Perecer em público. “Roma”, Alfonso Cuarón, 2018
Me tornei espectadora do netflix por razões de rendição.
Não posso (embora deseje cada dia mais) estar apenas diante dos filmes do passado com os quais me divirto sozinha e aprendo pra multidão.
Os filmes novos podem não ser lá grande coisa, mas significam combustíveis para a conversa com as amizades.
E você não começa o fogo sem a faísca, como dizia o velho Springsteen (sobre quem vou comentar o especial da netflix, só de raiva, né?)
Minhas idas ao cinema têm sido raras situações de lazer também porque o dinheiro pra entrada, que já é muito, não basta pra custear a coisa toda.
Tem espera, chuva, café, estacionamento, tosse, dor nas costas e celular do vizinho antes de a gente concluir que viu na tela uma novela brasileira ampliada pro mau humor francês.
Quando eu escrevia sobre filmes para a grande imprensa (a luta toda que vocês conhecem), ganhava credenciais, streamings e dvds de lançamentos e me convidavam a ver tudo antes, nas sessões de imprensa intituladas cabines; na verdade, um salão de exibição onde encontrávamos aquelas más pessoas do passado sem a possibilidade de fugir, nem se as luzes se apagassem; um expressionismo danado, senhor Caligari.
Agora que somos sozinhos, eu e meu bolsinho, sozinhos e felizes, preciso de universitários pra baixar filmes novos no torrent. Ou de DVDs piratas.
Muito esforço pra nada.
Vamos de netflix mesmo.
Ou MUBI.
(Mas MUBI é pra filme de arte, e as amizades preferem assuntos mais variados que este, tramas que, digamos, lhes respeite o combalido coração).
Dores de parto, parto de dores
“Roma”, de Alfonso Cuarón.
Resisti a ver.
(o trailer aqui https://www.imdb.com/title/tt6155172/videoplayer/vi3452418585)
Não só porque ri muito com aquele seu anterior “Gravidade”, que era pra ser um filme sério.
Ou porque me aborreci um tanto com seu Harry Potter, quando levava meus filhos pra ver a saga (eles preferiam os livros).
Temi pelo filme autoral de um diretor de estúdio sem ideias próprias.
Aquelas longas sequências de melancolia em p&b, no trailer…
Encarei-o porque era Natal e esnobávamos o tempo.
E descobri que Cuarón tem muitas ideias.
Não exatamente próprias.
Basta! Tem ideias.
E o que ele faz de novo é condensá-las com um propósito muito bom, que é o de narrar a própria história.
Dizem que “Roma” é o “Que horas ela volta” mexicano.
Pra mim, uma grande injustiça com o Cuarón.
Porque, ao contrário da Muylaert, este é um diretor com conhecimento de cinema e técnica pra se permitir um sonho de invenção (algo obrigatório nos grandes diretores antes; Chaplin ou Welles se sentiriam menos que seres humanos se não inventassem alguma coisa jamais provada a cada filme, porque, senão, de que serviria filmar?).
“Que horas” é novela, a começar pelo título ruim. Novela brasileira, interpretada pela Casé perdida no tiroteio, estranhamente convencida de que escapará de todas as balas.
(Olha eu, aqui, falando mal de novela para os brasileiros.)
Contudo, reconheço que a diretora acertou em cheio ao mostrar como a educação do pobre é um incômodo central da classe média, essa aberração marilena do golpe.
Roma, amor, milícia
Imagino Cuarón afetado pelo mesmo constrangimento. O de ter crescido graças ao amor de uma babá apartada da própria família, impossibilitada de ter a sua, em um México convulsionado pelas milícias.
A jovem menina que cuida de uma família inteira, mas usa outra língua com os seus. O “mexicano” é o espanhol do poder local. A família que representa a de Cuarón fala mexicano com ela e lhe dá o lar apartado, ou o que conhece por amor.
Amor, Roma.
O nome do bairro onde Cuarón cresceu.
Muito inteligente que o filme se torne “Roma”, uma vez que o background cinematográfico e histórico é mesmo o do cinema italiano. Mulheres e crianças como micro heróis de uma revolução, à moda do que ensinou De Sica nos roteiros de Zavattini.
Neo-realismo às vezes, mas só às vezes…
O fundo é o plano primeiro
Porque se trata de um filme relacionado a um momento imediatamente posterior, nada heróico, do italiano.
O momento de Valério Zurlini, por exemplo, diretor que nunca esteve entre os “primeiros” da Itália.
Ou de Fellini, que estendeu as ideias do mentor Rossellini para as suas próprias – e assim se separou do amigo.
“Oito e Meio”, Federico Fellini, 1963
Diretores a conduzir muito bem seus personagens ao drama, mas que não os encerram no drama gritado de “novela”; ao fundo deles, corre a realidade, aliás como fez Buster Keaton em “A General”. O fundo é a nossa história, sua ultrapassagem, o contexto.
As coisas não deixam de acontecer ao fundo mesmo que em primeiro plano transcorra o drama particular, ensinam esses diretores, esse momento.
Valério Zurlini, ele próprio, contratava até mesmo um “diretor de fundo” para conduzir as sequências impressionantes, como em “Verão Violento”, de 1959.
“Verão Violento”, de Valério Zurlini, 1959
Sessenta anos atrás!
Um tipo de diretor, o tal do fundo, que desapareceu da historiografia.
Cuarón encena perturbadoras batalhas em localidades públicas, como faz outro sucedâneo do neo-realismo, a “commedia all’italiana”.
O sufocamento de viver, consumir e perecer no parque de diversões, na praia, aos olhos comuns.
Cuarón conduz, como se disse, ele próprio tudo, o primeiro plano e o além dele.
O primeiro plano e o além dele
O homem-bala à distância, no parque, enquanto a protagonista caminha lentamente à espera de encontrar quem lhe abandonou…
A protagonista grávida na loja de móveis, à procura de um berço, enquanto se dá o confronto entre milicianos e estudantes, primeiro fora, depois lá dentro…
Sem mencionar um parto dessa dor…
Aulas de cinema que o cinema desaprendeu.
Um filme que não concede à superação, ao humor, ao sublime.
Um longa para materializar a tristeza…
Mais que ela, a distopia.
Nosso tempo.
Nossos homens nascidos mortos.
Eu então lhe diria, se isto lhe fosse possível:
Vá até a sua poltrona vê-lo.