nada mudou para mim.
todos os dias,
tenho um sonho
ou um desapontamento,
expresso um viva
ou um desejo de
não haver me
colocado onde estou.
todo dia, um
arrependimento
se cola ao meu ardor.
não há peste que altere
o lento, por vezes radiante,
mastigar das coisas.
Deixem meu sorriso
Ah pronto.
Você não pode rir do que acontece de ruim.
E seria bom não chorar.
Seria melhor não acreditar, nem rezar, nem pular.
Estar contrito, vigilante, inabalável.
A seriedade confiável, a alegria sem juízo.
Seria bom não brilhar a carne, deixá-la intocável, segura de seu caroço, sua semente.
E assim não viver, nem sentir, apenas vigiar e punir.
Eu aconselharia aos moralistas progressistas da rede social também o riso, pois ele carrega consigo o deslocamento, a contradição, o paradoxo, a capacidade de raciocínio num segundo, a agilidade do sonho e do poema.
Aconselharia.
Porque não vou obrigar ninguém, obviamente, a nada.
E vou continuar no meu caminho.
HINO AO JUIZ

do livro “Maiakóvski Sorri,
Maiakóvski Ri”, de 1923
Pelo Mar Vermelho vão, contra a maré,
Na galera a gemer os galés, um por um.
Com um rugido abafam o relincho dos ferros:
Clamam pela pátria perdida – o Peru.
Por um Peru-Paraíso clamam os peruanos,
Onde havia mulheres, pássaros, danças,
E, sobre guirlandas de flores de laranja,
Baobás – até onde a vista alcança.
Bananas, ananás! Peitos felizes.
Vinho nas vasilhas seladas…
Mas eis que de repente como praga
No Peru imperam os juízes!
Encerraram num círculo de incisos
Os pássaros, as mulheres e o riso.
Boiões de lata, os olhos dos juízes
São faíscas num monte de lixo.
Sob o olhar de um juiz, duro como um jejum,
Caiu, por acaso, um pavão laranja-azul:
Na mesma hora virou cor de carvão
A espaventosa cauda do pavão.
No Peru voavam pelas campinas
Livres os pequeninos colibris;
Os juízes apreenderam-lhes as penas
E aos pobres colibris coibiram.
Já não há mais vulcões em parte alguma,
A todo monte ordenam que se cale.
Há uma tabuleta em cada vale:
“Só vale para quem não fuma.”
Nem os meus versos escapam à censura:
São interditos, sob pena de tortura.
Classificaram-nos como bebida
Espirituosa: “venda proibida”.
O equador estremece sob o som dos ferros.
Sem pássaros, sem homens, o Peru está a zero.
Somente, acocorados com rancor sob os livros,
Ali jazem, deprimidos, os juízes.
Pobres peruanos sem esperança,
Levados sem razão à galera, um por um.
Os juízes cassam os pássaros, a dança,
A mim e a vocês e ao Peru.
VLADÍMIR MAIAKÓVSKI, 1915
em “Maiakóvski Poemas”, ed. Perspectiva, 2017.
Tradução de Augusto de Campos
Poema no escuro
Não durmo
Nem ele
Seis horas
Separados pelo que somos
Ele inquieto que pinta e compõe
Eu confortável na zona do nada vale
Procuro poemas pelo Facebook
Porque somos tantos ali
Com a mania
De enfiar um retrato abaixo das coisas lidas
Mas eu não acredito em versos estrangeiros
Sem a menção do tradutor
Torturado espelho
Água como aquela que o filtro obtém do barro,
fria.
Arrepia meu coração
como se eu jamais tivesse nadado antes.
Sido antes.
O pavor de ser quem sou.
Velha, imensa.
O pavor de já ter sido.
Água, torturado espelho, meus olhos mergulhados em sua calma.
papa essa oração
seu garçom
faça o favor
de me trazer
depressa
(num rojão)
uma cachaça
pra aliviar
meu coração
sem solução
QUARENTENÁLIA
Os dias são para correr à feira e à padaria.
Os dias pares.
Os ímpares, para gastar todo o moletom que me penetra.
E as noites, separei para os pijamas leves.
Só falta me olhar no espelho.
Bem de perto.
Tristeza galinácea
Bolsonaro choca tanto.
Tanto, tanto.
Uma galinha choca bem menos!
Mas e quando a gente descobre que aquele amigo em verdade não o é, ou nunca foi?
Ou que um amor que parecia ser já se vai?
Você não consegue superar isso, Gárgula desgraçado!
Pelo menos isso, não.
três da madrugada
na casa de vocês
os passarinhos
também madrugam
às três?
Dois ponteiros
não é sempre,
mas de repente
nenhum livro serve.
uma tristeza,
amor demais.
os anos passam,
correm por mim,
atropelam a mim.
a torre, o refúgio,
não tenho céu
nem mar.