É necessário ter paciência para encarar a onda de filmes que gastam tanto tempo pra dizer tão pouco.
“A Substância” tem duas horas e vinte minutos de duração. Duas horas e vinte minutos em que os efeitos especiais, as maquiagens e as caracterizações monstruosas progridem de maneira incrível. Mas a história, essa estaciona na metade, quando a apresentadora de tevê interpretada por Demi Moore, demitida por ser considerada velha demais, descobre uma fórmula para duplicar-se, passa a ser jovem e velha a um só tempo e, por falta de equilíbrio, começa a se dar mal nas duas transfigurações de sua vida.
Tudo isso, mais a ousadia de simular as simetrias, os corredores e as imensas salas que o diretor Wes Anderson copiou do Stanley Kubrick de “2001”, fazem deste filme um caso especial. A música de Richard Strauss, que é uma sacada de Kubrick no seu filme de 1968, vira um penduricalho ao fim deste “A Substância”, como se a cineasta francesa Coralie Fargeat, de 58 anos, candidata ao Oscar de melhor direção, quisesse fixar sua referência principal no velho Kubrick. (De pretensão também se vive.)
Se tivesse uma hora, “A Substância” seria bom? Vai ver que não. Ele precisa de muito tempo para ser o que já é, uma grotesqueria arredondada, polida como no filme “Barbie”, com toda a misantropia a dar o tom. Dennis Quaid, por exemplo, interpreta um patrão escroto, mas com os maneirismos do pianista gay Liberace. Pelo jeito é assim, hoje em dia, que se caricaturiza um machão.
“A Substância” é o grotesco entregue aos lares do streaming. Um grotesco aprofundado conforme a trama se passa e que, infelizmente, põe o filme a perder. Uma tendência, aliás, que se verifica abundante nesta “safra Emília Pérez” dos candidatos ao Oscar 2025: na primeira hora, o diretor arruma as premissas; na segunda, trata de derrubá-las.
É um filme de horror ou de comédia? Eu ri bastante no fim. Não são assim os filmes em que os adolescentes dos Estados Unidos vão a um acampamento, decidem sair à noite e dão de cara com o Freddy Krueger ou a serra elétrica? Um horror risível – ou, como dizia o diretor brasileiro Ivan Cardoso, um “terrir”. Mas, no caso de “A Substância”, um terrir chique, embelezado por pingentes de safira e sapatos Louboutin a enfeitar as atrizes.
Não é um filme para criticar os padrões da beleza juvenil a esmagar as mulheres maduras. É um filme para acabar com todas as mulheres, jovens ou velhas. No mundo de garanhões efeminados, não sobra nada para a mulher ser, se a gente levar “A Substância” a sério (e talvez devesse).
Demi Moore, candidata ao Oscar como melhor atriz, está muito bem em seu papel, consideradas as circunstâncias. E, ao contrário do que imagina, possivelmente ela seja uma das melhores intérpretes “pipoca” disponíveis, o que não representa um demérito. A “pipoca” a que um agente a condenou no passado, e que tanto a magoou, a ponto de ela destacar o fato no discurso de agradecimento por seu Globo de Ouro, é uma qualidade rara e bem-vinda no cinema. Não é fácil destacar-se, para o bem, em filmes populares medianos ou ruins.
Só acho que Margaret Qualley, que interpreta o duplo de Demi, mereceria uma indicação ao Oscar também. É uma atriz de muitas qualidades, que pode ir da garota ingênua e sensual à francamente desesperada e má, com a devida densidade de drama e humor.
o som do filme ensurdece, a música é ruim, quem canta dubla mal, a protagonista parece ser a coadjuvante, a atração não consegue atuar, rosna-lola-rosna, a direção exagera os defeitos, tudo em vermelho-escuro entumesce, as lágrimas de aluguel desprendem-se das maquiagens-máscaras, não há edição que salve, por que musical?, o diretor (audiard? odiar?) parece um andré midani da escravização branca, um monte de drag racer coreografa melhor, ou: por que subir na mesa?, o que começa como arremedo de west side story ou de tommy acaba em narcos, os mexicanos são bandidos ou submetidos, a única sequência divertida – numa “clínica de bangkok” onde um médico israelense, tão bonzinho, faz trans-formações – é grotesca, quem pesquisou?, o descalabro dura uma hora inteira depois da primeira hora, aposto que vai virar musical na brigadeiro, merecemos?, 13 indicações ao oscar, igualzinho a “e o vento levou”, leva, vento, leva!
O filme de Tsai Ming-Liang presente na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo discorre sobre um princípio do cinema, o movimento
Por Washington DC, o caminhar lento do ator Lee-Khang Sheng, presente em todos os filmes do cineasta desde os anos 1980
Meu querido, admirável amigo Wesley Pereira de Castro, o único crítico de cinema que acompanho, me disse sobre “Permanência em lugar nenhum” que era desafiador, porém bom. Wesley, contudo, disse sentir falta do que o diretor Tsai Ming-Liang, da Malásia, fazia antes de iniciar, cerca de uma década atrás, a série de filmes sobre as andanças do monge Xuanzang, da dinastia Tang.
As pedras não são obstáculos
Interpretado por Lee-Khang Sheng, presente desde os anos 1980 em todos os filmes de Ming-Liang, o andarilho de pés descalços e cabeça raspada usa um manto vermelho para percorrer o mundo. E o filme capta seu andar em meio à paisagem, sempre muito lento. Com os braços em suspensão, ele inclina o corpo levemente para trás e coloca primeiro o calcanhar, depois o restante de um pé no chão; o outro pé faz o mesmo movimento e o corpo se inclina para frente de maneira que a passada seja concluída.
Um pé de cada vez
Não conhecia o diretor, portanto não sei o que fazia antes dela série “Walker”. Mas este filme não me pareceu difícil de ver, até pelo contrário. Ao fundo e ao redor, enquanto Xuanzang caminha, está Washington DC, o obelisco tanto quanto a estação de trem, entre outras paisagens amplas. Ninguém o interrompe, às vezes nem o percebe, exceto alguns turistas que param para fotografar. Os dias podem ter sol ou garoa, pode haver piscinas de água ou regatos com pedras a transpor, e o monge estará sempre a caminhar do mesmo jeito. O filme é isso, sem música exceto no final, mantendo o barulho original do lugar – às vezes pessoas falam e os passarinhos cantam, às vezes é a chuva que cai.
Olhando para as coisas
De maneira paralela, há o forasteiro interpretado por Anong Houngheuangsy a conhecer a cidade, olhando seus interiores e preparando seu miojo. Onde os dois se encontram? É um filme bem editado, em diferentes planos longos entre si, com fotografia solar. Um filme sobre o movimento, princípio do cinema. Um filme-meditação.
O diretor Tsai Ming-Liang
Sessões no Cine Sato (18h do dia 26) e no Cinesesc (16h50 do dia 28)
Estava na hora de a chatice dar o ar da graça na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Rooney Mara, loira desejada, e Raúl Briones, mexicano sangue quente: os estereótipos fazem a festa
“A cozinha” não é um filme sobre cozinha. Duro dizer isso, mas não é. Em alguns momentos, enquanto assistia a minha sessão no Reserva Cultural, um cinema do Jardins paulistano, me perguntava por que o diretor mexicano Alonso Ruizpalacios, de 46 anos, não havia usado seu terceiro longa para cair matando sobre o gosto culinário decadentista do burguês. Ettore Scola já havia dado a dica em “Hostaria!”, maravilhoso episódio do filme “Os Novos Monstros” (1977) onde tudo acaba… em farinha. Mas assim não foi.
Ruizpalacios trabalhou o roteiro a partir de uma peça de Arnold Wesker que desconheço. Preferiu, em lugar de falar sobre cozinha, fazer um filme sobre cozinheiros. Partidos de todas as nacionalidades subjugadas – marroquina, mexicana, preta do Brooklyn – a restar emparedadas na Estátua da Liberdade, que os renegou às estações de comida de um restaurante fast food, eles não têm histórias no filme, mas estereótipos. Os mexicanos são esquentados, machistas como convém. O patrão sádico é o senhor Rashid. E a estadunidense do filme, a garçonete loira disputada por todos os homens, interpretada por Rooney Mara, pede a seu amante, o cozinheiro Pedro (Raúl Briones), que fale com ela eroticamente em espanhol. Foi a parte do filme que me fez rir.
Overreacting. Todo mundo se inerva demais, grita demais, fala demais, colocando as entranhas (hum) para fora quando menos se espera. Não há clímax. Não há ritmo. Tudo é pequeno e já é muito. Um gesto bruto corresponde a uma tragada intensa, que vai resultar num prato quebrado, seguido de uma cuspida no chão, uma estante de alumínio amassada com soco e o bater das mãos acoplado a uma risada mortal (um detalhe é que Rooney Mara vem a ser a esposa de Joaquín Phoenix, bastante conhecido por seu papel como Coringa).
Há também o famoso aborto traumático, não assimilado pelo latino que quer ser pai e pela grávida que sangra no pós-clínica. Mas é melhor eu não me estender nas objeções. Na sessão a que compareci, os espectadores aplaudiram ao final. Porém, me pergunto de que adianta filmar para não fluir. Um filme que não pensa nos encadeamentos nem nas falas, em que os atores trabalham cada um por si e em que a fotografia, a maioria em PB (fica azul numa sequência no frigorífico), parece filtro, não arquitetura. Fazer um filme chato pra quê?
Um espetáculo a unir a paisagem humana à música (ou o cinema como ele poderia tão bem ser), no novo filme de Jia Zhang-Ke, presente na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Imagine se Wim Wenders fizesse ainda hoje o cinema que realizou até “Paris, Texas”. Aquele cinema. O cinema. E imagine o diretor alemão, na China, a contar a história recente do país a partir dos rostos exuberantes dos homens comuns, numa revivescência de duas décadas, com riqueza musical e, principalmente, com o ritmo narrativo fundado nessas melodias.
Zhao Tao acaricia seu amigo, o robô
Se você pode imaginar coisa semelhante – a música não só como trilha sonora, mas como um chamado -, estará muito próximo de compreender o que o chinês Jia Zhang-Ke faz em seu “Levados pelas marés” (2024). Nossos ouvidos se conectam, nosso coração está a pulso desde que a banda chinesa dos anos 2000 Brain Failure toca a canção de abertura, “Underground”. A letra cita o verso de um poema famoso da Dinastia Tang: “Nem mesmo um incêndio florestal pode queimar todas as ervas daninhas, elas crescerão de volta na brisa da primavera”. O poema enfatiza, segundo Jia, “a resiliência da vida”.
Este filme quase sem diálogos e com alguns letreiros (uma feliz recuperação do cinema mudo) usa mais o olhar dos atores do que suas palavras para acompanhar a passagem do tempo.
É um filme, mas, principalmente, um espetáculo fundado na dramatização que Jia realizou de forma solta, por duas décadas, em Pequim e em Datong, uma localidade chinesa a viver das minas de carvão. Seus movimentos de câmera mais impressionantes são travellings que registram lentamente a paisagem humana na cidade. Eis a face da verdade, do deslumbre de viver, que o filme demonstra ora com pungência, ora com humor.
Todas as emoções em um rosto que não fala
Sua atriz-chave, Zhao Tao, volta a representar a personagem Qiaoqiao, introduzida por Jia no filme “Prazeres desconhecidos” (2002). Ela jamais fala (mas, neste filme, canta uma canção) e ama relacionar-se positivamente com robôs, entidades que tomam conta da vida chinesa ao oferecer serviços surpreendentes, como ler as emoções em um rosto e limpar o chão. Qiaoqiao busca seu amor desaparecido, Bin (interpretado por Li Zhubin), e por isso a acompanhamos pelos lugares alcançados por trem. A mudança de modelos de trens a circular pelos trilhos sugere a mudança dos tempos. Principalmente, é pelos olhos de Qiaoqiao que vemos tudo se transformar, como se ela presenciasse o fluxo da vida com o fone de ouvido ligado no streaming musical, lá onde o rock faz poderosas aparições.
É cinema, é a resistência, é ver para crer.
O diretor Jia Zhang-Ke
Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Sessões no Cinesystem Frei Caneca 1 (19h40 do dia 25), Sato Cinema (19h do dia 27), Reserva Cultural 1 (14h30 do dia 28) e Cinesystem Frei Caneca 3 (22h do dia 29).
“O Canto Livre de Nara Leão”, série documental em cinco episódios pela globoplay, traz de volta o doce sabor das revoluções da intérprete na música popular
Nara Leão em 1964, quando gravou seu primeiro disco
O dia de ver o documentário seriado de Renato Terra sobre Nara Leão chegou aqui graças à oferta de uma amiga querida, assinante da Globoplay, e eu não poderia me sentir mais satisfeita com o presente.
Nara, que mulher para mim. Não pela voz, exatamente, mas que grande personalidade havia dentro dela para caminhar à vontade naquele universo imperativo dos homens, fingindo, ainda por cima, não fazer nada demais.
Quantas vezes ouviu que desafinava, que era desanimada e “mixuruca”? Muitas. Todas. Mas nos momentos em que ouvia isso parecia dirigida pela impetuosidade, uma espécie de teimosia da inteligência, esta que a tornava a um tempo graciosa (os joelhos de Nara, como brincava o Otelo Zeloni do programa humorístico “Família Trapo”) e plena de generosidade, a mulher de família bem de vida que sabia reunir, destacar, dividir e compartilhar seu talento. Mulher do desafio que nos últimos anos parecia esquecida, como acontece usualmente com figuras cruciais da arte brasileira.
Então, sim, eis o documentário “O Canto Livre de Nara Leão”, que tantos amaram. E entendo por quê. Ele a traz de volta aos nossos corações. Ouvi-la falar, em depoimentos no mais das vezes desconhecidos, como aquele ao Museu da Imagem e do Som, para Sérgio Cabral e Roberto Menescal, é uma aula de posicionamento. Uma figura pra lá de gentil mas também assertiva, a ponto de dizer a um jornal simpático aos militares de 1964 que o exército não servia pra nada, e com isso ganhar uma crônica de Drummond em seu apoio, além do abraço dos amigos em seu apartamento – o que felizmente bastou, além do apoio do pai advogado, para que não se visse presa por conta da declaração.
No célebre apartamento de Copacabana, com Tom Jobim e Ronaldo Bôscoli ao lado
Mulher complicada, como ela diz ao MIS, para que Menescal a apoie. E maravilhosamente única, desinteressada do profissionalismo e do sucesso.
O documentário contribui para iluminar essa Nara desconhecida. Sabemos por meio dele que a artista nem mesmo imaginou que se tornaria cantora – gostava mesmo era de cinema e achava que iria trabalhar nesse meio, no qual começou como montadora, ao lado do futuro marido, Cacá Diegues, com quem teria os filhos Isabel e Francisco. E quando, adolescente, destacou-se por manejar voz e violão no seu apartamento, começou a entender que seu papel no mundo da arte não seria só o de cantar, antes o de mexer no panorama musical a ponto de desvelá-lo e redirecioná-lo. Uma ambição maior que todas, certo? E que Elis Regina, a rival que não lhe atribuía talento vocal, também experimentou.
Com o produtor Aloysio de Oliveira (no alto), Carlinhos Lyra e Vinícius de Moraes
Neste documentário em cinco partes, Nara diz, com objetiva e usual sinceridade, que nos seus tempos de bossa nova não conhecia o povo brasileiro. E ao descobri-lo em sua porção de miséria e fome, por meio de Carlinhos Lyra, que lhe apresentara o morro de Nelson Cavaquinho e Cartola, começou a se deslocar do grupo. A bem da verdade, afastou-se dele de uma vez quando Ronaldo Bôscoli, a quem começara a namorar no apartamento dos pais, Jairo e Altina (célebre lugar diante do mar de Copacabana onde o movimento da juventude carioca começou), traiu-a com a cantora Maysa.
“Opinião”, em 1964, acompanhada por Zé Kéti e João do Vale
Bossa nova, espere sua vez! Zé Kéti e João do Vale se tornariam então tudo o que havia de melhor e com eles ela arrebentaria no show-teatro “Opinião” – este do qual desistiu também, depois de dois meses, por não ter estofo físico e se sentir nauseada justamente por seu sucesso. Foi ela quem sugeriu a substituta Maria Bethânia, que à época estudava recuperação para passar em matemática na escola.
Com Chico Buarque nos anos 1970, amigo de vida e de bom humor
Os melhores depoimentos sobre Nara, os mais deliciosos e esclarecedores, por anedóticos e bem-humorados, são mesmo, neste filme, os de artistas como Bethânia, que lhe aponta incentivadora e namoradeira, e Chico Buarque, que lhe fornece um perfil muito especial, em que o bom humor não coincide com o gosto pela piada e com a distração. Mulher séria que sabia sorrir, crava Chico, a quem acompanharia em sua fase posterior à do “Opinião”, com “A Banda”, ela ganharia a algo indesejada fama pop dos festivais.
Na capa do disco “Tropicália”, ela aparece num retrato exibido por Caetano Veloso
Depois de Chico, foi a vez da Tropicália; depois da Tropicália, os nordestinos feito Fagner; depois dos nordestinos, os gaúchos como Kleiton, secreto namorado; depois dos gaúchos, Erasmo e Roberto Carlos; e até morrer precocemente de um tumor cerebral, aos 47 anos, a companhia bossa-novista do violão de Menescal, sucesso no Japão. Com Nara por perto, qualquer novo movimento musical se redobrava em brilho, como se ela lhes desse chancela artística, quebrando padrões e preconceitos precedentes.
Nara e Menescal no Japão, anos 1980
Porém, o documentário em si tem muitos problemas. Com tanto BBB na produção – um Brêtas, um Boni, dois Bial, o Pedro ele-próprio, que se casou com Isabel, e seu filho José, neto de Nara – seria de esperar mais? Infelizmente, sim.
A série, no fim das contas, desfila a aristocracia musical do Rio e dá pouco espaço para além dela – mas Nara era nacional, com o gosto pelo povo em toda parte. No documentário, por exemplo, nem mesmo o bordão do Zeloni na “Família Trapo”, programa ao qual ela compareceu, é mencionado.
Em lugar disso, exibem-se fileiras de videoclipes do “Fantástico” de gosto duvidoso – em um deles, Nara canta a necessidade de viver “uma vida sem frescura”, na canção “Além do Horizonte”, de Roberto e Erasmo, espichada num iate… E haja Leda Nagle a entrevistá-la, com a explícita intenção de dirigir suas respostas.
Com Otelo Zeloni, joelhos à mostra, informação que a série não traz
Além disso tudo, nos surgem sonegados seu rosto de infância, muito sobre seu violão, suas preferências de instrumento e noções de estilo, o nome do violonista no primeiro disco, de 1964 (Geraldo Vespar), o fato de Elis ter-se casado com Bôscoli (o que explicaria melhor a rivalidade entre elas), mesmo o seu local de nascimento (Vitória, Espírito Santo), as datas em que nasceu (1942) e morreu (1989), a profissão do pai, mais sobre sua relação com Johnny Alf ao piano, onde se esconde Alaíde Costa em sua história, etc., enquanto frases e fatos inteiros são repetidos e salpicados pelos episódios, como se não tivéssemos tido condições de absorvê-los desde a primeira vez. A função “supervisão artística” é assinada por Pedro Bial.
Está certo que o final é belo, algo inspirado pelos deuses, e a gente dá muito valor ao que tem. Contudo, Nara Leão, como ela mesma queria, é assunto sério, sempre à espera de um novo exercício fílmico-historiográfico por meio do qual se possa ampliar.
Baseada em Elena Ferrante, a diretora Maggie Gyllenhaal narra um aspecto ocultado da maternidade
Olivia Colman e a Chuck com quem acerta as contas
Lembro do meu espanto ao ler, grávida do primeiro filho, o texto de um jornal inglês no qual certa mãe narrava a felicidade de deixar o bebê de três meses em casa, rumo a um encontro distante com as amigas. Eu tinha 30 anos já, mas nada entendia. Como estar longe de sua criança desprotegida poderia ter causado algum bem-estar a essa mulher?
Ser mãe não é para sissies. Barra pesada para imaturas como eu era. Nascido meu primeiro filho, passei a admirar cada mulher que conseguira criar os seus e a entender as que partiram para horas livres como plenas de sensatez. Nos passeios de carro, o que eu via pela janela e me emocionava às lágrimas eram igualmente as mães sorridentes com seus garotos crescidos, de seis anos até! A felicidade era possível com eles.
Precisei ouvir outras mães. Como superaram as noites sem dormir, os apelos incessantes, os filhos somados à vida, enfim? Tudo o que me disseram foi precioso. Mais que isso, aprendi a respeitar todas elas, de todos os lugares sociais, a mais humilde, a mais encucada, a mais livre – até mesmo aquela que não quis seus filhos.
Uma amiga me disse a frase que repito a todas as mulheres depois do parto: o que você vive agora é uma eternidade que passa rápido. Esse processo exaustivo, o Vietnã de noites sem dormir e de não mais poder ser o que se é vai doer, mas vai passar. Talvez até precise doer, por se tratar de um exercício. O músculo invisível do coração deve ganhar tônus, crescer. Se não doer agora, você não amará tanto depois.
Meus filhos foram criados com esse encantamento. Eu percebi que perdera, com seu nascimento, algo parecido com minha independência. Eu não estava só no mundo, não me veria livre do inferno dos outros. Isto mesmo: até ter meus filhos, eu não sabia que viver resultava do que era mútuo.
Maggie Gyllenhaal, a diretora
É claro que fiz toda esta introdução para que vocês percebam o interesse que me levou ao filme-de-que-se-fala neste início do ano. Está na Netflix e é dirigido por aquela que também sabe ser boa atriz, Maggie Gyllenhaal, de 44 anos, baseado em livro homônimo de Elena Ferrante.
Antes preciso dizer que o fenômeno literário Ferrante não me pegou. Li, isto sim, Inês Pedrosa, e achei bela a sua prosa, a sua alma portuguesa. Ferrante é outra história, se entendi. De todo modo, não sou de literatura que me ajude. Boa escritora, pra mim, é Katherine Mansfield: suas histórias não têm fim, nem começo, nem moral.
Já este filme é uma moralização às avessas. Muito educativo. Sim, é isso. Nem sempre os filhos são nossa realização. Nem sempre os amamos no mesmo compasso social exigido. Somos mais necessárias conforme cresçamos para aprender com eles. Amar não tem manual e caminha no seu tempo.
Em “A filha perdida”, o que se vê é a filha encontrada. A maternidade com ressignificação.
Jessie Buckley e a maternidade ressignificada
Maravilhosas atrizes dão conta de viver duas fases de vida da protagonista Leda, a jovem Jessie Buckley e a madura Olivia Colman. Jessie intensa, olhando para a vida como quem precisa entendê-la de perto. Olivia, como quem ri à distância de toda a fúria significando nada. Morro pelo sorriso cínico-amoroso dessa atriz tão inglesa, tão rainha…
E tem a boneca. A boneca da filha da família intrusiva, família do mal (à qual pertence a mãe vivida por Dakota Johnson) que Leda resolve confrontar. A pequena Chuck da qual ela se apodera até limpá-la da podridão da água suja, do verme. A boneca catártica que fala à culpa, ao inconsciente, a boneca que é Leda ela mesma, enquanto filha e mãe.
Com Dakota Johnson, um jeito de encenar o mal
Tudo é dirigido com a competência estadunidense de armar uma cama psicológica para assim desfazer as armadilhas culturais de seus espectadores. Saímos do filme convencidos do melhor.
Para meu gosto, contudo, faltam nesse caldo duas coisas. Uma camada cinematográfica que faça o filme durar para além do drama. E uma compreensão da maternagem para além do cinismo.
É convincente dentro do filme (e abrevia as explicações) uma inglesa como Leda dizer tantas vezes que por ser má agiu assado ou assim. Mas maldade não tem nada a ver com isso, tem? Nem o fato de seu marido não ter sido presente. Mesmo com maridos-pais amorosos ao lado, uma mulher pode viver intensamente esse drama, até porque, no fim das contas, ele é mesmo só seu.
Nicole Kidman como Lucille Ball em “Apresentando os Ricardos”, de Aaron Sorkin
Fiquei animada quando o querido Sergio Gonzalez Santosh me contou sobre “Apresentando os Ricardos” e me disse que Nicole Kidman funcionava bem como Lucille Ball (1911-1989). Eis um personagem complicado de fazer, pensei, uma bela coadjuvante que, recusada como estrela à maneira de Crawford ou Hayworth, foi parar (não sem uma frustração inicial) no seu lugar de direito, a comédia, para ser uma das maiores.
O belo que, diziam, não combinava com a vocação de fazer rir. O belo que, sabia-se, funcionava mais à frente da câmera do que atrás. O belo que, para a mulher, era um destino rapidamente findo, visto que os 30 anos não perdoavam ninguém. Foi preciso que a série “I Love Lucy” enterrasse toda essa futurologia hollywoodiana de uma vez.
Comediante física herdeira do cinema mudo, cuja máscara falava por si, e perfeccionista da gag, além de atriz, Lucille era também humorista, no sentido de que produzia, escrevia, reescrevia e dirigia o próprio humor. No mundo da tevê dos anos 1950, nada a impediu de estraçalhar o palco à maneira de um Harpo Marx, com quem aliás contracenou em um episódio da série, perfeita até para os gostos conservadores da perseguição macarthista, embora, é claro, se tenha tentado destruí-la por sua antiga filiação ao Partido Comunista, episódio que este filme de Aaron Sorkin aborda.
“Bossy” com Bardem
Sim, Aaron Sorkin, o mesmo Sorkin de “Os Sete de Chicago” cuja marca como escritor é o encadeamento fluido de situações que se resolvem com diálogos no mais das vezes curtos. O que me impressionou bastante, além das atuações de Kidman e de Javier Bardem (Desi Arnaz), J K Simmons (Fred) e Nina Arianda (Ethel), foi a capacidade do autor de desvelar o mito da alegria, segundo o qual, por ser humorista, o sujeito é feliz.
E não é. A melancolia regeu do Barão de Itararé a Chico Anysio e Judy Holiday (comediante vencedora do Oscar que, diz este filme, Lucille detestava com todo o coração), e até parece ser uma condição para provocar o riso. Só o verdadeiro humorista (não aquele que humilha o fraco, pois isso não é humor, é só coronelismo) sabe do grande trabalho envolvido em sair da própria posição anímica para alcançar o sublime, um estado de libertação das correntes opressivas que nos sustentam, mesmo que por alguns minutos.
Lucille Ball era “bossy”, ensina-nos este filme, mal-humorada e durona de verdade, algo que se entrevê nas entrevistas de época durante as quais não ri. E não era possível dirigi-la – algo que parece acontecer comumente com os artistas da comédia física. Com ela, só funcionava a sugestão, enquanto os produtores, diretores e roteiristas (havia uma roteirista em sua equipe, Madelyn Pug) reivindicavam autoria para o próprio trabalho, sem conhecer a máxima de Billy Wilder segundo a qual fazer um roteiro é preparar a cama para o diretor pular em cima.
Nicole Kidman, que nunca me animou demais como atriz, está mesmo excelente aqui. Sorkin não quis que ela se maquiasse ou ganhasse enchimentos para se parecer com Lucy – e não haveria mesmo como se parecer, exceto se a buscasse fundo. Na gestualidade. Na voz. É impressionante a sua interpretação vocal. E muito surpreendente seu desenrolar físico. Na gag do barril de uvas no qual ela pisa para achar um brinco, estamos realmente diante de Lucy.
É claro que toda a dificuldade de Lucille em se impor na carreira, segundo este filme, equipara-se àquela de manter a seu lado o marido, o Desi “Desiderio” mulherengo inferiorizado que, em Bardem, ganha sua porção de doçura e deslumbre. E ainda por cima, no fim, um twist nos trai… Mas por que exigir tudo de uma cinebiografia que se pode ver em casa, no streaming da Amazon Prime ou no download maneiro pelo computador? O que importa é que a rara oportunidade de contar a história de Lucy tenha sido bem aproveitada, como foi.
Cate Blanchett e Tyler Perry no telejornal diurno de “Não olhe para cima”, de Adam McKay, na Netflix
Entendi “Não olhe para cima” como um entretenimento de Netflix, uma comédia na medida das minisséries, que comenta nossos tempos terraplanistas justamente para que nos aliviemos deles.
Os atores são experimentados e lidam bem com o gênero cômico. O roteiro amalucado não chega a mimetizar aqueles dos irmãos Zucker, sempre a se espelhar em outros filmes, mas segue as leis da paródia social, botando no chão (não pra cima, justamente) os tipos da atualidade política, da ciência, do jornalismo, dos super ricos, das celebridades, da branquitude estadunidense, dos negacionistas.
Demorei pra reconhecer a Cate Blanchett com aquela dentadura e a maquiagem que mimetiza as superbotocadas da televisão… Como sempre, uma atriz e tanto.
Só não entendi por que bater tanta boca por este filme.
É pra ser catártico, não pra nos fazer sofrer, ou me engano?
Todos conhecemos Os Sete Samurais e amamos Akira Kurosawa, possivelmente, mais do que muitos outros diretores de cinema dos tempos todos. Mas quantos de nós já ouvimos falar do Onze Samurais de Eiichi Kudo, e de Kudo ele-mesmo? Seremos poucos. Eu, por exemplo, não o conhecia até ontem. Creio que padeço de ignorar em grande parte o mais belo cinema imaginado ou feito.
A inútil vingança
E é por isso que as mostras de cinema da atualidade me dão tão poucas esperanças. Elas não me levarão até eles. Filmes como Onze Samurais, que constroem imaginação e liberam consciência, não podem ser mais feitos. Reais a ponto de os galhos se emaranharem diante da câmera na hora devida, de o sol penetrar inteiro na clareira de uma floresta que se fecha quando o guerreiro vislumbra sua tarefa. Um filme sobre tempestades.
Sangue sob chuva
Acho que padecemos de ver. Esquecemos de sentir. Nossos filmes atuais são até capazes, e muito, de perceber que temos problemas. Eles identificam dores. Mas, além de identificar, o que o cinema deve fazer? Penetrar, não é? Ser cinema. Ser a intensidade, a linguagem, o som, o movimento, a hora do sonho e do desvelo. Mas estamos muito ocupados identificando coisas para que penetremos nelas.
A face do amor
Onze Samurais foi feito em 1967 e é assim. Uma penetração (gosto da palavra) no profundo cinema desde os minutos iniciais, quando uma coreografia de cavaleiros, seus chapéus, quimonos, armas, sai atrás de um animal inocente, para satisfazer um senhor insensível. Um cinema desses nem precisaria ter som, mas tem, pós-colocado em descompasso, sonoplastizado, a indicar que estamos diante de um filme, de um pensamento visual que constrói o drama a partir da coreografia, da beleza fragmentada em inúmeros pedaços.
Nos pedaços da paisagem
Eiichi Kudo (1929-2000) não viveu tanto, 71 anos, para a quantidade de filmes que fez, 30 deles entre os anos 1956 e 1998. Nos anos 1970, sobreviveu da televisão e de suas sagas. Por “Onze Samurais”, que fecha uma trilogia, entendemos suas razões. Seu filme contém a vibração cinematográfica de toda a história. Tem Kurosawa ali percorrido, do mesmo modo que Godard, guerra, amor, paz, Shakespeare, Tolstoi.
E, ainda assim, eis um filme inocente, sobre arrogância e descoberta, solidariedade e vingança, sobre o ardor desperdiçado que é viver.
Não se pode existir o tempo todo para fazer filmes assim.