tsai Ming-Liang presente na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo discorre sobre um princípio do cinema, o movimento
Por Washington DC, o caminhar lento do ator Lee-Khang Sheng, presente em todos os filmes do cineasta desde os anos 1980
Meu querido, admirável amigo Wesley Pereira de Castro, o único crítico de cinema que acompanho, me disse sobre “Permanência em lugar nenhum” que era desafiador, porém bom. Wesley, contudo, disse sentir falta do que o diretor Tsai Ming-Liang, da Malásia, fazia antes de iniciar, cerca de uma década atrás, a série de filmes sobre as andanças do monge Xuanzang, da dinastia Tang.
As pedras não são obstáculos
Interpretado por Lee-Khang Sheng, presente desde os anos 1980 em todos os filmes de Ming-Liang, o andarilho de pés descalços e cabeça raspada usa um manto vermelho para percorrer o mundo. E o filme capta seu andar em meio à paisagem, sempre muito lento. Com os braços em suspensão, ele inclina o corpo levemente para trás e coloca primeiro o calcanhar, depois o restante de um pé no chão; o outro pé faz o mesmo movimento e o corpo se inclina para frente de maneira que a passada seja concluída.
Um pé de cada vez
Não conhecia o diretor, portanto não sei o que fazia antes dela série “Walker”. Mas este filme não me pareceu difícil de ver, até pelo contrário. Ao fundo e ao redor, enquanto Xuanzang caminha, está Washington DC, o obelisco tanto quanto a estação de trem, entre outras paisagens amplas. Ninguém o interrompe, às vezes nem o percebe, exceto alguns turistas que param para fotografar. Os dias podem ter sol ou garoa, pode haver piscinas de água ou regatos com pedras a transpor, e o monge estará sempre a caminhar do mesmo jeito. O filme é isso, sem música exceto no final, mantendo o barulho original do lugar – às vezes pessoas falam e os passarinhos cantam, às vezes é a chuva que cai.
Olhando para as coisas
De maneira paralela, há o forasteiro interpretado por Anong Houngheuangsy a conhecer a cidade, olhando seus interiores e preparando seu miojo. Onde os dois se encontram? É um filme bem editado, em diferentes planos longos entre si, com fotografia solar. Um filme sobre o movimento, princípio do cinema. Um filme-meditação.
O diretor Tsai Ming-Liang
Sessões no Cine Sato (18h do dia 26) e no Cinesesc (16h50 do dia 28)
A comédia de 1973, exibida na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, recupera a suavidade demolidora do diretor francês Jacques Demy
Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni, grandeza que bem se vê
Curioso que a historiografia ocidental tenha colocado o diretor francês Jacques Demy (1931-1990) em um pé de página. Percorro rapidamente a biblioteca aqui de casa e constato a indiferença e o não-me-toques dos livros que o desprezam: o diretor Jean-Luc Godard o menciona como amigo em um poema, e fica por isso; os estudiosos de Éric Rohmer pedem o favor de não confundirem seu maravilhoso diretor com o outro; a crítica Pauline Kael sentencia que Demy fez tudo errado ao produzir um musical estático, inspirado nos estadunidenses, em seu clássico “Os guarda-chuvas do amor”. Não há créditos para Demy, ou todos eles foram usados para o bem unicamente por Agnès Varda, a viúva que o cultivou e o filmou nos últimos dias, tendo renascido ela mesma como estrela após sua morte e se tornado um justo objeto de culto atual.
Mais curioso ainda é que isto aconteça mesmo Demy não aparentando longinquamente ser demi, ser metade. E o que dizer daquele um quinto em que o confinaram? “Um homem em estado interessante” (1973) prova que meteram o diretor no lugar errado. Comédia não é algo simples de ser feito, ainda mais quando parece simples de ser vista – simples e louca -, além disso contestadora do estado de coisas. No caso, aqui, quase imbatível quando mistura uma rara leveza cômica com a substância, com o peso de uma argumentação reflexiva.
Grande Catherine: terá sido cabeleireira a vida inteira?
Em “Um homem em estado interessante” muitos universos cinematográficos se cruzam, da estranheza onírica assimilada como norma, originada em Luis Buñuel, ao desfilar do absurdo maquinário das ideias contemporâneas, na trilha de Jacques Tati. Demy é um demolidor suave. Para ele, neste filme, a confusão do Ocidente, sua grande ironia, está em determinar que toda fumaça de transformação possa sugerir a existência de um próximo passo, um fogo revolucionário (cinco anos se passaram desde 1968), embora essa rebeldia vá resultar no apagamento de sempre, o do consumo que destrói coisas belas. Ah, como é dolorosamente risível viver no capitalismo!
Marcello Mastroianni – há sempre Marcello nos tantos outros que interpreta – encarna o dono de uma auto-escola mal-sucedida em seu fundamento, o de ensinar os alunos a dirigir. Sua esposa, Catherine Deneuve, não é esposa, embora mãe de seu filho, uma cabeleireira com sonhos de subúrbio (e que grande atriz: terá nos enganado o tempo todo e sido cabeleireira a vida inteira?). Do nada Marcello começa a enjoar e sua barriga cresce demais, o que leva grandes especialistas médicos (uns empolados fumantes professorais) a constatarem que engravidou.
Em “Um homem em estado interessante”, a evocação de aspectos de uma vida a dois
Um parênteses aqui é que Demy parece evocar diretamente os atores Catherine e Marcello, na época pais de uma menina, mas nunca casados, no seu filme. O diretor Mario Monicelli ria ao contar que Marcello às vezes viajava no fim de semana para a Itália de modo a trazer um prato de comida como presente para Catherine, na França. Um prato de comida! Para Catherine! E então a barriga de Mastroianni passa a fazer mais sentido…
O fato é que a narrativa de Demy parte da conclusão médica para sua exploração pela imprensa (dos noticiários aos risíveis debates), pela publicidade e pelo próprio casal, feliz por negociar a um preço alto a novidade a lhes ocorrer, que, embora equiparável à descida do homem na Lua, nasceu, segundo um especialista, do consumo excessivo de alimentos processados com hormônios. O filme debocha de maneira avant-garde da condição de um homem grávido: logo o aborto será decretado uma normalidade indispensável, dizem as clientes do salão de beleza de Catherine…
Todo o cenário de cores vivas, o entorno urbano frenético, os pobres, os esnobes, os atores, os ricos, tudo neste filme fala e se agita, compondo um vigoroso painel documental de um tempo e de um lugar. Meus vivas inteiros para Demy, que após a sessão de cinema me fez ver com seus olhos a loucura da cidade onde vivo.
O diretor Jacques Demy, suave demolidor
Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Sessões no Espaço Augusta 2, 19h40 do dia 24, e no Espaço Augusta 1, às 15h50 do dia 28.
Restaurado, o filme de Raúl Ruiz presente na 48ªMostra Internacional de Cinema em São Paulo leva Marcello Mastroianni a um penúltimo tour de force
Marcello Mastroianni, o múltiplo
Embora classificado como comédia, o restaurado “Três vidas e só uma morte”, de Raúl Ruiz (1996), apresenta um tom a mais, que é o do sonho. Ou do pesadelo, aquele do qual não conseguimos escapar, a menos que nossos olhos se abram por muito querer. Os primeiros minutos desta longa ficção, narrados como seção de novela de rádio, não nos preparam para o pior.
É Marcello Mastroianni, em seu penúltimo filme, vencedor do prêmio de crítica da 20ª Mostra, quem comanda a série de reviravoltas, a oferecer a seus personagens – três em um – um show de expressões. E Chiara, sua filha, está lá, aos 24 anos, para levar a inocência impossível até as bochechas, sem lhe contrapor. Marcello pode ser bom, pode ser mau, engraçado, cínico: ele alterna estados de espírito, mas também muda de personagens como quem estala a vontade de transformar, devorar e lamber tudo.
Mario Monicelli, o diretor com quem trabalhou tantas vezes, costumava dizer que Marcello, assim como Totò, sempre andavam à frente. Chegavam ao estúdio com tudo decorado e aprendido, razão pela qual poderiam mudar o rumo de sua fala, improvisar, fazendo o filme crescer. No final de sua carreira e sua vida, nota-se Mastroianni perfeito ainda, cheio dos pequenos gestos que definem as três vidas representadas. É como se as diferenças não importassem quando está em ação, sendo ele Marcello, acima de tudo, sempre. O ator dita com os olhos os rumos das coisas, mesmo quando o resto de seu corpo parece responder com vagar.
Ruiz procurou reproduzir o clima onírico em tudo, e para isso dividiu a tela algumas vezes, lidando com as possibilidades gráficas da época para dar espaço a fadas terríveis e insuspeitas monstruosidades nos papéis de parede. Há vida e cor nesses sonambulismos, e é muito divertido o humor quando não prima pelo sentido – ou, melhor dizendo, quando o multiplica. Eram os anos 1990, depois que diretores como Terry Gilliam haviam aberto as portas às novas percepções (e se você gosta dos livros de Carlos Castañeda, vai chocar-se no transcorrer do filme). O mundo da arte saiu da era Reagan petrificado, e os bons filmes do período retrataram esse clima de horror.
“Três vidas e uma morte” traz ainda Marisa Paredes (“Tudo sobre minha mãe”) como uma das mulheres desse Mastroianni múltiplo. Isto é um sonho ou não?
O diretor Raúl Ruiz
Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Sessão na Cinemateca Petrobras, 14h do dia 25.
O filme de Christophe Honoré presente na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Pauloviaja pelo reencontro de Chiara Mastroianni com a figura de seu pai
Chiara, a “Polpetta” do pai
Para os cinéfilos das celebridades europeias, parece ser motivo de curiosidade e admiração o fato de Chiara Mastroianni ter abraçado a profissão dos pais. Sabemos que Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni não são atores quaisquer, que flutuam na poeira de estrelas e que talvez tenham reinventado o cinema. Então, por que sua filha se aventuraria nessa direção, certa de que não poderia repeti-los?
Isto, este longa ficcional não vai nos explicar. Mas a doce e leve Chiara quer nos fazer crer que, aos 52 anos, ainda busca a si mesma e que essa procura envolve bastante coisa – memória, convicções, história, psicologia – amarrada em névoa musical pelo diretor Christophe Honoré.
A mãe Catherine, intensa presença
A mãe Catherine, viva, pulsante, opina sem dó em sua vida. Eis alguém presente, e pelo jeito não apenas no elenco deste filme, a ressaltar a brevidade de tudo. Pena que o pai se foi. Chiara, que muito sente sua falta, resolve reencarná-lo para suprir uma ausência que não aflige somente a ela, mas a todos ao redor. E também porque, atriz consolidada, ainda reclamam que ela seja um pouco daquilo que ele foi. Ser Marcello, por assim dizer, vai auxiliar seu reencontro consigo mesma – ela tão francesa, ao contrário do pai.
O filme, portanto, é muito mais “Chiara, io” que “Marcello mio”. Nesse caminho, a “Polpetta”, como a chamava o pai, vai penar. Ela o ressuscita em seus figurinos célebres, no rosto tão semelhante, nos gestos e encantos. Sabemos que não fala como ele, não apenas porque seu italiano é afrancesado. Não fala como ele porque não faz suas circunvoluções verbais, não tem o pensamento no ar. Mas algo de sua ironia, de sua leveza, de um erotismo que quer esconder-se, isso ela possui. Como ele, pode cantar acompanhada por um cão…
A face que é espelho
No périplo que é essa espécie de versão de Chiara para “Oito e meio”, ela vai encontrar os intensos amigos, o ex-marido Melvil Poupaud, por exemplo, que contracenara ao seu lado e de seu pai em “Três vidas & uma só morte”, dirigido por Raúl Ruiz (de 1996, penúltimo filme em que Mastroianni atuou, também presente na mostra) e os grandes do cinema, como a atriz Stefania Sandrelli, que atuou ao lado de Marcello em “Divórcio à italiana”, de Pietro Germi (1961). Eles ora aconselharão Chiara, ora a apoiarão ou a deixarão saber quão fantasmagórica se tornou ao encarnar o pai.
Hora de evocar “A Doce Vida”
“Marcello mio” evoca “A Doce Vida”, “Noites Brancas”, “Ginger e Fred” e “Dois Destinos”, entre outras obras de que ele participou. Especialmente, de maneira afrouxada, deixa-nos navegar pelas entrelinhas da vida familiar. Descobrimos assim que Catherine desconfiava muito de Marcello, de sua infidelidade pela noite, embora os dois nunca tivessem se casado. Ela esteve quase certa de que Marcello pegou Maria Callas quando o casal morava, com a filha, no andar acima daquele apartamento habitado pela cantora, em Paris…
O filme transcorre entre a representação de coisas como essas, mais ou menos pequenas, uma delas especialmente carinhosa: o ator adorava patinação e assistia ao lado da filha, pela tevê, aos torneios do esporte, duvidoso dos juízes. Saímos do filme convencidos de que Marcello era uma criança também, eterno para Chiara como para nós.
O diretor Christophe Honoré
Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Sessões no Cinesystem Frei Caneca 2 (17h do dia 22), Espaço Augusta sala 1 (19h30 do dia 23) e no Cinesystem Frei Caneca 1 (13h do dia 25).
O primeiro longa do alemão Jonas Bak, de 36 anos, é um deslumbre fotográfico em 16mm sobre a solidão existencial
A protagonista Anke Bak vislumbra Hong Kong
Dirigido pelo alemão Jonas Bak, Madeira e Água é um primeiro e poderoso filme, presente agora na 45ª Mostra Internacional de Cinema e anteriormente exibido na seção Perspectivas do Cinema Alemão do Festival de Berlim. Embora a trilha de Brian Eno seja importantíssima para imprimir a sensação de viagem solitária que a obra exige, sua atração mais forte repousa na fotografia do filme em 16mm, a cargo de Alex Grigoras. Protagoniza o longa-metragem a mãe do ator, uma não-atriz, Anke Bak, e outros integrantes da família também compõem o elenco.
Como ficção de estreia, esta não evita o tom autobiográfico enviesado. A Hong Kong que Bak vê durante os conflitos de rua de 2019, iniciados em repúdio a um projeto de lei que permitiria a extradição de suspeitos de crimes para a China continental, é igualmente a cidade onde viveu, e que, já saudoso, deve abandonar. Ele não discute o conflito das ruas, mas não deixa de visualizar, à distância, sua existência constante, como a romper o equilíbrio de um mundo antigo.
O diretor Jonas Bak
Jonas Bak nasceu em Konstanz, Alemanha, em 1985. Estudou direção no Edinburgh College of Art, na Escócia, e trabalhou como diretor de cinema e fotografia em Londres e Hong Kong. Dirigiu dois curtas, Wanderdrachen(2016) e One and Many(2017), antes que Madeira e Água surgisse.
É bastante viva a imensidão da paisagem em relação ao homem na sua ficção, tão devedora da arte fotográfica de Wim Wenders, cineasta que na entrevista a seguir Bak diz admirar. “Wenders foi um daqueles diretores a me ensinar novas maneiras de ver e admirar filmes, entendê-los mais como uma experiência sensorial do que intelectual.”
Na igreja alemã onde Anke reza para ter força contra os problemas, não para pedir por seu fim
A protagonista se aposenta do trabalho, adquirido após a morte do marido, na igreja de sua cidadezinha na Floresta Negra. Anke é religiosa a seu modo. Reza para ter forças de lidar com problemas, não para não ter problemas. Ela está ansiosa para rever a família durante as férias de verão no mar Báltico, mas à última hora, Max, um de seus filhos, não consegue se juntar a seus familiares por causa dos protestos em Hong Kong, onde vive. Sem vê-lo há muitos anos, e depois de um verão passado com as filhas na casa que lhe traz tantas lembranças, Anke decide visitá-lo. O filme ganha sua dimensão simbólica nesta passagem que ela faz, solitária, pelo território estrangeiro, à espera de que o filho, vítima de depressão, volte de uma viagem de negócios. Ela passa os primeiros dias sozinha no exterior, e lá se relaciona com os amigos de Max. A visita a um deles rende-lhe uma leitura filosófica, feita por uma espécie de xamã local. A personalidade de Anke, diz-lhe o chinês, é composta pela mistura de dois elementos, a madeira, relacionada à criatividade e à imaginação, e a água, que busca a filosofia e o conhecimento.
O filme, que busca inspiração na fotografia e na pintura, é profundo ao descortinar paisagens, especialmente do alto, de onde o casario e os prédios parecem ordenar o mundo dos homens. É um filme que vagueia, que se faz com as pernas, como sugere o autor, estas que batem em busca de outras camadas da vida, as profundas e escondidas.
As muitas camadas de paisagem
A seguir, a entrevista que fiz com o diretor.
Este é seu primeiro longa-metragem depois de ter realizado dois curtas. Quais são as principais diferenças entre esses dois formatos para expressar suas ideias?
A principal diferença é que tenho mais tempo e posso realmente moldar o filme com esse tempo que tenho. Talvez tivesse sido possível montar “Madeira e Água” como um curta, mas então estaria perdido tudo o que ficou escondido sob a trama. Os temas mais profundos do filme aparecem quando se passa tempo com a personagem e em sua jornada. Também é possível contemplar mais de um tema em um filme mais longo. Nossas vidas são muito complexas. Podemos atingir um espectro amplo e ir fundo no que significa ser humano a partir dessa duração ampliada.
Hong Kong, o mundo ordenado a partir de cima
Como nasceu “Madeira e Água”? O tema do filme corresponde de alguma forma à trajetória de sua família?
Nasceu enquanto eu morava em Hong Kong. Eram minha própria alienação cultural, a situação de minha mãe em casa e as mudanças políticas em Hong Kong que eu queria transformar em filme. Usamos muito de nossa própria formação e emoções para contar a história. Senti uma certa saudade de casa. Na vida real, minha mãe passou a morar sozinha e se aposentou um ano depois que terminamos as filmagens, então houve muitos paralelos entre o filme e minha realidade.
O projeto de escrita do seu filme foi modificado durante as filmagens? Ou todo o seu planejamento seguiu o roteiro inicial?
Escrevi um roteiro para a primeira parte do filme na Alemanha e na Dinamarca. E fiz isto principalmente para aprimorar os ensaios com minha mãe. Ela nunca havia atuado antes e precisávamos de algo para trabalhar. Ensaiamos por cerca de um mês e o que você vê no filme está muito próximo do roteiro. Foi um pouco diferente quando filmamos Hong Kong. Escrevi esta parte logo depois de rodarmos a primeira e ensaiamos apenas por alguns dias com os outros atores. Depois, meio que abandonamos o roteiro e abordamos as coisas com mais liberdade. Minha mãe teve confiança para improvisar e se adaptar às mudanças a que a situação em Hong Kong nos lançou. Seguir nossa intuição, mais do que um roteiro, também teve o belo efeito de transformar tudo numa jornada para nós em nossa pequena equipe. Todos nos tornamos parte da história e isso criou uma atração, vivemos nela.
Protestos em Hong Kong, menção à distância
Você estava em Hong Kong durante os protestos de 2019 para fazer seu filme? Por que escolheu Hong Kong como parte das locações?
Sim, nós filmamos durante os protestos, mas não foi planejado dessa forma. Eu não queria fazer um filme político quando o escrevi pela primeira vez. Os protestos aconteceram e não pudemos evitá-los, eles tomaram conta de toda a cidade naquele período. Escolhi Hong Kong principalmente porque havia morado lá por três anos e sabia que retornaria à Europa. Foi minha despedida de Hong Kong, no sentido positivo. Sinto-me muito nostálgico olhando para aquela época e para a Hong Kong que conheci.
Você gosta de trabalhar com não-atores? Acha que eles possam ser mais naturais, como pensava o neorrealismo italiano?
Alguns dos personagens de Hong Kong são interpretados por atores, mas eu prefiro trabalhar com não-atores. Gosto quando as pessoas interpretam uma versão de si mesmas. Isso me dá autenticidade e a chance de usar sua confiança em quem elas são. Mas depende do projeto. Em um filme tão pessoal, silencioso e contemplativo, vou preferir sempre trabalhar com não-atores. Contudo, em um filme que se baseie no diálogo ou queira se aprofundar na psicologia de um personagem ou relacionamento, eu preferirei atores profissionais.
À volta de um quarto compartilhado em Hong Kong
Por que você filmou “Madeira e Água” em película?
Nossa abordagem visual foi muito diligente e cuidadosa: posições de câmera fixas e composições fixas, como se estivéssemos tirando fotos. Tirar fotos tem algo de nostálgico, você quer congelar um momento antes que passe. Na primeira parte estão as fotos antigas, são memórias. Depois, há Hong Kong, que muda drasticamente e nunca mais será a mesma, e eu queria preservá-la de alguma forma. O cuidado que você precisa ter ao trabalhar com 16mm enfatiza essa abordagem. E tem uma presença forte na tela grande, parece muito tangível. Em um nível mais prático, dava a tudo uma sensação de ação dentro da vida. Não fomos capazes de filmar 30 tomadas por cena sendo minha mãe uma não-atriz, então tivemos de ser muito cuidadosos ao rodar a câmera. Precisávamos estar certos de que sabíamos o que estávamos fazendo. O digital oferece muitas opções, às vezes.
A fotografia é um espetáculo à parte neste trabalho, em que as cores também ilustram a psicologia dos personagens. Você parece de alguma forma reviver o que os grandes diretores-fotógrafos fizeram, como Wim Wenders ou Michelangelo Antonioni. Qual a importância desses diretores para a sua formação como cineasta? E quais cineastas foram decisivos?
Obrigado por comparar a fotografia do filme àquela de heróis como Wenders e Antonioni. Eu pessoalmente fui fortemente influenciado por Wenders quando estava na escola de cinema e quando fiz meus primeiros curtas-metragens. Ele foi um daqueles diretores a me ensinar novas maneiras de ver e admirar filmes, entendê-los mais como uma experiência sensorial do que intelectual. Eu não tento copiar nenhum outro cineasta, mas pessoas como Chantal Akermann, Angela Schanelec, Tsai Ming Liang, Apitchtpong Weerasetakul, Sharunas Bartas (seu trabalho inicial), Bela Tarr, etc. certamente deixaram uma marca inconsciente em minha forma de abordar os filmes.
Como você e seu diretor de fotografia trabalham? Ele escolhe as locações, por exemplo, ou este é um trabalho que vocês fazem juntos?
Em “Madeira e Água” eu escolhi as locações, porque morava nelas ou em sua proximidade. Passo muito tempo a encontrá-las, é uma das tarefas que mais gosto empreender. Para mim, fazer filmes está em minhas pernas, em sair, ver lugares e conhecer pessoas. Não fizemos um storyboard de antemão e trabalhamos de forma muito colaborativa e intuitiva.
Na maioria das vezes, tenho algum tipo de ideia de enquadramento que corresponde ao que Alex propõe. Em relação à iluminação, dou carta branca para ele, é muito técnico para mim. Tanto quanto podemos, usamos iluminação artificial mínima e trabalhamos preferencialmente com luz natural. Somos amigos próximos, temos um entendimento mútuo de filmes e estética e trabalharemos juntos no futuro.
Você já trabalhou como fotógrafo? Gosta de investigar o trabalho de grandes nomes neste campo? Por que usou fotos para representar o passado familiar do seu protagonista?
Nunca trabalhei como fotógrafo, mas sempre gostei de tirar fotos analógicas. Meu pai era um fotógrafo afiado e talentoso e sua câmera antiga é uma das coisas que ainda guardo e uso muito. Mas as pinturas sempre me inspiraram mais do que as fotografias. Hopper, Caravaggio, Rembrandt, Hicks, Schikaneder, Ilsted, Schiele, Kiefer etc. têm uma presença tão forte que nos atraem.
Seu filme contribui para a discussão de questões importantes, como depressão, o papel da religião e da família. Ele sugere que o crescimento da depressão no mundo possa estar relacionado à ausência de um sentimento pessoal sobre o sagrado. Em sua opinião, o ser humano está destinado à solidão na sociedade contemporânea?
Muitos fatores contribuem para o aumento das taxas de depressão. Um deles certamente pode ser a perda da crença em algo maior do que nós mesmos e da fé religiosa, em uma vida após a morte. Isso cria um medo do nada, questões sem resposta. Colocamos nós mesmos e o progresso no centro de nossa existência, e isso é perigoso.
Devemos abraçar nossa solidão e não ter medo dela. Pelo menos, aprender a enfrentá-la e conviver com ela. A solidão é uma parte inevitável do ser humano. A solidão que as estruturas sociais, a pressão social e, por exemplo, a vida na cidade ou a covid impõem sobre nós é de um tipo diferente, contudo. É realmente assustadora, e outro fator importante para o aumento dos problemas de saúde mental.
O primeiro, belo e poético longa-metragem de Adilson Mendes é obra madura sobre um dos mais importantes diretores do Brasil
Ruy Guerra, olhar direto
Cinema sobre cinema. Assim se pode resumir Tempo Ruy, o filme do diretor Adilson Mendes sobre o diretor Ruy Guerra, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Com montagem de Fábio Costa Menezes e fotografia de Saulo Nicolai e Kae Rodrigues, Adilson Mendes voa como um pássaro poético sobre a trajetória de um relegado da historiografia, o moçambicano tornado brasileiro pelo cinema Ruy Guerra. É seu primeiro longa-metragem, mas nem parece.
O diretor de “Tempo Ruy”, Adilson Mendes
Historiador formado na Unesp, com habilitação em cinema pela USP, Mendes aprofundou-se em curadoria e história, com ênfase em história do cinema e patrimônio audiovisual. Foi pesquisador da Cinemateca Brasileira, onde trabalhou em curadorias, edições e restaurações. Organizou o livro Ruy Guerra – Arte e Revolução e na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, no ano passado, ministrou, ao lado de Ruy Guerra, o curso on-line “O Trabalho de Ruy Guerra”. Sua única obra anterior como cineasta foi o curta Eu Posso Ir.
Mendes conheceu Ruy Guerra quando participou da equipe da Cinemateca responsável pela restauração de Os Fuzis, uma obra-prima brasileira possivelmente sem pares. A crise de 2013, que atingiu a instituição, impediu a finalização do restauro. E Mendes foi a pessoa encarregada de viajar até o Rio para contar isso a Ruy Guerra. “Dei sorte e nosso santo bateu. E na pandemia estreitamos os laços”, ele conta.
O filme foi rodado durante a pandemia naquele pedaço de mundo onde Guerra vive ao lado de seu enfermeiro, Gerônimo Quirino, um personagem apresentado em sequência memorável. É como se, por meio dela, estivesse ilustrada a própria trajetória atlântica de Guerra rumo à pasárgada brasileira, onde, misturado à paisagem e seus desígnios, o moçambicano escolheu aplicar as lições de cinema que primeiro aprendeu com os franceses.
Em seu recolhimento, com humor
Ruy Guerra fala e pontua bem o que diz, como se o tempo realmente lhe pertencesse. Autor de livros, poemas e canção popular, ele lê por todo o filme. Tem o mau humor divertido e no seu coração não parece haver rancor nem mesmo por Glauber Rocha, que rompeu com ele por imaginá-lo espião da ditadura portuguesa, ou algo nesta linha sem sentido. Mas Guerra, como bem recorda, despediu-se dele em funeral.
O filme persiste em imagens litorâneas estendidas, em reflexos e sombras do cinema mudo, e todo o tempo parece encenar um sereno adeus.
Um cineasta reconhece outro e, aos 90 anos de idade, Guerra diz a Mendes que demora a morrer. Isto, como é de supor, o faz presenciar a perda um a um de todos os grandes amigos, como Gabriel García Márquez, de quem diz se lembrar todos os dias. Ele suspeita que esta seja a maneira que a vida encontrou de lhe dizer que talvez seja possível perdê-la sem lamentar. Mas Guerra, indiferente ao que o tempo rui, sempre preferirá viver um pouco mais.
A seguir, as respostas que Adilson Mendes deu às minhas perguntas:
Como se deram as conversas para a realização deste filme?
O convívio diário com Ruy Guerra durante a pandemia fez com que ficássemos amigos e a ideia do filme surgiu como forma de ajudá-lo a existir durante esse período difícil. A amizade forte permitiu a liberdade criativa.
Sentiu necessidade de procurar outros personagens envolvidos em sua história? Ou ele lhe pediu que se concentrasse apenas em seus depoimentos e cartas?
Achei que seria apropriado fazer um filme huis clos com ele em sua casa. Um caso isolado com possibilidade de generalização. Uma estrela solitária capaz de iluminar uma constelação inteira: a cultura brasileira, que agora está sendo tragada por uma nebulosa. E o brilho de Ruy é a resistência vital.
Me fale um pouco sobre a escolha da trilha musical, que me parece tão acertada, ao intensificar as passagens, os belos travellings.
A trilha é fruto do enorme talento de Dino Vicente. O trabalho dele foi fundamental para a estruturação do filme. O título do filme traz a palavra “tempo” no sentido musical. Por isso, a música deu ossatura à massa gelatinosa das imagens e da voz de Ruy.
Esse seu estilo de documentário, que explica sem se detalhar ou identificar (como acontece numa emocionante sequência em câmera lenta em torno do enfermeiro de Guerra, e pode indicar, além da fragilidade física do diretor, sua trajetória afro-atlântica), foi desenvolvido a partir do interesse em documentários específicos? Quem são os documentaristas que mais lhe influenciam?
Durante a década e meia em que trabalhei na Cinemateca mergulhei na história do cinema. E certamente a tradição documental me marcou, especialmente a de Georges Franju, que também marcou demais a sensibilidade de Ruy.
Manancial inesgotável
Como você vê Ruy Guerra no panorama do cinema brasileiro? Crê que ele não foi suficientemente visto ou valorizado? Quais são os filmes essenciais da cinematografia dele, a seu ver, e por quê?
Ruy é manancial inesgotável. Sua coragem de se renovar a cada filme é inspiradora para qualquer cineasta que queira fazer um cinema de combate. Para mim, Ruy é o autor do único filme brasileiro: Os Fuzis. Quando observamos a fortuna crítica de Ruy, notamos que sua obra repercutiu mais na França do que no Brasil. Os clássicos da historiografia do cinema moderno o ignoram ou passam rápido por ele, sempre reproduzindo o belíssimo texto de Roberto Schwarz sobre Os Fuzis, “O cinema e Os fuzis”, de 1966.
Tem um próximo projeto cinematográfico do qual possa me falar?
No momento desenvolvo alguns outros filmes, ficção e documentário. O mais avançado, que sairá no começo de 2022, trata da entrada do MST no mercado financeiro.
O filme fabular e fantástico de Jo Sol, incluído na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é um raro exemplar de apego à aventura cinematográfica
Armugan, hora decisiva
A vida confunde tudo. Faz do fim, o começo. E só a morte parece curá-la.
Eis as verdades que este diretor catalão não teme dizer. Aos 52 anos, Jordi Solé, o Jo Sol, reza por um antigo testamento do cinema. Fazer um filme, e ele vem dirigindo longas-metragens por duas décadas, parece-lhe uma aventura necessária e franca, a exigir sempre um novo risco.
Seu longa Armugan, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, nasceu depois de Sol ter trabalhado com Íñigo Martínez em um filme para a tevê. Ator e bailarino de dança inclusiva que vive entre os palcos alemães e os de Barcelona, onde se formou, Martínez acendeu a imaginação fantástica de Sol. Em 2017, o cineasta ofereceu-lhe o papel de protagonista no filme que imaginara, sobre um homem que ajuda os outros a morrer nos Pirineus.
De início, Martínez hesitou. Era tudo muito estranho. “Eu teria de chegar até aquelas montanhas em minha cadeira de rodas e, por seis semanas de filmagens, deveria simplesmente deixá-la de lado”. Pesava a favor de Sol que Martínez o conhecesse bem e lhe tivesse amizade, confiança. Mas a tranquilidade só veio mesmo depois da leitura do roteiro. O ator aceitaria interpretar aquele ser que encaminhava os moribundos à morte. E o faria de forma espetacular, quase sem proferir as difíceis palavras do dialeto aragonês.
Entregue a Anchel, que o carrega nas costas
Durante todo o filme, Armugan está agarrado a Anchel, o personagem vivido por Gonzalo Cunill. Anchel, que às vezes evoca, em aparência física, o Antonio das Mortes de Mauricio do Valle, carrega-o nas costas até as casas onde estarão as famílias ansiosamente à espera. Só Armugan sabe qual será a hora decisiva, como um espírito religioso saberia. A certa altura do filme, contudo, Anchel o provoca a decidir pela morte de quem pede por ela. Mas como Armugan faria isso? Embora saiba a hora certa em que todos vão morrer, ele não tira a vida de ninguém.
A atuação de Martínez é concentrada. Seu corpo, extenuante morada, é também seu infortúnio. Sol filma em preto e branco. Está sempre muito próximo dos personagens, até de Armugan com suas ovelhas, mas não exige diálogos extensos dos atores. É extraordinária a qualidade da montagem que faz a história andar. E inacreditável a locação escolhida no topo das montanhas. Grandeza e simplicidade caminham juntos neste filme em que o desafio está implícito: o sol e a morte são duas coisas que não contemplamos sem piscar.
Filme de Radu Jude que parodia a caótica realidade romena, em cartaz na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ganhou o Urso de Ouro em Berlim
A professora, ou a lucidez, sob escrutínio dos medíocres, os pais
Diz-se da paródia que é o canto paralelo a uma obra artística, literária ou fílmica, muitas vezes operado em sua forma humorística. Contudo, além da obra artística, a paródia pode espelhar a realidade quando esta se oferece mais rica em possibilidades de escárnio que a literatura, por exemplo. Pornô Amador, do romeno de 44 anos Radu Jude, vencedor do Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim, é um delicioso canto paralelo do real. Muito se diz que esta realidade aproxima-se da brasileira, e é fato. O caos, a violação, o preconceito e a falsa moral merecem, aqui ou lá, que os artistas a escrachem com humor crítico, disposto a derrubar o indesejado estado de coisas de uma vez.
O diretor Radu Jude
Contudo, as semelhanças com este país param por aí. Porque, no Brasil, convive-se com a submissão gentil à opressão, enquanto na Romênia de Radu Jude os temperamentos estão sempre raivosamente quentes, ainda que igualmente ineficazes, contra o que se vive no cotidiano. O humor dos romenos é o mau humor, é a briga, o ardor.
Quinquilharia do consumo
O argumento do filme, muito simples, não oferece reviravoltas, exceto na terceira e derradeira parte do filme. A professora que faz um vídeo caseiro de sexo com o marido é surpreendida ao constatar a filmagem na boca do povo – a internet. As crianças descobrem o filme e o mostram em casa. Pornô Amador transcorre em um dia da vida desta professora até que a noite chegue e ela precise enfrentar os pais em uma reunião escolar à qual foi especialmente convocada. Será demitida por obscenidade ou conseguirá provar sua óbvia inocência? A reunião, na apoteose do filme, é alegórica das instituições romenas: o militarismo, o racismo contra os ciganos, a alienação social, o amor ao dinheiro, o falso puritanismo, o descrédito à cultura e o analfabetismo funcional são representados por atores cômicos específicos. A professora, no fim das contas, será a única a interpretar a lucidez, ainda que mal-humorada também.
Os pais, alegorias da abominável classe média que tão bem conhecemos
O filme é construído sobre três engenhosas partes. A primeira, que se pode chamar turístico-reflexiva, apresenta a paisagem de Bucareste com o devido respeito às contradições urbanas. A câmera flâneur não se resume a localizar a caminhada da professora pela cidade, antes se distancia dela para acompanhar os letreiros, os grafites, a arquitetura mal ajambrada. Tudo nessa Bucareste é o caos que não se ordena, o mecânico e repetitivo sobre o vivo, a piada em elaboração.
Envelhecendo na cidade
Na segunda parte, as reflexões assumem independência e vêm apresentadas de inúmeras maneiras, submetidas a jogos godardianos entre palavra e imagem. “Melhor parir um bezerro que infartar”, diz a loira que, perseguida por um touro, decide ceder a sua força. As anedotas sobre o terrível passado histórico se seguem. O braço direito paralisado de um paciente alemão só se mexe, esticando-se para a frente, quando um médico grita “Heil, Hitler”. Um personagem se alegra com o naufrágio do Titanic porque “o mar ainda existe”. E há quem sentencie que a beleza da mulher reside em seu marido. Nesta parte, a melhor do filme, a vida humana se vê apresentada como tragédia e comédia. E a pornografia é o reino de terror do coração.
Hipocrisia é isso aí
PORNÔ AMADOR
(“Bad Luck Banging Or Loony Porn”, “Babardeală Cu Bucluc Sau Porno Balamuc”)
Só faltou Luiz Melodia para tornar “Sem Arrependimentos”, na competição de novos da Mostra Internacional, mais ainda do que ele já é, o filme mais bonito de gênero desprezado a que pude assistir neste festival
Parvis (Benjamin Radijaipour): Sailor Moon, por justiça e por amor
“Sonhei que morríamos juntos”, diz o jovem Parvis a seu amor, Amon.
Você já ouviu alguém falar isto num filme? Ou mesmo sonhou isto? Eu não. Ou não me lembro.
“Sem Ressentimentos” (“No Hard Feelings”, ou “sem duros, pesados sentimentos”, no original, para que se entenda que o sexo é uma alusão direta presente na narrativa) diz esta e tantas outras coisas.
Transforma-se o filme num poema de despedida a cada frame inusual, raciocinado, mágico como o pensamento do iniciante diretor alemão Faraz Shariat, que sente ao imaginar o cinema, coisa em desuso franco.
Parvis, Banafshe (Banafshe Hourmazdi) e Amon (Eidin Jalali), em paraíso alemão
Um dos mais belos, senão o mais belo filme a que pude assistir entre as cabines virtuais concedidas gratuitamente a jornalistas cadastrados nesta 44 Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
A história do filme é em parte a dele, diretor alemão de origem iraniana, incerto sobre se sua origem determina o que é. Parvis (Benjamin Radijaipour), protagonista com tanto de seu, exerce a liberdade como adolescente o quanto possível. Seus pais, migrantes iranianos de três décadas, construíram uma vida sólida em pais alheio, ali gerindo um supermercado, mas agora querem voltar ao Irã teocrático, onde aguardam Parvis a humilhação e a perseguição. Ele tem uma irmã mais velha, de quase trinta anos, alemã também.
Quando companhia é solidão
Todos na família sabem que Parvis é gay, queer, com os gestos sinuosos, a excitação nos braços e no mover da cabeça pintada de loiro no alto. Todos o amam sabidos disso, reverentes a isso, enfim.
Sua espécie de orixá é a deusa Sailor Moon, que na animação japonesa, ele diz, representa a justiça e o amor. Numa festa sem ânimo, ele veste este cosplay para que ao fim, em plena pista de automóveis no alvorecer, bêbado, desfaça sua fantasia, em quase alusão ao personagem de Alberto Sordi em “I Vitelloni”, filme em que Fellini analisa as dores de uma adolescência prolongada.
O fato é que Parvis fala um persa estranho, que ninguém no Irã ou do Irã entende, algo (mais um) que o desobriga a se sentir ligado ao país. Um dia, contudo, após cometer uma contravenção, ele passa a cumprir serviços comunitários num abrigo da Cruz Vermelha para migrantes de sua origem. Precisa dar assistência aos temporários em busca de residência fixa na Alemanha, precisa brincar com as crianças, recolocar uma rede de futebol sem entender o que é futebol, até mesmo traduzir o apelo de uma iraniana por permanecer no país, mas incapaz de compreender o que ela diz.
Não compreende e não é compreendido igualmente por todos no abrigo, exceto por Banafshe (Banafshe Hourmazdi), irmã de Amon (Eidin Jalali), que pouco a pouco o levará a seu amor. Os iranianos temporários são em vasta maioria homofóbicos por formação e pela violência.
Tudo isto vai se passando com a bela leitura visual dos corpos, gestos e rostos movidos num espaço particularizado mas alongado, enquanto as coisas do mundo, e o mundo, se tornam paisagem secundária.
É um filme sobre adolescência. Que coisa tão comum, não?
Pois… não.
O diretor alemão Faraz Shariat: “Sem Ressentimentos” é seu primeiro longa
A fotografia de Simon Vu é extremada, cores e luminosidade se alteram para dar nitidez, passo a passo, à caracterização dos belos personagens. Novamente, quase: é quase como assistir ao caminho de Fritz Lang por Hollywood, quando a inventividade na composição se renovava quadro a quadro com o objetivo de contar uma história policial.
É o que Shariat, de 29 anos, consegue aqui, narrar uma trama de gênero adolescente desprezado. Mas uma história que de banal, nada tem.
Amor, esse algo que a fotografia de Simon Vu capta tão bem
“Caminhando contra o Vento”, na competição Novos Diretores da Mostra Internacional, mostra uma China corrupta, incapaz de apontar um bom futuro para sua juventude
Trapaça que resulta em prisão, favorecida por um sistema que admite propinas
Se o impedimento a toda e qualquer liberdade de expressão estivesse em vigência na China, a produção deste filme dificilmente teria se dado. “Caminhando contra o vento”, o primeiro longa-metragem de Wei Shujun, é tudo menos o elogio a um horizonte de excelência para a juventude do país. Naturalmente, seu final se aproxima de conciliar as coisas, mas o que importa está no meio da narrativa. No desajuste constante, acelerado, implacável, que parece o único possível a dois estudantes de sonoplastia cinematográfica.
Meu reino por uma SUV
A faculdade de cinema chinesa de nada serve a nossos protagonistas quixotecos às avessas, que atuam como em uma dupla cômica, fadada a seguidos tropeços. O menino magro tem um nome, Kun Zuo, que o liga à palavra “universo”, aqui em desencontro. Kun (interpretado por You Zhou) tem uma namorada adequada ao sistema, mas o jovem se julga em condição de vencê-lo pela trapaça aberta, sem o mínimo cálculo dos riscos. Ele compra até mesmo uma SUV de filtro quebrado, e por este erro se enreda. Seu amigo gordo, A Ming (Wang Xiaomu), tem-lhe toda a fidelidade, jocosa e sem noção. E o sistema rodoviário chinês não é uma maravilha: seus fiscais são facilmente corrompidos, como aqui.
Wei Shujun, diretor de “Caminhando contra o vento”
É a faculdade deles, sendo paga, o maior roubo das expectativas dos seus pais. Os alunos não a querem, e só aprendem enquanto trabalham por si, mesmo que atabalhoadamente. Em meio ao trabalho, aprontam tolices como dirigir bêbados, quando isto na China dá suspensão imediata de carteira e detenção de dez dias, ou roubam provas para revendê-las aos alunos em exame.
Contudo, as trapalhadas expostas não transformam este filme em comédia – por vezes, infelizmente, nem mesmo em bom filme. O diretor Wei Shujun, de 29 anos, insiste nas ondas de fracasso da dupla sem um alívio dramático, sem narrativa coesa, sem um ritmo que possa satisfazer até mesmo o espectador benevolente. A fotografia funciona, os atores não são ruins e a música que eles ouvem nos fornece informação sobre a vida na China. Principalmente, é útil para um ocidental saber que driblar um sistema corrupto dá em nada em qualquer lugar.