A sentença da montanha 

Filme de 1947, em que Toshiro Mifune atua pela primeira vez, faz poderosa metáfora sobre a participação japonesa na Segunda Guerra



“No limiar da morte”, dirigido em 1947 por Senkichi Taniguchi (1912-2017), traz a atuação inaugural de Toshiro Mifune no cinema. Assisti hoje ao filme japonês, em preto e branco, pela primeira vez (há uma cópia sem legendas no YouTube, e um streaming do filme no Criterion Channel). Mifune tinha então 27 anos neste longa, muito jovem para vencer o embate interpretativo contra Takashi Shimura, ator de então 42 anos que desenrola seu pensamento comovido até a ação.

Shimura representa a máscara introversa, sábia, da performance humana, enquanto Mifune, o furacão que ilumina a lâmina de um lado só – uma espécie de razão ilustrada pela desrazão. Enquanto o personagem de Shimura desfruta de uma emoção familiar ao enxergar, na jovem menina que lhe dá abrigo (Setsuko Wakayama), muito da sua filha que morreu, o de Mifune quer vencer logo a guerra contra a natureza. É preciso escapar da neve com o dinheiro que roubaram junto a um terceiro companheiro, já soterrado em avalanche. Mifune não entende por que ser emotivo numa hora dessas. Quer usar a família que o acolhe em busca de seu objetivo, custe o que custar.



E como se dá esse embate – até físico – entre os dois ladrões que divergem sobre a maneira de fugir? Com ousadia impensável. Em primeiro lugar, o roteiro é de Akira Kurosawa. Depois, Taniguchi dirige de maneira magistral as sequências dificílimas que o colega previu, ao ar livre, em montanhas nevadas e arriscadas. Eis o neorrealismo, aberto como na Roma de Rossellini, mas, aqui, filmado no gelo sem fim.

Os japoneses não são italianos e transformam sua resistência política em metáfora, em pedido de perdão por sua ação na Segunda Guerra, neste filme realizado dois anos depois do fim do conflito.

Na casa da família que abriga os ladrões interpretados por Mifune e Shimura, há trechos poéticos escritos em alemão nas paredes. E a “Rosen Morgen” (que em alemão quer dizer tanto “manhã rósea”  quanto “róseo amanhã”) é a canção que maravilha o alpinista interpretado por Akitake Kono, guia dos bandidos em fuga.



Enquanto tudo se dá, Shimura sufoca as pretensões de Mifune com o sopro de sua bondade, crescente conforme outra canção folclórica, a estadunidense “My old Kentucky”, interpretada pela menina, evoca a saudade do lar. (“E o que é o Kentucky?”, pergunta-lhe Shimura.)



O filme passa como um assombro por  penhascos reais. Os personagens têm garras fincadas nos sapatos, cordas atadas pelo código de ética dos alpinistas e o fogo está sempre perto do fim. “A montanha é poderosa e punirá os maus”, anuncia o avô de Setsuko (Yoshio Kosugi). Uma sequência no trem fará Shimura desejar ver mais uma vez a montanha que desafiou. Montanha da juventude e das crenças – tantas combatidas pelos Aliados. A parte mais bonita do filme é quando ele lhe dá adeus.

Setsuko Wakayama e Mifune,
juventudes tão distintas

https://youtu.be/kJbVbxZ_FwI?si=Kvo_HOGE60CXLGCl

Marianne Faithfull, nossa irmã

O filme britânico “Broken English”, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, faz homenagem à cantora e compositora morta em janeiro deste ano

Aos 76 anos, Marianne Faithfull vê recortes sobre sua carreira apresentados por George MacKay, de 33

“Broken English”, dos diretores Jane Pollard e Iain Forsyth, é uma hagiografia amorosa da cantora e compositora inglesa Marianne Faithfull (1946-2025). Um documento de amizade justificado não apenas por ter sido Marianne quem foi, autora, entre outros, dos versos da canção que intitula o filme, mas pelo sofrimento experimentado por ela ao exercer o protagonismo feminino em época tão desinteressada disso. 

Sob o frio chuvoso de 29 de outubro de 2025, a caminho da sessão do documentário no Cine Satyros Bijou, na praça Roosevelt paulistana, eu me sentia um tanto como em maio de 1990, quando vi uma apresentação ao vivo da artista em Paris. Tinha medo e andava só. 

Verdade que pouco deveria temer em São Paulo agora, pois moro na vizinhança e sei onde piso, ao contrário do que acontecia no bairro parisiense à época de minha juventude. Mas é que os dois bairros, o da República e o La Pigalle parisiense, algo se aproximam, visitados não só pela boemia artística como pela dor da pobreza e da prostituição, com as quais não sei lidar ao certo (mas à solidão, me acostumo bem).

Era noite iluminada pelas cores carmim e esmeralda, como naquela Paris, quando cheguei à porta do Satyros, eternamente o Bijou de minha infância e adolescência. As cadeiras vermelhas da pequena sala de cinema (as poltronas do La Cigale tinham cor idêntica) estavam no mesmo lugar. No Bijou, eu pude assistir quantas vezes desejei, em uma mesma sessão, aos filmes que me impressionaram, tão diversos entre si quanto “A Crônica de Hellstrom” (1971) e “O Amigo Americano” (1977) pudessem ser. Agora somos obrigados a sair da sala tão logo acabe o filme. Agora também não há mais pulgas e outros bichos eventuais entre as cadeiras. Mas a conversa lá fora, nós a ouvimos como antes, sem que ninguém se anime a interromper.

Não à toa, portanto, o passado voltou. Era pleno porque eu via Marianne na tela também. Filmado em algum ponto de 2024 até o início de 2025, quando a artista morreu, o longa me revelava, contudo, uma outra mulher. O rosto arredondado e liso parecia afável, apesar de o tubo para a entrada de oxigênio estar visível. E o sorriso constante dos últimos dias seria impossível de perceber em 1990, quando a soberba se destacava na sua expressão facial e na postura de palco, o cigarro eternamente entre os dedos. Uma condição que, para mim, gritava Marianne até ver este documentário, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Nele a artista acresceria, ao forte orgulho, a raiva e a luxúria como seus pecados capitais prediletos, todos eles reverenciados no álbum de 1998 “The seven deadly sins”.

Marianne ao centro, em 1967, numa visita ao guru Maharishi (sentado) na companhia de Michael Cooper, Mick Jagger, Shepard Shebell e Brian Jones

Amei aquela mulher como amei a Rita Lee de início, os cabelos longos franjeados, a ousadia de estar entre a soberba masculina do mundo do rock com o talento, a beleza e a ousadia das roupas e sapatos. Hoje podemos calcular apenas longinquamente o quanto este ambiente custou para as duas artistas. Internações, overdose, depressão e isolamento eram constantes em Marianne. O descrédito doía. Igualmente machucava a tentativa de apagá-la ao torná-la “visível” em manchetes como aquela que relatou sua pretensa nudez numa festa em casa do guitarrista Keith Richards. “Era muito mais lógico para eles que eu tivesse morrido”, ela crê.

Com Courtney Love em sua casa londrina no ano de 2021, quando gravou o disco “She Walks In Beauty”

Eis um filme feito de muitas reflexões sobre o ato de fazer um filme e sobre a predominância do desejo de não-esquecimento, proferido pela atriz Tilda Swinton como quem dirige o documentário a partir de uma cabine do tempo. O restabelecimento do poder feminino é a tônica expressa por debatedoras, atrizes e até por uma performance da cantora Courtney Love.

Bob Dylan à máquina de escrever, cantando Marianne na cara dura

Marianne conta que “Sister Morphine”, sua primeira composição de sucesso (ela diz que fez a letra para que Mick Jagger parasse de tocar a melodia na guitarra o dia todo), foi desautorizada às paradas depois do segundo dia de execução pública. Não era possível que revelasse vício a voz de uma jovem a quem o mercado atribuía tamanho encanto – este compartilhado pelo músico Bob Dylan, que lhe dedicou um poema na cara dura, mesmo estando ao lado da mulher, a cantora Joan Baez, tão admirada pela inglesa. Marianne diz que nem viciada era então. Contudo, a canção parecia liberada para que Mick Jagger, o então namorado com quem vivia, a interpretasse sob aplauso geral. “Por que você não se manifestou a respeito? Você ou Jagger?”, perguntou-lhe no filme o apresentador George MacKay, de 33 anos, ao mostrar extratos de suas entrevistas e apresentações. “Não sei”, Marianne respondeu, após hesitar. “Não éramos tão conscientes disso quanto vocês hoje são.”

O filme brilha no fim, quando Nick Cave rege em estúdio a sessão final de gravação da vida da artista.

Saio do meu Bijou inquieta como as luzes vermelhas e verdes projetadas sobre a rua molhada. Saio como quem reflete. Decidida a não esquecer uma das verdades de Marianne proferida no filme, prezo a incerteza, rica como a água da chuva que corre.

Iain Forsyth e Jane Pollard, os diretores de “Broken English”

O engenhoso humor negro de Park Chan-wook em “No other choice”

Presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o filme coreano desmonta os ultracapitalistas e sua mais recente arma, a inteligência artificial 

Lee Byung-hun vive o pai de família Man-soo: o homem do papel e de todas as plantas

Dedicar o próprio filme ao cineasta de 92 anos Costa-Gavras (“Z”) deve dizer muito sobre o tipo de obra – veloz, irônica, política – almejada por um diretor. Aqui, é o cineasta coreano Park Chan-wook (“Oldboy”), de 62 anos, quem reverencia o diretor grego cujos filmes combateram ditaduras.

“No other choice” (sem outra saída) é o título deste espetacular entretenimento coreano contra o establishment, baseado no livro “O corte”, do estadunidense Donald E. Westlake (1933-2008). Com bela fotografia em cores, sem efeitos visuais excessivos, bom timing e senso de suspense – ademais apoiado pela música incidental em tom alto, comentadora do espírito narrativo de cada sequência -, Chan-wook destrói as ditas boas intenções dos empregadores ultracapitalistas.

A filha e a mulher, interpretadas pela incrível
Choi So-yul, de 9 anos,
e pela rainha do k-drama Son Ye-jin

Sua comédia social de humor negro, que ecoa a commedia all’italiana e a fisicalidade dos Irmãos Coen, mira uma das mais recentes armas tecnológicas, a inteligência artificial. É ela a responsável por reduzir de forma drástica os trabalhadores da indústria da celulose. O íntegro pai de família Man-soo (Lee Byung-hun), que imagina ter alcançado todos os seus sonhos depois de 25 anos dedicados à fabricação de papel, vê-se subitamente na rua. Ele está a um passo de perder a casa, suas plantas, os cachorros e a sanidade dos filhos (interpretados por Kim Woo-seung e por uma inacreditável Choi So-yul, de 9 anos), sem mencionar a mulher tão bonita, vivida por uma das rainhas do k-drama, a ótima Son Ye-jin (“Pousando no amor”).

Em “No other choice”, o sonho
familiar por um (irônico) fio

Depois de concluir a impossibilidade de trabalhar em áreas distantes da sua, e especialmente após a constatação do sofrimento familiar, Man-soo entende que só uma solução muito engenhosa lhe devolverá o emprego, a vida e, sem exagero, a própria história.

Man-soo em missão: o homem é
o lobo de três homens

Por que Man-soo não tem outra saída? Porque, no capitalismo, o homem é o lobo do homem – e, aqui, trata-se de um lobo de três deles. Difícil imaginar um filme desta natureza encenado nos Estados Unidos atuais. Dificil constatar que não foi este o filme eleito o melhor pelo público na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

O coreano Park Chan-wook, diretor de “No other choice”: sobre a farsa ultracapitalista

Burroughs por dentro, em poderosa reconstrução

Documentário na 49ª Mostra refaz o evento de 1978 que reuniu a contracultura
de Nova York para homenagear a obra, a lucidez e o humor do escritor

William S. Burroughs na América para a qual imaginou um futuro, em cena de “Nova ’78”

O filme Nova 78, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é a história da contracultura reconstruída em hora propícia. Um documentário a nos lembrar do ponto de onde poderíamos ter partido para a construção de uma sociedade igualitária, não estivéssemos hoje mergulhados na distopia mundial que estagna a fraternidade e a justiça entre os povos.

Este é o filme em que vemos o escritor estadunidense nascido em Saint Louis William S. Burroughs (1914-1997) ser reverenciado por seus continuadores, entre 30 de novembro e 2 de dezembro de 1978, após mais de duas décadas das viagens por ele empreendidas à América Latina, à Europa e ao norte da África. Nas filmagens em 16mm feitas originalmente pelo cineasta Howard Brookner, morto com aids aos 34 anos, em 1989, e com o som providenciado pelo futuro diretor estadunidense Jim Jarmusch (nascido em 1953 e cujo mais recente filme, “Pai mãe irmã irmão”, também é exibido na mostra), podem-se acompanhar os passos do encontro intitulado Nova Convention, que 47 anos atrás perseguiu o conceito “nova”, de Burroughs, segundo o qual o futuro se escreveria no espaço, não no tempo. 

Ao encontro realizado no Entermedia Theatre, teatro off-Broadway situado na Segunda Avenida com a Rua 12 (e convertido em um complexo de cinemas multiplex nos anos 1990), comparecem amigos e artistas da contracultura agradecidos à influência de Burroughs, como os poetas compatriotas Allen Ginsberg (1926-1977) e Peter Orlovsky (1933-2010). Os dois realizaram um show no qual Orlovsky acompanhou ao banjo a musicalidade poética de Ginsberg. Houve outras duplas de convidados, como a composta pelo bailarino Merce Cunningham e o músico John Cage, artistas que mantiveram uma parceria criativa e amorosa dos anos 1940 até a morte de Cage, em 1992. Em seu show, Cage aponta notas mínimas para o equilíbrio desenvolto de Cunningham, então com 59 anos.

A artista Laurie Anderson esteve presente ao evento com seu humor, a preconizar o futuro digital, e Philip Glass tocou as notas sonhadas de seu futuro em um sintetizador Yamaha. Frank Zappa compareceu, mas não fez um show musical: depois de informar a todos os presentes que não gostava especialmente de livros, leu o trecho de “Almoço Nu”, de Burroughs, no qual o Cu é o ventríloquo do homem, a peidar bobagens quando fala. O psicólogo e escritor Timothy Leary comparece a uma mesa em que compara uma fala de Burroughs a uma imagem causada pelo uso do LSD, alucinógeno que advogava. A poeta do rock Patti Smith tem de comunicar à plateia a ausência da prometida estrela Keith Richards no evento, mas não dá ao público muito tempo para protestar. Suas palavras poeticamente firmes e a guitarra pesada envolvem-no rapidamente. Além de Richards, outra ausência notável é a da ensaísta Susan Sontag.

O filme, contudo, não existiu per se. Ele nasceu a partir da descoberta de negativos de filmagens abandonadas pelo nova-iorquino Brookner, que em 1983 compôs a cinebiografia “Burroughs: The Movie” como um trabalho para a Universidade de Nova York. Foi seu sobrinho Aaron Brookner, autor em 2016 de um documentário sobre o tio, “Uncle Howard”, quem achou os rolos. Ele chamou o amigo português de Guimarães Rodrigo Areias (ao lado de quem, em 2020, produzira o filme de Ana Rita Rocha “Listen”), para construir uma narrativa a partir dos importantes fragmentos do encontro.

“Nova 78” é um achado que começa de maneira deliciosa, com Burroughs, aos 64 anos, sentado em uma cadeira, calado diante da pergunta que o cineasta lhe faz. Durante o filme, por vezes caracterizado com o chapéu e o terno que compunham a máscara de seu personagem público, ele tem bom humor e lucidez. Por exemplo, incita o público da Nova Convention à luta contra o projeto do republicano John Briggs, conhecido como Proposição 6, que seria votado (e derrotado) naquele ano, e que proibia gays, lésbicas e apoiadores de seus direitos de trabalhar nas escolas públicas da Califórnia. Em filmagem não relacionada à convenção, mas encontrada por Aaron Brookner entre os rolos de negativo, há vários excertos, entre eles a discussão sobre a recusa dos intelectuais ao governo dos aiatolás no Irã, problematizada por Burroughs: “Mas não precisaremos do petróleo deles?” É irresistível quando ele aponta a incongruência no sonho de encontrar, em planetas desconhecidos, o que já é conhecido, como a água…

Os rolos de negativos descobertos por Aaron Brookner renderão outros projetos, conforme acredita Rodrigo Areias. “Existem muitas dezenas de horas de arquivos incríveis e inéditos sobre a vida e a obra de William Burroughs no arquivo de Howard Brookner”, ele diz. “A ideia será fazer uma série de televisão mais biográfica, com a participação de uma série de entrevistas feitas hoje e outras dos arquivos. Existe também uma parte dos arquivos sobre a relação familiar de William Burroughs com o seu filho William Jr. e com o seu irmão. Coisas absolutamente inéditas e incríveis.”

A seguir, a entrevista que fiz por email com os diretores Aaron Brookner e Rodrigo Areias, os diretores de “Nova 78”.

Aaron Brookner, um dos diretores de “Nova ’78”: ele achou os rolos de negativos feitos pelo tio

Gostaria de começar perguntando quando vocês viram pela primeira vez o material que resultaria em “Nova 78”. Quem o apresentou a vocês? O que chamou sua atenção nele? O que os fez pensar que editar esses fragmentos seria uma boa ideia?

AARON BROOKNER: Eu tinha visto apenas breves vislumbres do material em “Burroughs: The Movie”, que Howard Brookner dirigiu e lançou em 1983. Então, quando comecei a procurar trazer de volta o filme de Burroughs (que remasterizamos e lançamos com a Criterion Collection em 2014), encontrei o primeiro lote de rolos negativos de tudo o que Howard havia rodado (1978-1982) para fazer aquele filme. E, obviamente, logo percebemos que havia muitos rolos com artistas. Mais do que ser apresentado a mim, conforme iniciamos o escaneamento, começamos a vislumbrar o evento pela primeira vez e a perceber que Howard o havia filmado como um documentário de show, com diferentes cenários e ângulos, bastidores, planejamento, etc. No outono de 1978, Howard ainda estava na NYU. Suas filmagens se tornariam o retrato de Burroughs, mas na época ele se referia ao material como NovaCon, porque esse era seu foco inicial. E então foi um desafio interessante tentar honrar a tentativa da filmagem original. Para usá-lo como foi pretendido na época, para mostrar a história da Nova Convention.

RODRIGO AREIAS: Vi as imagens deste material quando conheci o Aaron. Ele havia participado da escrita e da produção do filme “Listen”, de Ana Rocha, que eu produzi. Nessa altura, o Aaron me mostrou o filme que tinha feito sobre o seu tio Howard Brookner (“Uncle Howard”), o autor destas imagens. Nesse documentário, já existia a referência à Nova Convention. Claro que eu já conhecia a existência dessa convenção, sempre houve essa referência em torno da cultura beatnik. Mas nunca tinha visto imagens. Quando o Aaron me convidou para participar deste projeto como diretor, vi todas as cenas que haviam sido filmadas da convenção e muito mais horas de arquivo sobre William S. Burroughs, já que o arquivo de Howard Brookner é muito vasto.

Aaron nasceu três anos depois desta convenção em Nova York e Rodrigo, no mesmo ano. Vocês liam escritores como Burroughs, Leary, Orlovsky ou Ginsberg desde muito jovens?

AARON BROOKNER: Bem, sim, eu conhecia Burroughs desde muito jovem, graças ao meu tio. E comecei a lê-lo no ensino médio, junto com Allen Ginsberg e Jack Kerouac. Os beats faziam parte do currículo de inglês do Ensino Médio em Nova York, assim como J.D. Salinger, e talvez ainda façam, então comecei a descobrir todos os outros.

RODRIGO AREIAS: Bem, eu tenho uma obsessão com a leitura, tenho uma biblioteca em casa e a literatura ocupa um lugar muito importante na minha vida e no meu cinema também. E isso acontece desde muito cedo na minha vida. O meu primeiro longa (“Tebas”, 2008) começa com “O uivo”, de Allen Ginsberg, e é uma intersecção entre o “On the road”, de Kerouac, e “Édipo Rei”, de Sófocles. Debruço-me sobre escritores e obras literárias de forma insistente, pois é o universo em que vivo. Desta forma, chego ao Burroughs através dos outros autores beat, mas também a partir da música, a minha outra carreira que antecede a de cineasta.

Quando começou a aventura de restaurar o filme? Quão difícil foi fazer esta edição funcionar?

AARON BROOKNER: Comecei a procurar o trabalho de Howard há quinze anos e recuperei o primeiro lote de rolos negativos da era Burroughs de Howard em 2013. Alguns deles foram usados ​​para os bônus de DVD do Criterion. Alguns foram usados ​​no meu filme sobre Howard, mas, mesmo depois do filme, ainda estávamos trabalhando para compilar o arquivo. Toda a imagem e o som. Um empreendimento gigantesco.

Minha parceira na Pinball, a produtora Paula Vaccaro, e eu pensamos que finalmente tínhamos terminado em janeiro de 2022. Então, em fevereiro, descobrimos que mais filmes de Howard haviam sido descobertos pelo arquivista da obra do falecido poeta John Giorno [presente no filme]! E muitos desses rolos eram seções que faltavam da Nova Convention. Ao longo de 2022 e 2023, fizemos mais digitalização e sincronização e só então pudemos começar a edição.

É sempre um grande desafio editar um documentário de longa-metragem. E é um desafio específico criar um filme usando apenas filmagens daquele período. Felizmente, as filmagens são tão explosivas. Os atores, tão poderosos. As ideias ressoaram muito. Então, nos apoiamos na força da filmagem inicial. Na força dos personagens e do local, e não nos esquivamos do trabalho duro. Também quero acrescentar que foi necessária uma equipe muito talentosa para fazer a colorização, trabalhar com o som e o design.

Vocês tinham algum roteiro original em mãos? Anotações da equipe? Conseguiram falar com pessoas envolvidas nas filmagens originais para esclarecer alguma dúvida?

AARON BROOKNER: O escritor James Grauerholz [presente no filme] me deu anotações bem vagas, que meio que forneceram um modelo para todo o arquivo. Mas não havia anotações da equipe, e certamente nenhum roteiro ou documento direto a seguir. Pude conversar não só com James, mas também com John Giorno quando ele estava conosco, já que ambos eram os produtores do evento. Então, aprendi muito sobre o encontro com eles, especialmente com James. Jim Jarmusch, que fez o som, Tom DiCillo, que foi o cinegrafista, e Jim Lebovitz também. Conversei com todos. Eles certamente tinham algumas lembranças, mas a única pessoa que realmente saberia dos detalhes das filmagens seria Howard.

RODRIGO AREIAS: Este filme não tem roteiro. A ideia foi partirmos livres para a criação e montagem. Existiram várias versões anteriores onde prevalecia uma narrativa mais pessoal e biográfica sobre William Burroughs. Fomos experimentando contar outras histórias, mas eu fiquei sempre com vontade de mostrar estas imagens que nunca ninguém havia visto e fazer menos um filme biográfico, sempre algo mais visto.

Burroughs com o chapéu que compunha a máscara de seu personagem: um dos
muitos fragmentos dos rolos de negativos não-sincronizados, de difícil edição

Vocês informam no início de “Nova 78” que todo o material filmado naquela época — pelo menos, aquele que conseguiram encontrar — acabou utilizado na sua edição final. Por que decidiram usar todas elas?

AARON BROOKNER: Nós nos concentramos em usar as filmagens feitas no outono de 1978 porque a Nova Convention era naquela época, é claro. E também, na linha do tempo, muito do que Howard filmou nas semanas anteriores e posteriores estava relacionado ao evento. Seja Burroughs fazendo uma ligação para convidar “Tim” (Leary), ou elaborando algumas das ideias políticas sobre fundamentalismo e ataques a grupos minoritários que seriam incluídas em suas apresentações. 

Foi muito, muito difícil encontrar tudo e conectar esses fragmentos. Imagine que eram rolos soltos de negativos. Não sincronizados. Organização obsoleta. Foi superdifícil. E também cada peça era convincente. As filmagens do mundo de Burroughs duraram quatro anos para o meu tio. No final, nos concentramos em 1978 porque nos deu estrutura e a chance de traduzir para o público a experiência de entrar em um portal do tempo, por 78 minutos, interrompidos de apresentações, ideias, música, comunidade e, com sorte, um lugar para refletir.

RODRIGO AREIAS: O Aaron havia recuperado o material de arquivo do seu tio uma década antes de 2022, quando apareceram mais de 40 latas de película do arquivo de Burroughs que nunca tinham sido vistas. Nisso havia uma parte substancial da Nova Convention que cobria partes do evento de que não se conheciam imagens. Desta forma, o Aaron me convidou para pensarmos um projeto juntos. A minha ideia foi desde logo poder contar a história deste encontro criativo de todo o avant-garde nova-iorquino do final dos anos 1970. Pareceu-me fazer mais jus à ideia original de Howard Brookner. Ideia que ele nunca conseguiu concretizar. Ou seja, isto não é o restauro de um filme. É um filme feito a partir de arquivos existentes. Filme esse que seria impossível fazer à época, pois o financiamento ao documentário era televisivo e um filme desta natureza seria muito difícil de existir então.


Vocês conversaram com os artistas sobreviventes que estiveram no evento de 1978? Com ​​Patti Smith ou Laurie Anderson, por exemplo? Caso tenham conversado, o que lhes contaram sobre a experiência?

RODRIGO AREIAS: Houve um momento em que tanto Patti Smith quanto Laurie Anderson e a poeta Anne Waldman estavam disponíveis para serem filmadas dentro deste documentário, dando uma perspectiva do que foi o evento. Mas acabamos por considerar que esse contexto não seria benéfico para o filme. Seria melhor fazermos um filme apenas com as imagens de arquivo e, desta forma, conseguirmos apresentar uma bolha temporal.

AARON BROOKNER: Foi um momento consistentemente significativo para todos os presentes. Dos artistas ao público. Um evento raro que realmente simbolizou algo maior. A diretora de palco, Rebecca Litman (que na época se chamava Rebecca Christensen), descreveu-o como “o Woodstock do Lower East Side”.

Foi difícil reunir fundos para trabalhar no filme? Por que uma produção anglo-portuguesa e não americana?

RODRIGO AREIAS: Esta produção é anglo-portuguesa pois os produtores são a Pinball London, empresa do Aaron e da sua mulher Paula Vaccaro, sediada em Londres, e portuguesa, pois o financiamento é feito através do Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA) e da Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Tem que ver com a detenção de direitos por uma parte e com o financiamento português por outra.

AARON BROOKNER: É muito difícil arrecadar fundos para restaurar e preservar um único filme, quanto mais um arquivo inteiro em película, mas eu e a produtora Paula Vaccaro trabalhamos neste arquivo há muito tempo. A Pinball London, minha produtora no Reino Unido, já havia trabalhado com a Bando A Parte, de Rodrigo, com grande sucesso na produção de “Listen” (2020), e por isso decidimos trabalhar juntos novamente neste projeto em coprodução. Ficamos muito gratos pelo apoio do ICA, que realmente valorizou a importância cultural do material e a história que queríamos contar.

O co-diretor Rodrigo Areias: série de tevê sobre a vida e obra de Burroughs a caminho


Vocês acham que continuarão procurando materiais para adicionar a este filme nos próximos anos?

AARON BROOKNER: Estou feliz com a experiência imersiva que o “Nova 78” oferece ao público. Também aprendi a manter a mente aberta a todas as novas descobertas.

RODRIGO AREIAS: Não para este filme. Mas sim outras possibilidades. Existem muitas dezenas de horas de arquivos incríveis e inéditos sobre a vida e a obra de William Burroughs no arquivo de Howard Brookner. A ideia será fazer uma série de televisão mais biográfica e com a participação de uma série de entrevistas feitas hoje e outras dos arquivos. Existe também uma parte incrível dos arquivos sobre a relação familiar de William Burroughs com o seu filho William Jr. e com o seu irmão. Coisas absolutamente inéditas e incríveis.

“Nova 78” filme nos mostra, com ironia involuntária, que nenhum dos presentes à convenção imaginaria um futuro tão distópico quanto o atual, especialmente nos Estados Unidos, cujo atual governo parece querer revogar todo o humanismo, a liberdade e o progresso ambiental sobre a Terra. Vocês enxergam este filme como um manifesto pela paz, justiça ou igualdade na América, em Portugal e no mundo?

AARON BROOKNER: Uma pessoa que certamente viu isso com bastante clareza foi Burroughs. Ele entendeu de forma muito ampla os perigos do fundamentalismo em geral. Não tinha vergonha de falar o que sentia ser correto. E, ao mesmo tempo, se manteve muito aberto e sem julgamentos. O que eu acho que este filme mostra é que a arte e as ideias, embora possam ser políticas, operam inerentemente em um nível mais profundo que transcende a nacionalidade e até mesmo a sociedade. É realmente uma questão espiritual. Nesse nível, estamos todos unidos e eu adoro que este evento tenha sido organizado em torno da troca de arte e ideias nesse espírito, que além de ser americano fala comigo como cidadão do mundo.

RODRIGO AREIAS: O posicionamento político de Burroughs é de uma lucidez e uma clarividência muito relevantes hoje. Conseguimos perceber que os problemas de 50 anos atrás ainda são os mesmos. As tentativas autoritárias voltaram um pouco por todo o mundo. Os Estados Unidos estão no pior momento da sua história, estão claramente a viver um fim de ciclo, o fim de um Império. O Brasil viveu um período dantesco com Bolsonaro. E Portugal caminha na mesma direção, como se não conseguíssemos ver o que se passa ao nosso redor. Nesse sentido, este filme tem esse propósito político de trazer à luz do dia ideias e conceitos sobre as liberdades e direitos nos Estados Unidos e no mundo. E se o filme puder ser um manifesto pela paz, justiça e igualdade em todos os lugares, então estamos a fazer alguma coisa certa.

Um homem e seu mistério, em cena de abertura de “Nova 78”

NOVA ’78 (NOVA ’78)
Aaron Brookner e Rodrigo Areias
80 min.
REINO UNIDO, PORTUGAL.
Falado em inglês. Legendas eletrônicas em português.
Na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo:

ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 2: 24/10/25, 22h

INSTITUTO MOREIRA SALLES – PAULISTA: 25/10/25, 17h10

Para mergulhar em Kim Novak

Lágrimas, excertos de filmes, recordações: a estrela de “Vertigo” derrama memórias ao refletir sobre sua carreira no cinema, em documentário presente na 49ª Mostra

A atriz em casa, aos 92 anos, reflexiva ao percorrer álbuns e caixas com memórias

Os olhos claros, grandes e vivos. A boca pequena. Lábios pintados ostensivamente, assim como os cabelos. Rosto de enigma. A face célebre que não existe mais, perdida no espelho de Hollywood. 

Kim Novak tem 92 anos e teme morrer. Ela mesma, a protagonista de “Vertigo (Um corpo que cai)”, clássico dirigido por Alfred Hitchcock em 1958, confessa esse medo ao cineasta Alexandre O. Philippe. O diretor do documentário poético “Kim Novak’s Vertigo” (Um corpo que cai, por Kim Novak), presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, filma suas conversas com a atriz, os depoimentos não raro emotivos que ela lhe dá, como quem deseja erguê-la a um panteão de eternidade, a partir da casa da atriz no Oregon.

Para conseguir o efeito do que é eterno, Philippe insiste na fotografia embaçante e na trilha sonora a partir de um piano de prelúdio, o que por vezes está a ponto de desacreditar seu filme. O espectador pode se perguntar por que o diretor terá pesado a mão assim. Talvez Phillipe se visse obrigado a isso para não magoar sua biografada. Por todo o filme, a atriz agradece a maneira positiva com que o diretor a vê artisticamente, quando nem mesmo ela se enxergava assim, isto até encontrá-lo…

É que Kim Novak não quis desde sempre ser atriz. Seu pendor possivelmente fosse pelas artes plásticas e pela fotografia. Fez belas imagens do pai, que, ao contrário de sua mãe, jamais expressava os sentimentos. Até hoje Kim Novak pinta telas, muitas delas perdidas em três incêndios nos penhascos californianos diante do mar, onde a atriz viveu a partir de 1961, e de onde podia avistar o cenário de “Vertigo”. É uma pintora por vocação, a lutar com a fixação em óleo de autorretratos, pássaros, os rostos de seus pais, as ondas do mar, os rasgos do céu. Pinceladas com a mão esquerda que, mostradas no filme, são como voos – ou, por que não dizer, “vertigens” – de representação.

Kim Novak começou a vida profissional como modelo fotográfico, durante os meses de férias escolares. E, mesmo depois de atraída ao cinema, não se via como intérprete. Como diz, não “atuava”, à moda do que se espera de um ator, apenas reagia _ era uma espécie de reactor, o que não deixa de ser uma classificação estranha. As grandes interpretações cinematográficas nascem justamente da capacidade de reação de um rosto. Desde a época silenciosa, o rosto e o corpo disseram tanto ou mais que as palavras.

O célebre tailleur cinza, desenhado por Edith Head, em cena de “Vertigo”: para enxugar as lágrimas

Quando Hitchcock a escalou para “Vertigo”, ela desconhecia o trabalho do diretor. Mas gostou do roteiro, a ressaltar a dualidade em sua personagem, condição que a atriz estendeu psicologicamente a si mesma, principalmente após viver o estrelato em Hollywood. No filme, ela conta que o produtor Harry Cohn controlava sua vida profissional e a obrigava a tantos papeis diferentes que, depois de um tempo, ela parecia não saber quem de fato era. Contudo, ao lado do amigo (algo professor) James Stewart no filme de Hitchcock, a atriz encontrou um caminho para o autoentendimento. E guardou o roteiro de “Vertigo”, que, por milagre, foi salvo do fogo californiano em três ocasiões. Não só o roteiro – um figurino de Edith Head também. No documentário, ela seca as lágrimas no célebre tailleur cinza usado no filme.

Homenageada no festival de cinema de Veneza deste ano, Kim Novak parece fazer tudo apenas quando ditada por um impulso interior. E por isso há excesso de interiores, por assim dizer, no cinedocumentário de Philippe. A ultrarromantização está a um degrau ou dois do kitsch. E Kim interpreta o tempo todo, a voz não raro trêmula, mesmo quando diz apenas reagir às caixas de memórias que incumbiu o diretor de reabrir, de modo a novamente “surpreender-se”. Contudo, se você construiu seu conhecimento a partir do cinema clássico de Hollywood, não deve perder este filme por motivo algum. Grandes emoções, grandes histórias.

O diretor Alexandre O. Philippe

Um corpo que cai, por Kim Novak
Alexandre O. Philippe
EUA
76 min

Falado em inglês.
Legendas eletrônicas em português

12 anos

MULTIPLEX PLAYARTE MARABÁ – SALA 4: 21/10/25, 19h40
RESERVA CULTURAL – SALA 1: 22/10/25, 13h

CINEMATECA SALA PETROBRAS: 23/10/25, 16h30

ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 1: 24/10/25, 13h30 

A rainha infinita, por Stroheim

Durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o editor Dennis Doros apresenta sua nova restauração de “Queen Kelly”, clássico inconcluso do cinema silencioso dirigido por Erich von Stroheim e protagonizado por Gloria Swanson

O diretor Erich Von Stroheim retoca
a maquiagem de Gloria Swanson durante a
filmagem de Queen Kelly, em 1928

Há quarenta anos, o restaurador estadunidense Dennis Doros começou um dos maiores e mais longos empreendimentos pela memória do cinema ocidental. Um vendedor de 27 anos em 1985, ele foi informado pelo chefe da empresa cinematográfica onde trabalhava que um clássico da Hollywood silenciosa, Queen Kelly, jamais havia sido concluído, e que suas partes permaneciam soltas. Sem imaginar o tamanho da tarefa que no fim das contas lhe tomaria décadas, Doros se ofereceu para reconstruí-lo. Jamais atuara antes disso como arquivista ou editor, funções atribuídas aos que restauram filmes antigos. E, durante os 18 meses em que esteve envolvido nesta primeira reconstrução, teve de fazê-la pela madrugada, pois não poderia perder o salário como vendedor da empresa, função cumprida de 9h às 17h nos dias úteis. A versão restaurada foi um sucesso, ganhou o prêmio da crítica da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo então, e volta agora renovada ao evento, com o acréscimo de sequências e stills.


A exibição de uma cópia de Queen Kelly em nitrato de celulose, na Nova York de 1984, havia deslumbrado o jovem nascido na vizinha Nova Jersey. A fotografia de Paul Ivano (que assinava a função junto a Gordon Pollock) tinha um brilho especial, sem contar as interpretações de Gloria Swanson e de sua antagonista, Seena Owen, naquele filme que o vienense Erich Von Stroheim (1885-1957) jamais fora autorizado a concluir.

O príncipe Wofram (Walter Byron) e a devassa rainha Regina (Seena Owen) sob iluminação esfuziante



Queen Kelly é um vulto de assombro na história do cinema. Um projeto escrito por Stroheim dentro de sua fase dita imperial (durante a qual houve outros títulos dirigidos por ele sob a inspiração “aristocrática”, como Marcha nupcial, em 1928, ou A viúva alegre, de 1925), que tanto agradava ao público estadunidense, desprovido de rainhas e reis. Desde o fim do império Austro-Húngaro e da cruel Primeira Guerra, em 1918, principalmente após o colapso da Bolsa de Nova York, em 1929, eram muitos os enredos que almejavam fantasiar a vida nobre ao grande público de Hollywood, fazendo do escapismo palaciano uma farsa até necessária.

Que outro caminho teriam as personagens femininas então, e por toda a década de 1930, senão esperar o acolhimento de um príncipe provedor? Um magnata, ao menos? A luta feminista vinha sem fim e a pobreza disseminada permitia que baronesas ficcionais se encondessem entre os assalariados cinematográficos nos filmes de grandes bilheterias. Era já 1953 quando William Wyler dirigia a bela novata Audrey Hepburn em A princesa e o plebeu, fazendo-a viver, em terra, a modernidade dos cabelos curtos, do cigarro e das motocicletas – o mundo dos modernos que lhe fora negado em seu castelo de origem, situado nas nuvens de algum país europeu ficcional.

Gloria Swanson, de tranças para rejuvenescer,
e Wolfram: conto de fadas que adulou o
catolicismo irlandês de Joseph Kennedy

No final dos anos 1920, Queen Kelly prometia. Os que liam seu roteiro o julgavam original. E ninguém tinha a coragem de brincar com o talento de Erich von Stroheim. Claro que isto seria possível depois: em 1950, o diretor Billy Wilder, também emigrado aos Estados Unidos, estamparia deliberadamente o declínio do colega de trabalho, assim como de todo o cinema mudo, no clássico Crepúsculo dos Deuses. No filme, Gloria interpretava a estrela abandonada da era silenciosa cujo mordomo vinha a ser justamente Stroheim, que então sobrevivia como ator e, diz o biógrafo Arthur Lennig, julgava este um dos piores papeis a ter vivido no cinema.

A rainha Regina e o gato branco da
luxúria: um show de Seena Owen

Ele que pôde quase tudo exigia bastante dos produtores. A fama de perfeccionista de Stroheim impacientava a todos, dentro e fora dos ambientes de filmagem. No final dos anos 1920, o produtor Pat Powers estava farto de seus gastos impossíveis e de seu gênio incontornável, mas não queria liberá-lo para outros estúdios, sabedor dos sucessos que poderia produzir em searas rivais. Neste meio tempo, em 1926, a super estrela de Chicago Gloria Swanson deixara a Paramount de modo a construir uma produtora independente dentro da United Artists. Quem acompanhava seus passos empreendedores era o então amante, o investidor de ascendênia irlandesa Joseph P. Kennedy, que viria a ser o pai do presidente dos Estados Unidos John Kennedy.

Erich von Stroheim durante filmagem no set:
Joseph Kennedy jurou colocá-lo “na linha”


A ambição de Joseph Kennedy era grande. Ele queria ser não apenas um produtor de cinema: queria ser o maior. Por isso, pensou em alguém para dirigir Gloria de modo a lhe render o prestígio almejado. Sem ser do ramo, ele via em Stroheim o caminho para a produção de um filme inesquecível. Gloria ponderou que Stroheim tinha a fama de difícil e que, de todo modo, estava preso a Pat Powers. Kennedy disse que arranjaria tudo e, em uma conversa com o produtor, de fato conseguiu a liberação de Stroheim. “Vou colocá-lo na linha”, garantiu a Gloria.

Foi assim que Stroheim, ao deparar com um produtor inexperiente, ofereceu-lhe uma história de encanto. Seu roteiro versava sobre a jovem Patricia Kelly de Gloria, que, interna em um convento (lugar mítico para o catolicismo irlandês), deparava pela estrada com o belo príncipe Wolfram. Interpretado por Walter Byron, ele infelizmente era comprometido com a  rainha Regina, em atuação espetacular de Seena Owen. O príncipe se apaixona por Gloria (então com 30 anos, algo inverossímil como a menor de idade de tranças que representa) e vai libertá-la do convento simulando um incêndio.

Há fogo demais no filme para ilustrar o amor. As velas, por exemplo, estão sempre acesas durante o jantar entre os dois apaixonados, em pleno castelo da rainha má. Em momentos que alternam drama e comicidade, Gloria quase cai de costas na lareira, consumida pelas chamas. E ri.

Kelly e Wolfram, envoltos na luz de velas da paixão

O filme teria uma primeira parte em ambiente palaciano e a segunda revelaria o trágico destino da jovem Patricia. Ela se tornaria Queen Kelly, a rainha de um bordel na África, depois de oferecida em casamento a um velho decrépito pela tia, dona do bar Poto-Poto. E seria resgatada anos depois pelo príncipe aventureiro, num improvável final feliz. Com apetite para os grandes romances, Stroheim queria dirigir cinco horas de filme. Gloria lutou por limitar as sequências. A United Artists apavorou-se. De cara, rejeitou o título que Stroheim propôs ao filme, The swamp (O pântano), nome do bordel africano que a personagem de Gloria Swanson administraria. Impôs Queen Kelly (Rainha Kelly) e Stroheim aceitou.

Em 1 de novembro de 1928, quando o trabalho teve início, o cronograma previa oito semanas de filmagem. Em janeiro do ano seguinte, as oito semanas já tinham se transformado em doze. Inicialmente, as filmagens se dariam nos dias úteis, das 8 às 17 horas. Mas logo findavam às 21 horas, nos sábados também. Dos 42 primeiros dias, 20 estenderam o trabalho da equipe até meia-noite.

Gloria começou a se preocupar. Depois de gastar 400 mil dólares, entendeu que seriam necessários mais 400 mil para finalizar o filme – e 800 mil dólares de investimento eram um padrão de época para superproduções. Além disso, ela testemunhava o sucesso crescente do cinema falado, que mudava todo o mercado cinematográfico naqueles anos. Como pedir a Stroheim que inserisse fala em algumas um sequências deste périplo silencioso?

Gloria Swanson com Tully Marshall
ao fundo: diante de um destino de morte



Ela e Joseph ainda acreditavam na obra e prosseguiam com seu diretor, mas Gloria se sentia a cada dia mais irritada. Às vezes, enojada. O roteiro pedia, por exemplo, que o personagem de Tully Marshall, o asqueroso Jan Bloehm Vryheid, com quem Kelly se veria casada diante do leito de morte da tia, cuspisse o fumo mascado na mão da noiva. Ela achava isso inaceitável. E se sentia cansada também. A filmagem de uma sequência que duraria uma hora em qualquer outro set, com Stroheim rolava por 24 horas inteiras. No belo dia em que ele gastou cem metros de filme e, insatisfeito, atirou-os ao lixo, ela se impacientou e ligou para Joseph, que o demitiu em 21 de janeiro de 1929, sem mais.

Eis que os problemas ficaram ainda maiores para os produtores. A segunda parte do roteiro, a africana, mal havia começado a ser filmada naquele mês. Um novo diretor, Richard Boleslawsky, apareceu para reconduzir o filme, mas não pôde fazer muito. O roteiro era  peculiar. E ele não tinha o toque de quem o concebeu para continuar o longa, àquela altura com uma hora e meia de material filmado. Decidiu-se então por um corte que diminuiria o tempo final para 71 minutos, depois de extraída a parte africana. Queen Kelly foi lançado assim em 1932. Stroheim viu o filme e impacientou-se. Usaram todo o material que ele havia filmado sem se preocupar em editá-lo, e isto, a seu ver, tornava as sequências arrastadas, sem ritmo. Qual o sentido?

Kelly no bar da tia, o Poto-Poto, onde
é recebida por Kali (Madame Sul-Te-Wan) e Coughdrops (Rae Daggett)



Depois do trabalho de Dennis Doros, em 1985, o filme ganhou 17 minutos. Agora, são 105 no total, com uma nova trilha sonora, escrita por Eli Denson e executada por estudantes da Indiana University Jacobs School of Music. É uma versão que se anuncia a mais próxima do roteiro de Stroheim.

No filme, as luzes do fogo e do amor transmutam-se para a densidade da água, por onde Kelly se aventura. A continuação do filme teria prometido aumentar esse contraste, pois tudo em Erich von Stroheim é feito de grandes oposições – de iluminação, de atuação, de cenários. A fotografia em preto e branco, quando vista na tela do cinema, é nada menos que esfuziante. Os cenários detalham-se em brilho e os personagens insinuam lascívia. A rainha Regina, a louca, embriaga-se e se faz acompanhar por gatos brancos que cobrem sua nudez. Pequenos cães negros seguem agitados a corte do príncipe. Pena não podermos testemunhar a atuação de Gloria como a rainha Kelly do pântano africano, de quem só temos fotografias. Ela parecia perfeita para representar um novo poder.

Gloria Swanson caracterizada como a
Queen Kelly africana: teria sido um novo poder

A seguir, a entrevista que fiz por email com o restaurador Dennis Doros, presente na 49ª  Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Dennis Doros, dono da Milestone, e sua sócia, a esposa Amy Heller: eles renovaram a restauração de Queen Kelly, atribuindo-lhe uma nova trilha sonora

Foto de Valerio Greco

Quando você viu Queen Kelly pela primeira vez? O que atraiu sua atenção para o filme?

Eu trabalhava na Kino International em 1984 quando meu chefe, Don Krim, adquiriu os direitos do espólio de Gloria Swanson, antes mesmo de eu assistir ao filme. Meu palpite é que ele viu a atriz apresentar o longa em Nova York na década de 1960. Quando Don me disse que o filme nunca tinha sido totalmente finalizado e que havia cenas descartadas, perguntei inocentemente se poderia trabalhar nele. (Eu não tinha experiência anterior como arquivista ou editor.) Don concordou e marcou uma exibição da cópia em nitrato de 35mm no Thalia Theatre, na Broadway com a rua 95, em Nova York. Fui imediatamente cativado pelo brilho do filme – a fotografia espetacular de Paul Ivano –, além de estar diante de uma cópia em nitrato de celulose pela primeira vez. Também me apaixonei pela qualidade da interpretação, particularmente pelas atuações de Gloria Swanson [como Patricia Kelly] e Seena Owen [como a rainha Regina, a louca].

De arquivista e editor você passou a produtor, e talvez Queen Kelly seja uma das produções mais malsucedidas de Hollywood. De que maneira ter conhecido essa história contribuiu para sua nova carreira profissional?

Amy Heller (minha esposa e sócia na Milestone Film & Video) e eu produzimos apenas dois filmes (sem contar os bônus de DVD): o documentário Notfilm, de Ross Lipman [de 2015, sobre a colaboração entre o cineasta Buster Keaton e o escritor Samuel Beckett], e The many miracles of household saints, de Martina Savoca-Guay [documentário de 2024 sobre o filme Um anjo de mulher, dirigido por Nancy Savoca em 1993].

Lembro-me que Notfilm teria originalmente 40 minutos, mas acabou com 130 e custou o dobro do que prevíamos. Mas como ao final ficou em “apenas” 60 mil dólares e arrecadamos o valor pela plataforma de financiamento coletivo Kickstarter — além de o filme estar pronto e maravilhoso —, a experiência foi semelhante, mas não tão devastadora quanto a de Gloria ao produzir o filme dirigido por Stroheim.

Quanto tempo levou a primeira restauração de Queen Kelly, nos anos 1980?

Como mencionei, a primeira vez partiu de um pedido completamente impulsivo e excêntrico feito por mim a meu chefe, em 1985. Eu não tinha ideia do que estava fazendo, nem do compromisso que assumia. Naquela época, eu era o vendedor não-cinematográfico da Kino, então trabalhava em Nova York das 9h às 17h todos os dias, pegava o ônibus de uma hora para casa em Nova Jersey, depois dirigia mais uma hora até o norte de Nova Jersey e continuava o trabalho como restaurador das 21h às 2h da manhã. Fiz isso por cerca de 18 meses e terminei a restauração um dia antes da estreia na Berlinale, o Festival Internacional de Cinema de Berlim. Felizmente, a dona do laboratório de cinema, Janice Allen, segurou minha mão em cada passo do caminho.

O que eu pensava disso tudo? Eu me achava uma fraude total – um amador brincando de edição e restauração de filmes. Tinha 27 anos e presumi que seria pego e demitido assim que o filme estreasse. Mesmo com o sucesso do Queen Kelly restaurado e as críticas entusiasmadas em todos os lugares, levei anos até me considerar um arquivista. Até hoje, me vejo como um ótimo distribuidor que teve a sorte de restaurar alguns filmes maravilhosos com a ajuda de amigos, arquivos e laboratórios.

O que o levou a continuar procurando materiais para o filme nos anos seguintes?

Eu era amigo do advogado do espólio de Swanson, Edmund Rosenkrantz. A amizade surgiu porque ele não tinha a minha memória corporativa, que remontava a década de 1980. Então, em 2015, quando a Kino International cedeu os direitos de Queen Kelly e Sadie Thompson [Sedução do Pecado], minha segunda restauração [realizada em 1987 para este filme de 1928 de Raoul Walsh], ele ligou e nos ofereceu esses direitos. 


Eu realmente esperava apenas pegar os negativos que havia produzido nos anos 1980 e, a partir deles, fazer novos masters digitais para Queen Kelly. Mas o laboratório em que eu trabalhara então já havia fechado e, durante os anos que levei para readquirir os negativos, tive dúvidas sobre minha restauração original. Não é que eu odiasse meu trabalho daquela época, mas eu tinha aprendido muito mais sobre a arte do cinema mudo e da restauração. Pensei que desta vez poderia fazer um trabalho melhor. Então, como em toda restauração, comecei pela pesquisa.

Você conheceu Gloria Swanson? 

Gloria havia falecido em 1983, antes de eu começar a trabalhar em Nova York, então nunca a conheci. Consultei seu amigo e arquivista, dr. Raymond Daum, e seu advogado, Bob Benjamin, mas eles não me aconselharam sobre a restauração. O espólio de Gloria (suas filhas, Michelle Amon e Gloria Somborn Daly) aprovou a reconstrução, mas eu não tive contato com elas. Mais tarde, quando trabalhei em Beyond the Rocks [Esposa e Mártir, de 1922, estrelado por Swanson e dirigido por Sam Wood], com o Eye Filmmuseum de Amsterdã, mantive correspondência com Michelle. Agora, a neta de Gloria, Brooke Anderson, é uma amiga.

Você conheceu outros integrantes da equipe original de produção ou edição de Queen Kelly? Trocou ideias com eles sobre o seu trabalho?

Tive a sorte de poder contar com o historiador de cinema Richard Koszarski, biógrafo de Erich von Stroheim, como consultor na restauração. Ele conheceu vários integrantes da equipe. Embora todos já tivessem falecido quando comecei o trabalho, Koszarski conseguiu transmitir suas memórias.

Quanto tempo você dedicou a esta nova versão? Quais foram as suas principais dificuldades em fazê-la? A IA foi utilizada de alguma forma neste trabalho?

Iniciei a pesquisa em 2015 e tive muita sorte em contar com a cooperação imediata da Biblioteca Kennedy. Eles digitalizaram milhares de páginas dos arquivos de produção de Joseph Kennedy sobre Queen Kelly. O Centro de Humanidades Harry Ransom, em Austin, Texas, também me forneceu ainda mais digitalizações dos documentos de Gloria Swanson. 

Levei vários anos para estudar e desenhar um plano de ação enquanto aguardava o retorno do negativo da restauração de 1985. O maior problema foi a perda da impressão em nitrato de Swanson que eu tinha visto em 1984. Felizmente, o Museu George Eastman, em Rochester, Nova York, revelou que havia guardado secretamente outras impressões em nitrato e sequências descartadas com a participação de Gloria Swanson. Então, em 2022, eu estava pronto para começar. 

Foi neste ponto que veio a segunda dificuldade — como sempre, o dinheiro para restaurar o filme precisava ser levantado e ninguém se apresentava para concedê-lo a nós. No início deste ano (2025), Amy e eu anunciamos nossa aposentadoria e percebemos que, se quiséssemos fazer esse trabalho, teríamos de adiantar o dinheiro nós mesmos. Usamos nossas economias para essa restauração.

Quanto à IA, o único envolvimento desse tipo foi o uso dela pelo laboratório, de modo a marcar toda a poeira e os arranhões no material e ajudar a remover os pequenos danos. A remoção da poeira e dos arranhões foi feita por Ian Bostick e Metropolis Post. A IA mostrava a ele os estragos, mas ele tinha de aplicar o software em cada caso, o que envolvia centenas de milhares de decisões. Para cenas que o público acha que foram criadas por IA, elas foram, na verdade, criadas por ampliações ópticas antiquadas — assim chamariam na época — de cenas anteriores do filme.

O que lhe deu mais alegria ao concluir esta segunda versão?

Em primeiro lugar, o projeto dos sonhos de Erich von Stroheim e Gloria Swanson está sendo visto novamente por pessoas do mundo todo. Além de São Paulo, foi exibido no Festival de Cinema de Veneza, no Festival de Cinema de Nova York, no Festival de Cinema de Lumière (França) e, em breve, em Taipei, Atenas e Hong Kong. Em janeiro, será lançado nos cinemas dos Estados Unidos e em todo o mundo, e depois estará disponível em DVD e televisão. A recepção tem sido muito positiva, e sou grato por isso.

Você considera seu trabalho na (possível) reconstrução de Queen Kelly completo?

Como ocorre em todas as minhas restaurações, nunca as considero as versões finais. Haverá tecnologias futuras que aprimorarão o que Amy e eu fizemos e os filmes continuarão a encontrar novos públicos. Com Queen Kelly, houve algumas cenas curtas filmadas no bar Poto-Poto que supostamente se perderam em uma enchente. Talvez elas sejam descobertas um dia, e eu serei o primeiro a aplaudir o trabalho do próximo arquivista na próxima reconstrução.

QUEEN KELLY
Dirigido por Erich von Stroheim
105 minutos
Estados Unidos
Filme silencioso, com cartelas em inglês e português

Três sessões durante a 49ª  Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 1: 18/10/25, 17h25
CINEMATECA SALA GRANDE OTELO: 19/10/25, 20h25
CINE SEGALL: 30/10/25, 18h30

um jornalista se vai, mas há muito o jornalismo se foi

Soube de Marcelo Beraba, jornalista que morreu hoje, em dois momentos. O primeiro deles, quando ele era diretor da sucursal do Rio da Folha e eu, redatora de Geral, em São Paulo. Não nos conhecíamos pessoalmente, mas nos falávamos por telefone. Comigo, era correto e gentil.

Pedi demissão da Folha em 1988 e, alguns anos depois, fiz a besteira de participar de uma seleção para trabalhar novamente nela, desta vez na Ilustrada. Sim, uma seleção para redator com questionário e tudo. Beraba leu minhas respostas, gostou muito delas e, na minha frente, durante a entrevista final, perguntou à editora do caderno por que ela riscara tudo o que eu escrevera. “Alguma coisa errada aqui?”, questionou. Ela não respondeu. Riu.

Fiquei com essa impressão boa do desafio que ele fez à autoridade do caderno, diante de mim. Ah, se todos os profissionais trabalhassem com critérios profissionais! Embora eu esperasse que um secretário de redação fosse mais decisivo do que Beraba foi naquele momento para mim, hoje compreendo suas razões. Ele não poderia ter desautorizado, diante de uma estranha, alguém que Otavinho escolhera para comandar o caderno. E como o secretário poderia saber que o concurso era só uma formalidade? A vaga de redator já tinha dono, alguém sem caráter, por sinal, com quem vim a trabalhar anos depois.

Deve ter sido um bom profissional, o Beraba. E eu sinto muito por sua morte agora, aos 74 anos.

O encanto revolucionário de Godard

Livro da historiadora francesa Nicole Brenez, lançado durante homenagem no Sesc, refaz a trajetória do cineasta como um pensador de ação, inspirado nos românticos alemães

Jean-Luc Godard em Berkeley, 1968, na foto de Gary Stevens: a transformação não descarta o chiste

Uma viagem pelo conhecimento e pela ação revolucionária exercida através do cinema, entendido como arte de transformação. Eis o que Jean-Luc Godard – Escritos políticos sobre o cinema e outras artes fílmicas oferece a seu leitor, por meio de um impressionante fluxo reflexivo. Publicado originalmente na França pela editora De l’incidence éditeur, há dois anos, e a ser lançado no Brasil às 19h30 do dia 15 de julho de 2025 pela Desconcertos, em mesa-redonda na biblioteca do Sesc Avenida Paulista, o livro da historiadora e crítica de cinema francesa Nicole Brenez integra vasta programação daquela unidade em homenagem ao cineasta, morto em 2022, aos 91 anos. Haverá até o dia 25 um ciclo de filmes, dois cine-concertos e um curso no Sesc Avenida Paulista a partir da perspectiva crítica e política apresentada no livro (veja a programação ao final deste texto).

Nicole Brenez, de 64 anos, professora da Universidade Paris 3 (Sorbonne Nouvelle), historiadora, crítica e programadora de sessões de vanguarda da Cinemateca Francesa, define-se como uma pirata a serviço de Godard. Ela admira seu espírito de contradição tanto quanto sua energia contestatória, o prazer pelo chiste tanto quanto o empenho revolucionário pelo cinema e pela transformação social, além de sua capacidade de revelar o desconhecido no conhecido, como um poeta e um filósofo fariam. Brenez nos propõe um caminho para decifrar a originalidade de Godard ao desenhar seu percurso intelectual. De forma talvez surpreendente, ela vê o pensamento do cineasta fundado no romantismo alemão, que pregava a “liberdade integral de auto-determinação”.

Para Brenez, Godard é o “Goethe dos séculos XX e XXI”. Cada filme seu propõe uma forma organizacional diversa, inverte uma estrutura singular, conforme faziam os escritores sob a perspectiva romântica. O romantismo alemão floresceu no final do século XVIII e início do século XIX como uma reação ao racionalismo iluminista, valorizando a emoção, a subjetividade e a imaginação. Como os românticos, Godard terá vivido de contradizer as grandes ordens da estética clássica e preconizado a diversidade formal, a variedade sem fim, munido do que a autora denomina Witz, um poder eletrizante para praticar a montagem do pensamento e desfazer simbolicamente o poder, este que também não passa de um conjunto de símbolos. 

E então há que buscar em outro romântico, Karl Wilhelm Friedrich Schlegel (1772-1829), um fundamento para o ocasional exercício da obscuridade de que tanto Godard é acusado, talvez não sem razão. Ser obscuro se faria necessário para ele, tanto quanto para Schlegel, porque os dois teriam entendido que a compreensão total é impossível, dado o caráter caótico e contraditório de todos os seres. Além disso, o cineasta exerceria o Cinismo grego, que, surgido no século IV a.C., dilacerava com belos dentes toda forma de alienação, conformismo e superstição. E, claro, Godard também se apoiaria em outro alemão, o Karl Marx que transformou a especulação filosófica em ação.

Em “A Chinesa” (1967), a revolução vermelha de Anne Wiazemsky, Jean-Pierre Léaud e Juliet Berto

Até 1968, Godard buscou desvelar o poder por meio de obras como “A chinesa”, mas, a partir de então, fez filmes fundados na contra-informação, à moda do que empreendia o diretor Chris Marker para furar as falsas verdades do poder. A energia emancipatória de sua luta, para usar uma expressão repetida pela pesquisadora no livro, foi renovada de forma constante. Os últimos filmes de Godard são construídos sem personagens e sem narrativas, a partir de um esquema visual feito à mão, principalmente à base de imagens reempregadas, concebido em parte como multitelas e, no final, exibido de todas as maneiras e em todos os canais, exceto em uma grande sala de cinema comercial. Ele fez um cinema para o qual o sofrimento humano é o princípio a ser encarado e revisto. “Já está na hora de o pensamento voltar a ser o que é na realidade: perigoso para o pensador e transformador da realidade”, conforme ensinou Denis de Rougemont.

Nas fotos reempregadas de Imagem e Palavra (2018), o ponto de partida é o sofrimento

Brenez conheceu Godard em uma ocasião na qual o diretor decidiu exibir para alguns pesquisadores sua pré-montagem de “Imagem e Palavra”, filme de 2018. (Sim, Godard trabalhou em colaboração por toda a vida). Brenez foi até lá munida de lápis e papel para fazer anotações, e Godard se incomodou com isso de início, por achar que, ao escrever durante a sessão, ela se distrairia do filme. No dia seguinte, pediu-lhe suas notas, que continham sugestões de paralelos com as sequências apresentadas no filme. Godard se encantou com suas ideias e os dois iniciaram uma correspondência por email que durou até a morte do diretor, quatro anos depois. 

Em seu livro, Brenez mostra alguns emails que recebeu do diretor. “Cada mensagem eletrônica de Jean-Luc Godard oferece uma pequena obra (opus) fundada no prazer de inventar simultaneamente ligações entre o título e o corpo do texto, ressonâncias novas entre imagem e linguagem, fraturas com capacidade de desabrochar as palavras em flores cubistas. O Witz no cotidiano. Nada aí permanece na quietude falaciosa dos usos. Até o fim, o telefone continuou sendo uma máquina de criar”, ela escreve. Contudo, mostra apenas uma de suas respostas ao diretor. Um dia, talvez queiram fazer um livro sobre esta sua correspondência com ele, mas ela mesma não fará. O que a consome agora é um grande projeto para mostrar a correspondência do autor com os profissionais de cinema de todo o mundo.

A seguir, suas respostas a minhas perguntas, feitas por email.

Nicole Brenez, autora de Jean-Luc Godard – Escritos políticos sobre o cinema
e outras artes fílmicas: pirata a serviço do cinema transformador

Em que momento você decidiu que precisava escrever este livro? Quanto tempo levou para terminá-lo? Teria sido o próprio Godard a lhe pedir que o escrevesse?

A decisão de criar este livro me ocorreu cerca de uma semana após o suicídio de Jean-Luc Godard, na manhã de 13 de setembro de 2022. Tratava-se, se não de sair do luto, pelo menos de fazer algo com ele para escapar do desamparo e da consternação. Jean-Luc não estava bem havia semanas, sua saúde se deteriorava, e quando lhe enviei uma mensagem, em 20 de agosto de 2022, tive a profunda intuição de que seria a última. Então, tentei escrevê-la da forma mais concisa e breve possível, para não cansá-lo, mas também da forma mais afetuosa e “perspectivista” possível, porque queria dizer-lhe que, ao contrário do que ele às vezes declarava – ou seja, que ninguém se interessava por seus novos filmes – sua obra estava sendo vista e debatida em todo o mundo pelas novas gerações, em particular porque agora, disponível integral e gratuitamente em sites piratas, persiste e ressoa cada vez mais. No entanto, nada nos prepara para a morte, não sabemos como a psique reagirá a ela. Para mim, como para muitos cinéfilos, esse desaparecimento já corresponderia a uma data na história do cinema, uma página prestes a virar, um baluarte contra o cinema industrial prestes a ruir. 

Após o anúncio do suicídio, tive o mesmo reflexo que meu amigo e colega David Faroult, outro especialista nesse trabalho. Percebemos isso em retrospectiva. Começamos a ouvir todas as entrevistas com JLG disponíveis na internet, como se fosse uma questão de ainda nos banharmos nas vibrações de seus pensamentos, de nos envolvermos neles para nos sentirmos menos infelizes. E se éramos dois, tenho certeza de que outros tiveram o mesmo reflexo.

Então, este é um pouco da atmosfera concreta da qual nasceu este trabalho, com uma loucura como projeto: que o livro existisse em 3 de dezembro de 2022, ou seja, na data de aniversário de JLG, que naquele dia teria completado 92 anos. Quase conseguimos: o livro foi concebido, estruturado, coletado, escrito, concluído, diagramado em três meses; mas tivemos que esperar até 3 de fevereiro de 2023 para que fosse distribuído nas livrarias, o tempo necessário para que voltasse da gráfica, fosse distribuído, etc. Como muitas vezes levo anos para escrever meus livros, este é, nesse aspecto, muito excepcional e eu o amo ainda mais por isso: uma vida de pesquisa racional (meu primeiro curso sobre Jean-Luc Godard data da década de 1980) e três meses de loucura gastos na escrita.

É claro que o próprio Jean-Luc não pediu para que este livro acontecesse. Sempre me surpreendi ao vê-lo me contatar, ele que parecia não ter o menor interesse, ou mesmo ser hostil, ao que escreviam sobre ele. Ao longo do trabalho que desenvolvi em sua companhia, tentei não me colocar na posição de exegeta, não lhe fazer perguntas sobre seus filmes anteriores, mas manter-me no presente em sua criação. Contudo, atendi a alguns pedidos desse tipo, como o do grande diretor de fotografia Pierre William Glenn, que precisava do depoimento de Jean-Luc para um documentário que estava preparando sobre seu amigo Johnny Halliday – você pode ler o resultado no livro.

Seu livro me pareceu uma jornada pelo conhecimento e pela ação revolucionária exercida por meio do cinema, entendido como uma arte de transformação. Às vezes, parecia denso, e a princípio busquei cada referência que ele abordava. Então, percebi que deveria percorrê-lo como se estivesse sendo levado pelo fluxo de ideias, histórias e conceitos que este manifesto de encantamento (digamos assim) contém. No final, percebi que é um livro que captura o leitor não apenas racionalmente, mas emocionalmente, levando-o a compreender os fundamentos de sua maneira única de fazer cinema — a maneira Godard. Meu modo de ler o livro é aceitável? Como você aconselharia os leitores a abordarem seu livro?

Muito obrigada por esta expressão, “uma viagem pelo conhecimento e pela ação revolucionária exercida através do cinema, entendido como arte de transformação”. Não poderia sonhar com uma abordagem melhor. E, na minha opinião, ela também resume perfeitamente a obra do próprio Jean-Luc Godard, que ao longo de sua vida buscou revolucionar o cinema: em sua escrita, no tratamento de seus temas, em sua relação com a realidade, em suas apostas políticas, em sua organização material, em sua logística, no uso de seus instrumentos… Nenhuma dimensão do cinema escapou às suas iniciativas revolucionárias. 

Em Friedrich Schiller, a inspiração para uma liberdade que se tornaria civil

Um dos aspectos a que ele frequentemente retornava diz respeito à organização concreta e material do cinema: ele explicava que uma equipe de filmagem formava uma pequena sociedade provisória e que, portanto, deveria ser fácil começar revolucionando as relações hierárquicas e de trabalho ali reinantes, de modo a começar a revolução por algum lugar. Nesse ponto, tão significativo em sua carreira acredito ter sido ele haver encontrado espontaneamente uma dupla influência: a de Friedrich Schiller e a do Romantismo alemão, que considerava a obra de arte um modelo de liberdade, precursora de uma liberdade que se tornaria civil; e a do Grupo Cine Liberación, de Fernando Solanas e Octavio Getino, redefinindo a prática do cinema com base em modelos de guerrilha, estes segundo os quais, em uma equipe, cada membro pode ser substituído por qualquer outro em caso de prisão, lesão ou morte.

Quanto ao livro, cada um o lerá como quiser, isso é óbvio; mas creio que todos começam lendo as mensagens do próprio Jean-Luc. De qualquer forma, é o que eu também faria se outra pessoa o tivesse publicado! Cada mensagem de JLG oferece uma pequena obra em si mesma e mostra até que ponto cada uma de suas ações, mesmo as mais técnicas, triviais, por exemplo, organizar uma reunião, se tornou uma oportunidade para criar, inventar, sorrir, de uma forma lúdica e alegre que, a meu ver, vem de muito longe, de toda a cultura do chiste de protesto atestada pelos cínicos gregos como Diógenes, por exemplo, e cuja teorização culmina com o Witz dos românticos, ao qual dediquei um estudo. Essa cultura do Witz, que passa por Baltasar Gracián, Diderot, Karl Marx, os surrealistas, os irmãos Marx… era congênita a ele, e a vemos funcionar cotidianamente nas mensagens que ele enviava de seu celular e que são pequenas montagens maravilhosas entre título, texto e imagem.

A riqueza das cartas de JLG conhecidas até o momento (ele publicou várias na Cahiers du cinéma, em particular) me lançou em uma empreitada que exigirá várias gerações de pesquisadores: publicar a correspondência de Jean-Luc Godard. Dois volumes já estão em preparação: sua correspondência com o curador e diretor de instituições culturais francês Dominique Païni; e com a cineasta suíça Danielle Jaeggi. Por isso, lanço um apelo a você: se tiver conhecimento da existência de correspondência com cineastas, artistas, críticos e programadores brasileiros, por exemplo, o caso mais evidente, Glauber Rocha, escreva-me!

Seu livro mostra Godard em contato constante com diferentes grupos de cineastas e técnicos. Ele buscava reavaliar sua própria obra e incorporar novas técnicas para concretizar sua atuação como diretor de cinema. Você acha que outros cineastas em contato com Godard souberam fazer isso de forma semelhante? Quem são seus maiores discípulos? Ou, melhor ainda, é possível seguir os passos de Godard no cinema, dada a singularidade e originalidade de sua expressão?

Esta é uma boa pergunta. Um cineasta verdadeiramente godardiano obviamente fará de tudo para evitar imitar Jean-Luc Godard e, como ele fez, encontrar o caminho para sua própria liberdade. Alguns cineastas o seguiram diretamente, como Chantal Akerman, respondendo a Pierrot le Fou (O Demônio das Onze Horas, 1965) com Saute ma ville (1971); Philippe Garrel a Masculin Féminin (Masculino-Feminino, 1966), com seus primeiros filmes; ou Rainer Werner Fassbinder, a La Chinoise (A Chinesa, 1967), com Die Dritte Generation (A Terceira Geração, 1979). 

Mas, acima de tudo, há uma linhagem magnífica de artistas que segue explicitamente os passos dos grandes ensaios de JLG e Jean-Pierre Gorin e que brilhantemente concretizaram essa herança formal: a linhagem de diretores como o tcheco Harun Farocki (1944-2014), Hartmut Bitomsky (nascido na Alemanha em 1942) e o romeno Andréi Ujică (nascido na Romênia em 1951). Juntos ou separadamente, eles criaram poderosos ensaios cinematográficos dedicados a muitos assuntos diferentes (a comercialização da vida, a sociedade de controle, a indústria militar, o papel paradoxal da televisão na revolução, o jogo de atuação, etc.), mas, como JLG, afirmaram e desenvolveram os poderes críticos da imagem e do som. 

Harun Farocki também dedicou-lhe Speaking about Godard (Falando sobre Godard, NYU Press, 1998), em conversa com Kaja Silvermann, um pouco como JLG e Anne-Marie Miéville conversaram em Soft and Hard (Soft Talk on a Hard Subject Between Two Friends): Speaking about Godard (Conversa suave sobre um assunto difícil entre dois amigos: Falando sobre Godard, vídeo-ensaio de 1998, com 52 minutos de duração). O professor de Cinema da Universidade de Zurique Volker Pantenburg escreveu um excelente resumo sobre o assunto, Farocki/ Godard: Film As Theory (Farocki/Godard: O filme como teoria, editora Amsterdam University Press, 2015). 

No alto, três mensagens a Nicole que trabalham o autorretrato do diretor. Acima, Godard com seus cães Roxy e Loulou

É muito tocante a maneira como você decidiu mostrar Godard por meio dos e-mails que o diretor lhe mandou. Seu rosto, seus cachorros! (Você os conhecia? Sabe os nomes deles?) Mas por que não mostrou a nós, leitores, a troca completa de e-mails entre você e ele? Pretende fazer isso no futuro?

Os cães se chamam Roxy e Loulou; Roxy Miéville foi a protagonista de Adeus à Linguagem (Adieu au langage, 2014). Quanto à correspondência, não quis mostrá-la como tal, ou seja, na forma de trocas; mas precisamente especificando a natureza de obra, de pequena obra, de cada uma das mensagens de Jean-Luc. Se um dia nossa correspondência fosse publicada, certamente não seria por mim, talvez depois da minha morte, daqui a uma ou duas gerações, se a espécie humana ainda existir e se interessar por cinema…

Quais das suas notas sobre Imagem e Palavra (Le livre d’image, 2018), dadas a Godard, foram incluídas no filme?

Eu preferiria não responder a essa pergunta, preferiria que minhas sugestões se encaixassem de todo no trabalho geral, para isso elas foram feitas.

Entre suas notas sobre Imagem e Palavra, há uma sugestão de incluir filmes feitos por mulheres árabes. Ele aceitou? Se sim, quais desses filmes ele citou?

A esta pergunta, porém, respondo com prazer, pois me permite evocar duas das pessoas mais magníficas que tive a oportunidade de conhecer. Imagem e Palavra cita filmes de Moufida Tlatli, Safia Benhaïm, Wiam Simav Bedirxan e Jocelyne Saab. Na minha memória, as três primeiras já estavam presentes. Jean-Luc conhecera Jocelyne Saab durante suas viagens ao Oriente Médio para empreender Jusqu’à La Victoire – Méthodes De Pensée Et De Travail De La Révolution Palestinienne (Até a Vitória – Métodos de Pensamento e Trabalho na Revolução Palestina, 1970), filme assinado pelo grupo Dziga Vertov. 

Ambos tinham um grande amigo em comum, o escritor e diplomata Elias Sanbar. Em 2018, Jocelyne já sofria da doença que a tiraria a vida e, com a Editions de l’œil, buscávamos publicar, ainda em vida, um álbum de suas fotografias e fotogramas, nos quais ela trabalhava em seu leito de hospital. Precisávamos urgentemente de dinheiro e, sem hesitar um segundo, Jean-Luc ofereceu todo o valor necessário para a publicação do que apareceu sob o título Zones de guerre (Zonas de guerra) e que foi, sem dúvida, a última alegria de Jocelyne. Em 4 de dezembro de 2018, Jocelyne dedicou um exemplar a Jean-Luc em seu aniversário; e ela partiu em 7 de janeiro de 2019. Ela lhe escreveu: “Meu caro produtor, querido Jean-Luc, eu gostaria de estar ao seu lado para lhe desejar um feliz aniversário. Sem você, este livro jamais teria existido. É uma alegria compartilhar os créditos com você. Jocelyne Saab, 3 de dezembro de 2018.” 

Este caso particularmente comovente me permite evocar a incrível generosidade de Jean-Luc. Ao longo de sua vida, ele ajudou muitos cineastas e pessoas de diversas maneiras, financeiramente ou por outros meios, para sua criação, para sua vida ou para sua sobrevivência. Mas, como todas as pessoas verdadeiramente generosas, ele nunca mencionou isso. Como resultado, sua imagem pública, alimentada por provocações, conflitos e farpas de todos os tipos, está em grande desacordo com sua pessoa privada.

Você diz que o filme Imagem e Palavra se opõe às religiões da Biblos Mística. O que é a Biblos Mística? Por que lutar contra ela? Como Godard combateu isso?

Biblos é o Livro, pois dita a Lei, exemplarmente o que no Ocidente chamamos de Bíblia, um estranho agregado de fábulas e prescrições que conseguiu impor-se durante dois milénios e em nome do qual se cometeu a pior violência imperialista, colonial, racista, sexista, sexual, intelectual… Construir um mundo sem as aberrações e divisões falaciosas ligadas a uma religião doutrinária (que não equivale, evidentemente, a um sentimento religioso, místico ou animista), foi um sonho e um esforço nascido do Iluminismo e prosseguido até ao século XX, por vezes com algum sucesso, como o laicismo republicano na França, por vezes com tanta aberração quanto o antagonista, como as perseguições religiosas na União Soviética ou mesmo hoje, na China comunista. Contra a comprovada violência histórica de Biblos e Logos, Imagem e Palavra aposta no poder libertador da imagem, pela sua polissemia, pela sua imprecisão, pela sua profundidade, pela sua volatilidade, pelo seu caráter multidimensional (a imagem é também concreta, psíquica, material, cultural, descritiva, alegórica, criativa, ilustrativa, etc.) 

Jean-Luc fez parte de uma geração que podia acreditar que o problema da religião doutrinária estava mais ou menos resolvido, pelo menos na Europa. E que de repente, como todos nós, o viu ressurgir no final do século XX e se impor novamente ao mundo no início do século XXI. Este é um dos principais elementos regressivos contemporâneos, a ponto de não vermos mais quais ferramentas poderiam neutralizá-lo desta vez: a dinâmica da Razão não será suficiente como antes. Com suas próprias ferramentas, JLG, em Imagem e Palavra, observou como a imagem e o som poderiam se levantar contra a tirania do Logos. Como pode ser visto em particular em sua obra-prima, História(s) do cinema, mas já era verdade em Alphaville, Duas ou três coisas que eu sei dela ou Weekend à francesa, ele sempre pensou em fenômenos na escala da Civilização, algo que poucos cineastas foram capazes de realizar.

O livro Jean-Luc Godard – Escritos políticos sobre o cinema e outras artes fílmicas, de Nicole Brenez (trad. Adilson Mendes, org. de Mendes e Lucas Murari, Desconcertos Editora, 260 págs., R$ 120), é lançado em São Paulo no dia 15 de julho de 2025. Na noite do lançamento, haverá mesa-redonda com a participação de Adilson Mendes, Lucas Murari e Carlos Adriano na biblioteca do Sesc Avenida Paulista, entre 19h30 e 21h30. O livro também pode ser adquirido pelo site da editora, https://desconcertoseditora.com.br/produto/jean-luc-godard-escritos-politicos-sobre-o-cinema-e-outras-artes-filmicas/

PROGRAMAÇÃO DO EVENTO NO SESC AVENIDA PAULISTA

As sessões de filmes no espaço Arte II (13º andar), do Sesc Avenida Paulista, acontecem entre 16 e 18 de julho e apresentam filmes que atravessam diferentes fases da obra de Jean-Luc Godard. A mostra apresenta desde clássicos da juventude maoísta como A Chinesa (1967), até seus trabalhos mais recentes e experimentais, como Imagem e Palavra (2018) e Film annonce du film qui n’existera jamais: Drôles de guerres (2023), finalizado pouco antes de sua morte. As sessões no espaço Arte II são gratuitas. 

Integram ainda a seleção obras inéditas no Brasil, como Scénarios (2024), filme póstumo codirigido por Fabrice Aragno e Jean-Paul Battaggia, que inclui o último autorretrato do cineasta, e Rolle: Inventário (2024), documentário sobre o ateliê de Godard, transformado em espaço de memória e criação. O curta Apresentação do trailer do filme Scénario (2024) completa a programação, traçando um panorama íntimo e radical dos últimos gestos cinematográficos de Jean-Luc Godard.

Os cineconcertos completam a programação de filmes. No dia 24 de julho, o OLIB Ensemble apresenta uma trilha sonora original ao vivo para Momentos selecionados da(s) história(s) do cinema (Moments choisis des histoire(s) du cinéma, 2004, 83’), versão em formato de longa-metragem da série Histoire(s) du cinéma, originalmente concebida em oito episódios. A obra reúne uma seleção pessoal de Godard com momentos marcantes da série, funcionando como uma montagem-síntese da história do cinema sob sua ótica.

No dia 25 de julho, o músico e artista sonoro Dino Vicente realiza uma performance ao vivo para a sessão dupla de Sang Titre (2019) e Reportagem amadora (maquete da exposição) (Reportage amateur [maquette expo], 2006, 47’). Esta última foi realizada como parte da preparação da exposição Voyage(s) en utopies, Jean-Luc Godard, 1946–2006, apresentada no Centre Pompidou, em Paris. A trilha concebida por Vicente propõe uma intervenção sonora dodecafônica e concreta, a partir dos próprios materiais elaborados para a mostra. Os ingressos custam R$ 40,00 (inteira), R$ 20,00 (meia) e R$ 12,00 (credencial plena), com venda online e na bilheteria.

Nos dias 22 e 23 de julho, das 19h às 21h, o curso “Jean-Luc Godard: vanguarda e política” será ministrado pelos curadores da mostra e editores do livro de Nicole Brenez, Adilson Mendes e Lucas Murari. Realizado no espaço Estúdio do Sesc Avenida Paulista e com limite de vagas para 20 participantes, o curso propõe uma leitura crítica da trajetória do cineasta à luz das proposições teóricas de Brenez, destacando os elementos de ruptura, experimentação e engajamento político que marcam sua filmografia. As inscrições devem ser feitas online, com valores de R$ 30,00 (inteira), R$ 15,00 (meia) e R$ 9,00 (credencial plena).

A hierarquia da verdade

(Um texto que escrevi no Facebook em 11 julho de 2022, recuperado por um amigo:)

e se eu trabalhasse numa redação de grande imprensa hoje em dia, justamente na seção de polícia, por onde comecei? e se tivesse, hoje, de lidar com o caso do assassinato do aniversariante petista pelo verme bolsonarista?

seria assim: eu com o texto na mão o submeteria à chefia, que deliberaria como reescrever o caso a partir da visão da diretoria, esta que por sua vez seria instruída pelo dono do jornal sobre como dizer o que eu já havia dito – e a este dono eu teria inevitavelmente de obedecer se desejasse ganhar o salário do mês.

o texto resultante seria então um frankenstein dessas resoluções, já que a verdade, em um jornal, obedece à hierarquia. (tudo é hierarquia em um jornal, desde a gramática.)

eu poderia me recusar a assinar o texto que não fiz sozinha? poderia. mas isto seria bom pra mim no futuro, dentro do jornal? seria péssimo.

aos poucos, me desloquei da “editoria de geral” (que incluía polícia, saúde, ambiente, comportamento) para cultura, menos pior, talvez, embora massacrante e estúpida quase sempre, como tudo o que a indústria cultural ou as preferências da diretoria ditam a nós.

vi com meus olhos o assassinato do menino que fez “pixote” se tornar culpa dele, para indignação da repórter que apurou o caso.

vi com meus olhos senhor democracia relativizar a culpa do filho do eike batista na morte do ciclista, já que havia esperança de que eike carregasse um pouco de sua fortuna na publicação.

imprensa no Brasil é coisa indigna desde sempre.

fui calada tantas vezes por essa gente e continuei trabalhando para ela, por necessidade e orgulho, que sempre me doerá imaginar o castigo imposto a meu fígado desde ocasiões semelhantes.

porque eu me calava mal.

reclamava e isso era mal visto.

tentava fingir que estava tudo bem, mas minha cara era triste.

nunca vesti uma camisa, mas me sentia deselegante, um farrapo humano com as vestes daquele jornalismo que, pelo menos no Brasil, me exigia maltrapilha.

por isso voltei a estudar, fiz um mestrado e um doutorado, mas não em jornalismo, em história: pra me sentir gente de novo.

por isso, principalmente, sempre amei quem expôs essa tragédia por meio do humor ficcional.

billy wilder, que também foi jornalista.

balzac, idem, um vingador maravilhoso.

raymond chandler, a literatura e o cinema noir, no qual o investigador é uma espécie de repórter (a meu ver, uma alusão velada) fodido, expulso de algum lugar, que quer se dar bem sozinho mas no fundo tem consciência, que nega, por menos aconselhável que seja, as negociatas alheias (nem sempre bem-sucedidas, porque até pra golpear os patrões às vezes são incompetentes) e acaba sozinho e bêbado numa sarjeta, depois de ser enganado por uma mulher que ele já sabia escrota, e que representa o diabo, o fogo de desejar o que se quer, como sempre representou a mulher.

viver não é somente perigoso para um jornalista.

é pegajoso também.

porque a verdade sempre aparece e invariavelmente nos pega sem higiene, de calças curtas.