Com os pés na porta

O poeta, professor e pensador da geração beatnik Claudio Willer, morto aos 82 anos neste 13 de janeiro de 2023, lamenta na reportagem abaixo, que fiz com ele em agosto de 2012, o uso não autorizado da sua tradução para um poema de Allen Ginsberg

Willer, alguém para quem a poesia significava vivenciá-la e um tradutor consciente da dificuldade de seu ofício

Claudio Willer tem asas nos pés. Asas porque poeta. Pés porque a poesia, como ele a entende, deve ser perseguida com o próprio corpo, o ritmo marcado no chão. Aos 72 anos, nascido em São Paulo, filho de judeu austríaco e mãe católica alemã, este gói cuja avó foi morta pelos nazistas representa o pensamento beat do Brasil. Não exatamente aquele de Jack Kerouac ou Allen Ginsberg, estilizado nos filmes, mas sua ambição libertária, a de experimentar a vida como poesia.

Willer é beatnik calmamente, mesmo quando em sua fala surgem inimigos como a acomodação da cena cultural brasileira, a mediocridade burguesa ou, recentemente, a usurpação de seus direitos de tradutor. “Você sobrevive de eu fumar?”, pergunta ele um pouco depois de pedir à esposa Maninha, pintora surrealista, que abra as janelas do apartamento onde me recebe na Vila Madalena. É que o cigarro o levará à palavra certa.

 

O autor de Estra­nhas experiências, poesia cursou Psicologia e Sociologia, mas, na São Paulo retratada pelo diretor Ugo Giorgetti em Uma Outra Cidade, decidiu-se por viver dos versos libertadores ou indiretamente deles, traduzindo quem os compõe, analisando sua obra ou alinhavando sua filosofia, como faz em um pós-doutorado tardio. A sua cidade de juventude, “provinciana pro melhor e pro pior”, foi seu início. Nas ruas ele andava a pé, na piscina da Associação Cristã de Moços nadava dois mil metros e nas mesas de bar poderia tomar “porres homéricos” enquanto transcorresse a leitura coletiva de O Poeta de Nova York, de Garcia Lorca, ou da Ode Marítima, de Fernando Pessoa. 

 

O poeta percorrera um caminho curto do surrealismo à “rebeldia romântica” sem dar a mínima para os versos de João Cabral de Melo Neto ou de qualquer outro formalista da poesia. “Desde o começo, o beat me interessava como mensagem no seguinte sentido, o de estar acontecendo uma rebelião juvenil. Era um movimento rebelde coletivo, com aquele impacto, provocando enorme escândalo.” Além da poeta Hilda Hilst, que se tornou sua amiga mesmo depois de ele a ter “enterrado” em um performático “necrológio”, amava a “anarquia individualista” de Roberto Piva, a veia teatral de Décio Bar, o talento de Antonio de Franceschi ou a verve de Rodrigo de Haro.

 

“O Claudio sempre foi político e basicamente uma pessoa de grande generosidade. Equânime, ele divide e organiza as coisas, com muita bondade”, disse De Haro a Camila Hungria e Renata D’Elia, autoras de Os Dentes da Memória, livro sobre esta turma beatnik que, a bem da verdade, nem mesmo se intitulava assim. Culto, com domínio da língua inglesa, foi Willer, segundo o editor Massao Ohno, quem trouxe a poesia dos americanos ao grupo. Por necessidade social, espiritual ou poética, ele e os amigos de 20 anos não só escreviam ou declamavam poesias, como invadiam “os casarões de Higienópolis”, bebiam no Paribar da praça Dom José Gaspar e eventualmente quebravam o consultório do psiquiatra que tivesse levado um amigo à internação. 

 

Willer não foi, portanto, menino fácil, embora a “burguesia filisteia” contra a qual ele e seus amigos lutavam igualmente apresentasse um corpo de dificuldades. Naquela São Paulo burguesa havia autoritarismo nas escolas, o trânsito vivia congestionado e as filas de ônibus eram comuns. O sexo estava confinado em zonas e as mulheres se dividiam entre as noivas intocadas e as prostitutas. Depois do final da década de 1960, com a chegada da contracultura, os burgueses locais “queimaram os próprios miolos” com cocaína “em vez de encher o saco da gente”. E mesmo Willer passou a entender a vida de outro modo. Existir pela poesia se tornou perigoso. Como lembra Roberto Piva em Uma Outra Cidade, os meninos da periferia que nos anos 1960 liam Baudelaire e tinham “os rostos rurais dourados queimados de sol” haviam sido substituídos por “pálidos criminalóides”, perambulando feito zumbis.

 

Aquele Willer beatnik transformou-se no pensador do beat que fala em universidades, tem bolsa da Fapesp e vive de muitos cursos. Ele acha que poderiam lhe estender um tapete vermelho maior. Ou, pelo menos, respeitar o caminho que trilhou. Willer é o tradutor de Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, e de Uivo e Outros Poemas, de Allen Ginsberg. Para traduzir Ginsberg, usou mais de duas décadas de experimentos. Em 1984, a L&PM publicou Uivo sob a consultoria do próprio Ginsberg, que endossou, entre outras, a tradução de leaping towards the poles of Canada & Paterson por pulando nos postes dos pólos do Canadá & Paterson.

 

Por conta de tantas dificuldades enfrentadas, Willer estrilou ao ver a sua tradução ser aplicada sem autorização à legenda brasileira do semidocumentário Uivo, dirigido por Robert Epstein, durante a Mostra Internacional de Cinema de 2010. “Reclamar com o Leon Cakoff ainda bem que não reclamei, porque ele morreria logo depois. Deixei por isso mesmo, mas mandei um email para meu editor, Ivan Pinheiro Machado, que não se interessou pelo assunto.” Em julho deste ano, ao assistir ao filme no canal Cinemax, Willer viu sua tradução mais uma vez em cena, sem créditos ou agradecimentos. Lá estava o verso I saw the best minds of my generation como ele o traduzira, Eu vi os expoentes da minha geração. “Mas, desta vez, como se tratava de tevê, o pessoal foi cretino. Em vez de usar a palavra ‘caralho’, como eu a escrevi, puseram ‘pênis’. Em lugar de ‘adoçaram as trepadas’, ficou ‘adoçaram as vaginas’. E a expressão ‘ofertaram seu ânus’ substituiu ‘deixaram-se enrabar’.”

 

O poeta expôs a situação em seu blog. Isa Carvalho, coordenadora da empresa 4 Estações, me diz que, em função do pouco tempo disponível para a legendagem durante a mostra, a tradutora Ludmila Breitman usou a versão contida no blog poemasbeatnick.blogspot.com.br, que não creditava a autoria: “Ela pede desculpas pelo problema causado e nós, como coordenadores, vamos reforçar essa questão na reunião com todos os tradutores esse ano.” Muito diferente foi a reação do canal HBO-Max (que programa novas sessões dias 12, 15 e 25 de agosto e 1 de setembro). A HBO não informa que empresa fez a legendagem. E diz: “A HBO adquire os direitos dos filmes que vão ao ar nos seus canais com todas as liberações necessárias para a exibição. Não foi registrado até o momento nenhum problema de direitos com o filme O Uivo, que está sendo exibido no canal Max. Sendo assim, a HBO não possui comentários sobre qualquer questão envolvendo o filme.” A editora do livro resume em uma frase sua posição oficial: “A L&PM não foi consultada sobre a utilização da tradução”. Neste momento, Claudio Willer se contenta com a repercussão do caso no blog. “Mas se essa versão passasse no cinema, eu fazia sair de cartaz. Se fosse comercializada em DVD, eu fazia prender.” Eis os pés com asas do poeta próximos da porta, perigosamente.

 

 

PS:

O pensador Claudio Willer, que viveu pela poesia, era uma pessoa de quem qualquer um prezaria se aproximar. Um personagem da cidade ou de “Uma Outra Cidade”, como no documentário de Ugo Giorgetti em que a cena de sua juventude literária, ao lado de Roberto Piva e de outros, ganhava detalhe.

Um dia, encontrei uma boa desculpa para entrevistá-lo, quando ele se irritara ao ver sua tradução para “O Uivo” usada sem autorização ou respeito. Depois da entrevista acima, nós nos falamos várias outras vezes, sem registro. E ele gentilmente aceitou o convite para a noite de autógrafos de um livro que eu escrevera, “O cineasta historiador”. Ainda em 2022, esteve presente numa roda virtual em comemoração ao ciclo de filmes documentais de Ugo Giorgetti dentro do Festival É Tudo Verdade, a última vez em que nos falamos.

Willer, sem você perdemos a alegria, mas por você continuaremos a resistir.

Claudio Willer ao meu lado em 2015, enquanto lhe redijo uma dedicatória do livro que acabara de lançar

Deixem meu sorriso

Ah pronto.

Você não pode rir do que acontece de ruim.

E seria bom não chorar.

Seria melhor não acreditar, nem rezar, nem pular.

Estar contrito, vigilante, inabalável.

A seriedade confiável, a alegria sem juízo.

Seria bom não brilhar a carne, deixá-la intocável, segura de seu caroço, sua semente.

E assim não viver, nem sentir, apenas vigiar e punir.

Eu aconselharia aos moralistas progressistas da rede social também o riso, pois ele carrega consigo o deslocamento, a contradição, o paradoxo, a capacidade de raciocínio num segundo, a agilidade do sonho e do poema.

Aconselharia.

Porque não vou obrigar ninguém, obviamente, a nada.

E vou continuar no meu caminho.

HINO AO JUIZ

Arte de Rodtchenko para a capa
do livro “Maiakóvski Sorri,
Maiakóvski Ri”, de 1923

Pelo Mar Vermelho vão, contra a maré,
Na galera a gemer os galés, um por um.
Com um rugido abafam o relincho dos ferros:
Clamam pela pátria perdida – o Peru.

Por um Peru-Paraíso clamam os peruanos,
Onde havia mulheres, pássaros, danças,
E, sobre guirlandas de flores de laranja,
Baobás – até onde a vista alcança.

Bananas, ananás! Peitos felizes.
Vinho nas vasilhas seladas…
Mas eis que de repente como praga
No Peru imperam os juízes!

Encerraram num círculo de incisos
Os pássaros, as mulheres e o riso.
Boiões de lata, os olhos dos juízes
São faíscas num monte de lixo.

Sob o olhar de um juiz, duro como um jejum,
Caiu, por acaso, um pavão laranja-azul:
Na mesma hora virou cor de carvão
A espaventosa cauda do pavão.

No Peru voavam pelas campinas
Livres os pequeninos colibris;
Os juízes apreenderam-lhes as penas
E aos pobres colibris coibiram.

Já não há mais vulcões em parte alguma,
A todo monte ordenam que se cale.
Há uma tabuleta em cada vale:
“Só vale para quem não fuma.”

Nem os meus versos escapam à censura:
São interditos, sob pena de tortura.
Classificaram-nos como bebida
Espirituosa: “venda proibida”.

O equador estremece sob o som dos ferros.
Sem pássaros, sem homens, o Peru está a zero.
Somente, acocorados com rancor sob os livros,
Ali jazem, deprimidos, os juízes.

Pobres peruanos sem esperança,
Levados sem razão à galera, um por um.
Os juízes cassam os pássaros, a dança,
A mim e a vocês e ao Peru.

VLADÍMIR MAIAKÓVSKI, 1915

em “Maiakóvski Poemas”, ed. Perspectiva, 2017.

Tradução de Augusto de Campos

Oração

Há nove meses desvisto as roupas que tenho, senhor.

A cada dia mais distante de mim, daquilo que conheço e entristeço, vejo que a liberdade não é azul nem vermelha, a liberdade é pequena.

E nem os sapatos me servem mais.

Só os vestidos, largos e raros, movem-se para me esconder.

Há nove meses deixo que meus cabelos cresçam e dupliquem suas pontas.

É o melhor que tenho feito para multiplicar as coisas.

Olho pelas janelas sujas onde os reflexos fazem poesia.

Um deserto para os sonhos que tive.

Só eu sei o que é dizer sim quando no meu profundo há um não.

Nunca soube obedecer.

A cada dia mais ocupada em aprender o que já vi, o que já sei e o que pisou em mim, sigo voltada para dentro do que sou, e amém.

da vida de quem vê

por que esse jeito de olhar?
olho sem querer.
sem disfarçar.
meu olho é meu coração.
ânimo!, exige-me o patrão supremacista,
velho jornalista tido de esquerda, amado por vocês.
eu lhe dirijo meus olhos mudos.
era difícil viver e alimentar os filhos.
e pode ser ainda.
hoje talvez olhe menos, mas menos não é raso.
menos é fundo.
um segundo de coragem contra a covardia da vida.

A quem se destina

Aproveite a chance rara de assistir de graça a “Todas as horas do fim”, o documentário sobre Torquato Neto que é só poesia

Nosferatu como um profeta triste

Há três anos apareceu com imenso lirismo este filme dirigido a partir de depoimentos, da pontuada narração de Jesuíta Cardoso e de outros filmes – os de Torquato Neto, em super-8, e aquele de Ivan Cardoso, por exemplo, em que o poeta da literatura e da música do Brasil é um vampiro convicto, de sandálias e cabelo longo.

Três anos e este “Todas as horas do fim”, dirigido por Eduardo Ades e Marcus Fernando, ainda dói na gente. Em quem é gente no Brasil. Em quem não se cansa de penar para entender por que um poeta da vida tenha escolhido a morte, suicidado com gás, aos 28 anos, em 1972.

E no entanto Torquato surgia pleno no mundo, gênio precocemente, poeta desde os 9, filho único de pais amorosos, magro, seco e severo como eles na Teresina que era a sina de todos…

E mesmo sendo pai de Thiago, outra realização de amor, marido de Ana, sua santa, isto não o impedia de imaginar que, tendo concluído sua obra, viver não seria mais preciso… E o que dizer daquela ditadura que não parecia ter mais fim, nem nada de si?

Caetano e Gil eram seus amigos da Tropicália, em que Torquato nem mesmo acreditava de início. Hélio Oiticica podia dizer-se fartamente admirado por ele, assim como Glauber Rocha, assim como o cinema. Um poeta a observar toda a arte, toda a vanguarda, todo o sentido.

É um filme de ritmo e canção, que busca a poesia com simplicidade, razão pela qual a encontra, embora não a discuta nas linhas próprias de Torquato Neto nem trace os paralelos entre elas e os versos, por exemplo, de um conterrâneo como Mário Faustino.

É madrugada, passou das três, e eu tive de reescrever isto tudo! O texto primeiro, o blog comeu…

Torquato, é você aí?

Poeta desde os 9 anos que ele foi

Aqui vai o streaming do documentário “Torquato Neto – Todas as Horas do Fim”, dentro do projeto “Em Casa com o Cine 104”:

https://vimeo.com/460725286

senha: torquato_104

Até as 20h de 9 de outubro de 2020