Marianne Faithfull como eu a vi

Uma mulher não deve vacilar

Estava à toa em Paris, vivendo como uma espécie de babysitter de um bebê franco-brasileiro, à espera de que o horror da posse de Fernando Collor passasse, quando soube que Marianne Faithfull, morta agora, faria um show em La Cigale. 

Era (ainda é) um teatro muito bonito no bairro La Pigalle, perto de Montmartre, cheio de poltronas estofadas vermelhas. Embora coubessem centenas de espectadores por lá, a impressão que o teatro me dava era de aconchego. Me sentei num lugar relativamente perto do palco.

O show aconteceria umas nove da noite, mas cheguei bem antes. Um perigo andar de metrô quando somos jovens e nossas pernas têm algum poder de abalar Paris. Era de metrô que andavam os valseuses (nada parecidos, por certo, com Gérard Depardieu ou Patrick Deware no filme do Bertrand Blier), gente à toa feito eu, e à noite, às vezes perigosa. Passei aperto quando dias antes andei num vagão onde havia apenas mais um homem a ocupá-lo além de mim. Eu pulava de banco em banco e ele vinha atrás. Quando o trem chegou na estação seguinte, saí apressada. E só peguei outro trem de novo quando entendi que duas pessoas pelo menos embarcariam junto comigo.

Enfim, não havia a opção, para uma pobretona feito eu, de usar um meio de transporte diferente. O metrô chegava em todo lugar, e se comprássemos um pacote de bilhetes, pagaríamos menos. Quando finalmente me sentei na plateia do teatro, respirei aliviada. Pensava com orgulho que conseguira chegar ali sã e salva, prontíssima para ver Marianne, e que isso representava um triunfo em minha modesta história. 

O teatro não lotou. Havia jovens como eu e gente bem mais velha na plateia. Poucos casais. Muitos vinham sérios e sós. Quando ela pisou no palco, agiu como divindade. Um vestido midi algo brilhante, uma sandália com salto, distante de todos, olhando altiva para a frente. Sem agradecer nem falar com o público, iniciou a apresentação com toda a iluminação sobre si, e assim permaneceu.

Eu não conhecia as novas canções e só esperava a hora do “As Tears Go By”. Mas Marianne não dava mole. Cantava o que queria em francês e inglês à frente do palco, desinteressada da banda e do público, fumando o tempo todo. A voz grossa vinha se especializando, e o sorriso que eu vira na televisão ou no cinema não aparecia nunca.

Não a achei particularmente bonita. E a entendi bem mais velha do que era. Tinha então 44 anos. Cantava roucamente, mas era como se falasse alto. Grande presença, o tempo bem marcado, sem nunca vacilar.

Um homem magro, em sua idêntica faixa etária, aplaudia tudo embevecido desde a primeira fila. Mas ela reclamou dele. Precisava de silêncio, como talvez Maria Callas também precisasse. E ele não conseguia aquietar a emoção. 

Marianne destoava. Uma figura excepcional, consciente de sua excepcionalidade neste mundo. Sempre me intrigou a certeza dessas pessoas a respeito de si mesmas. Será mais fácil ou mais difícil viver quando se tem essa consciência? Bem, não me interessa. Ainda guardo a imagem de ternura transmitida por ela nas fotos de revista. Não é fácil ser mulher, nem tornar-se.

Uma pincelada de ternura, direto das revistas

Estas mulheres em mim

Com qual delas me pareço mais, não sei. Mas estou certa de que ainda crescem em mim.

Vó Guilhermina, neste desenho de meu pai, eu não conheci. Morreu aos 50 anos, diabética, na passagem do ano, depois de uma “melhora da morte” de que meu pai recordaria por toda a vida, sempre em lágrimas. Ele que era então menino pequeno nunca se recuperou da perda dessa mulher nascida nos Açores, sua mãe demais, enquanto não se conectava com o pai, veneziano e grave. Guilhermina dizia ter-se apaixonado pela beleza de meu avô, uma história bonita: Daniel deixou a família e a possível pequena herança em terras para se casar com ela, revoltado com os parentes que não queriam a união (e por que não, meu deus?). De olhos tristes e puxados, as roupas sem qualidade ou adorno, minha avó era a submissão à família, à lida camponesa de início e à carga proletária suburbana que viria depois.

Vó Wadiha parecia ser quase o oposto. Nascida no Líbano, despertara o amor de meu avô sírio Dib ao passear com seus olhos violeta, adolescente, pelas ruas de São Luís. Sempre me pareceu altiva e doce a um só tempo. Devota de se ajoelhar na rua diante das imagens dos santos católicos que apareciam pelo passeio, era muito vaidosa também, pronta a encarar uma foto sem medo. Convivi com ela nas férias em Fortaleza até os meus 10 anos. Wadiha bem que tentou me ensinar crochê. À mamãe, disse várias vezes que minha pele era especialmente macia, o que bastou para me tornar orgulhosa, sei lá, imodesta, sobre esta parte de meu corpo, a maior e mais escondida.

Sinto sua ausência e presença a um só tempo. Uma transcendência feminina, enganadoramente leve como as nuvens num dia de sol.

Herança maior que meu pai me deixou

O que hoje lhe impulsionaria a pintar, meu pai? A buscar? Como entenderia as facetas da falsidade obrigatória deste mundo? Se esconderia, como eu, nos livros, nos filmes, no apartamento? Brilharia, como a arte lhe ensinou? Acreditar na arte, meu pai, em sua capacidade de transformar tudo, foi a herança, aliás, que me deixou. Que o céu brilhe mais só porque seus olhos o veem da grande altura onde está. Parabéns.

Quando a notícia da morte de Cobain chegou à redação

Mais uma croniqueta em torno da ausência de pensamento que resultou nas serpentes cantanhedes do presente

Lutei por você, Kurt

Na revista que em dias melhores derrubara um presidente, concluíamos a edição de cultura às quartas-feiras, e às sextas nos revezávamos (o outro jornalista da área e eu) no plantão de fechamento geral. A ideia do nosso plantão era absorver qualquer urgência dita cultural antes de a publicação sair para rodar na gráfica.

Eu era a escalada a esperar por eventuais informações inadiáveis de cultura quando a notícia da morte de Kurt Cobain apareceu na sexta-feira 8 de abril de 1994 (só posteriormente se estabeleceu que o falecimento ocorrera três dias antes).

Postada diante da máquina de fax, recebi a notícia como um golpe e fui até a direção, umas quatro mesas à frente, para informar a morte – o mais duro, convencer o meu superior de que o fato merecia espaço já naquela edição da revista.

O secretário de redação responsável pelo fechamento tinha os cabelos pretos repicados, lisos de oleosidade, na altura do pescoço. Os olhos fundos eram cultivados durante as noites perdulárias passadas de táxi em táxi, de bar em bar, às vezes compartilhadas em parte (a do jantar) por alguém da redação como eu. Sempre necessitada de carona pra casa, eu estava apta a exercer a companhia breve de certa forma solicitada por alguém tão só, ainda que breve em termos. Em uma dessas ocasiões ele me fez sentir presa no filme After Hours de Martin Scorsese, a escorregar por Pinheiros como se houvesse sido decretada uma noite sem fim.

No entanto, não era mau como os outros, o secretário. Não gritava, não jogava garrafas vazias de cerveja no chão. Apesar de sua idade (hoje eu diria que nem tivesse chegado aos 40 anos), imerso na fumaça dos cigarros sorvidos por entre os dentes desordenados do tipo ingleses, ele agia como um lulu dos 1960 e de seus mitos, a glória e a repressão enfrentadas pelos companheiros do passado. Era cavernoso, encucado, um drácula típico para quem o observasse pela primeira vez.

Claro estava que a revista, em parte editada por ele próprio, comentara já os paranauês reinantes da música pop, mas isso não lhe entrava na cabeça, visto que vivia em outro tempo, até outro lugar. Por muitos segundos pareceu firmemente em dúvida sobre se valeria a pena desfazer a diagramação para incluir o obituário de Cobain, já que não contava com outros parâmetros para estabelecer se aquilo era mesmo importante. A redação não dispunha de tevês ligadas e os jornais do dia seguinte, que ele sorvia diariamente com a intensidade dos cigarros, careciam de ser impressos. Era principalmente um leitor de jornais e de revistas, não de livros, como convinha à época a um verdadeiro, sólido e bem posto jornalista monoglota brasileiro.

O principal a ocorrer naquele infortúnio inesperado chamado Cobain: a notícia vinha comunicada a ele unicamente pela coisinha sem lastro que eu parecia ser. Desconfio que desconhecesse o prodígio de Seattle, assim como ignorava River Phoenix, o ator igualmente estadunidense que morrera no ano anterior e não merecera matéria extensa na publicação.

Lutei então para que déssemos a morte do músico em pelo menos duas colunas com foto numa seção de urgência que abria a revista. A seção introdutória de textos curtos fora chupada diretamente da Time, assim como todas as outras da revista, por Sr. Democracia, o diretor de redação substituído (“temos de copiar o que é melhor e a Time é a melhor”). O secretário acabou concordando que fazia sentido publicar o necrológio, e sobrou pra mim. Tinha de me manter ligeira, embora não fosse fácil escrever tão rapidamente assim naquela redação.

O arquivo da editora era precário. Nem sonhávamos com a existência da internet. E produzíamos em máquinas de escrever, ao contrário do que ocorria no mais festejado jornal paulista desde a década anterior. A redação da revista, situada numa espécie de grande mezanino de madeira em prédio antigo e abafado, diante da linha do trem, me dava frequentemente a impressão de estar prestes a desmoronar.

Me virei como pude, ou seja, obtive os dados de que mais precisava a partir de uma matéria feita por mim mesma, pouco tempo antes, sobre o grunge, um estilo que a imprensa havia inventado para rotular o surgimento de bandas como Nirvana e Pearl Jam. Guardava algumas revistas em minha mesa justamente para necessidades assim.

Durante a escrita, dei-me conta de um pequeno fato que hoje parece óbvio para quem acompanha a história do rock. Cobain se suicidara aos 27 anos, a mesma idade em que morreram Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones. Achei que muita gente notaria o fato em seus textos publicados naquele fim de semana. Mas não. A revista enfumaçada, com seu necrológio modesto, fora a única brasileira a ressaltar a entrada de Cobain para o que ficou conhecido posteriormente, em tom macabro, como o Clube dos 27. Não recebi elogio algum por isso, claro. O secretário nem me cumprimentou na segunda-feira seguinte. Fiz o meu dever, e ele respirou de alívio.

Com os pés na porta

O poeta, professor e pensador da geração beatnik Claudio Willer, morto aos 82 anos neste 13 de janeiro de 2023, lamenta na reportagem abaixo, que fiz com ele em agosto de 2012, o uso não autorizado da sua tradução para um poema de Allen Ginsberg

Willer, alguém para quem a poesia significava vivenciá-la e um tradutor consciente da dificuldade de seu ofício

Claudio Willer tem asas nos pés. Asas porque poeta. Pés porque a poesia, como ele a entende, deve ser perseguida com o próprio corpo, o ritmo marcado no chão. Aos 72 anos, nascido em São Paulo, filho de judeu austríaco e mãe católica alemã, este gói cuja avó foi morta pelos nazistas representa o pensamento beat do Brasil. Não exatamente aquele de Jack Kerouac ou Allen Ginsberg, estilizado nos filmes, mas sua ambição libertária, a de experimentar a vida como poesia.

Willer é beatnik calmamente, mesmo quando em sua fala surgem inimigos como a acomodação da cena cultural brasileira, a mediocridade burguesa ou, recentemente, a usurpação de seus direitos de tradutor. “Você sobrevive de eu fumar?”, pergunta ele um pouco depois de pedir à esposa Maninha, pintora surrealista, que abra as janelas do apartamento onde me recebe na Vila Madalena. É que o cigarro o levará à palavra certa.

 

O autor de Estra­nhas experiências, poesia cursou Psicologia e Sociologia, mas, na São Paulo retratada pelo diretor Ugo Giorgetti em Uma Outra Cidade, decidiu-se por viver dos versos libertadores ou indiretamente deles, traduzindo quem os compõe, analisando sua obra ou alinhavando sua filosofia, como faz em um pós-doutorado tardio. A sua cidade de juventude, “provinciana pro melhor e pro pior”, foi seu início. Nas ruas ele andava a pé, na piscina da Associação Cristã de Moços nadava dois mil metros e nas mesas de bar poderia tomar “porres homéricos” enquanto transcorresse a leitura coletiva de O Poeta de Nova York, de Garcia Lorca, ou da Ode Marítima, de Fernando Pessoa. 

 

O poeta percorrera um caminho curto do surrealismo à “rebeldia romântica” sem dar a mínima para os versos de João Cabral de Melo Neto ou de qualquer outro formalista da poesia. “Desde o começo, o beat me interessava como mensagem no seguinte sentido, o de estar acontecendo uma rebelião juvenil. Era um movimento rebelde coletivo, com aquele impacto, provocando enorme escândalo.” Além da poeta Hilda Hilst, que se tornou sua amiga mesmo depois de ele a ter “enterrado” em um performático “necrológio”, amava a “anarquia individualista” de Roberto Piva, a veia teatral de Décio Bar, o talento de Antonio de Franceschi ou a verve de Rodrigo de Haro.

 

“O Claudio sempre foi político e basicamente uma pessoa de grande generosidade. Equânime, ele divide e organiza as coisas, com muita bondade”, disse De Haro a Camila Hungria e Renata D’Elia, autoras de Os Dentes da Memória, livro sobre esta turma beatnik que, a bem da verdade, nem mesmo se intitulava assim. Culto, com domínio da língua inglesa, foi Willer, segundo o editor Massao Ohno, quem trouxe a poesia dos americanos ao grupo. Por necessidade social, espiritual ou poética, ele e os amigos de 20 anos não só escreviam ou declamavam poesias, como invadiam “os casarões de Higienópolis”, bebiam no Paribar da praça Dom José Gaspar e eventualmente quebravam o consultório do psiquiatra que tivesse levado um amigo à internação. 

 

Willer não foi, portanto, menino fácil, embora a “burguesia filisteia” contra a qual ele e seus amigos lutavam igualmente apresentasse um corpo de dificuldades. Naquela São Paulo burguesa havia autoritarismo nas escolas, o trânsito vivia congestionado e as filas de ônibus eram comuns. O sexo estava confinado em zonas e as mulheres se dividiam entre as noivas intocadas e as prostitutas. Depois do final da década de 1960, com a chegada da contracultura, os burgueses locais “queimaram os próprios miolos” com cocaína “em vez de encher o saco da gente”. E mesmo Willer passou a entender a vida de outro modo. Existir pela poesia se tornou perigoso. Como lembra Roberto Piva em Uma Outra Cidade, os meninos da periferia que nos anos 1960 liam Baudelaire e tinham “os rostos rurais dourados queimados de sol” haviam sido substituídos por “pálidos criminalóides”, perambulando feito zumbis.

 

Aquele Willer beatnik transformou-se no pensador do beat que fala em universidades, tem bolsa da Fapesp e vive de muitos cursos. Ele acha que poderiam lhe estender um tapete vermelho maior. Ou, pelo menos, respeitar o caminho que trilhou. Willer é o tradutor de Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, e de Uivo e Outros Poemas, de Allen Ginsberg. Para traduzir Ginsberg, usou mais de duas décadas de experimentos. Em 1984, a L&PM publicou Uivo sob a consultoria do próprio Ginsberg, que endossou, entre outras, a tradução de leaping towards the poles of Canada & Paterson por pulando nos postes dos pólos do Canadá & Paterson.

 

Por conta de tantas dificuldades enfrentadas, Willer estrilou ao ver a sua tradução ser aplicada sem autorização à legenda brasileira do semidocumentário Uivo, dirigido por Robert Epstein, durante a Mostra Internacional de Cinema de 2010. “Reclamar com o Leon Cakoff ainda bem que não reclamei, porque ele morreria logo depois. Deixei por isso mesmo, mas mandei um email para meu editor, Ivan Pinheiro Machado, que não se interessou pelo assunto.” Em julho deste ano, ao assistir ao filme no canal Cinemax, Willer viu sua tradução mais uma vez em cena, sem créditos ou agradecimentos. Lá estava o verso I saw the best minds of my generation como ele o traduzira, Eu vi os expoentes da minha geração. “Mas, desta vez, como se tratava de tevê, o pessoal foi cretino. Em vez de usar a palavra ‘caralho’, como eu a escrevi, puseram ‘pênis’. Em lugar de ‘adoçaram as trepadas’, ficou ‘adoçaram as vaginas’. E a expressão ‘ofertaram seu ânus’ substituiu ‘deixaram-se enrabar’.”

 

O poeta expôs a situação em seu blog. Isa Carvalho, coordenadora da empresa 4 Estações, me diz que, em função do pouco tempo disponível para a legendagem durante a mostra, a tradutora Ludmila Breitman usou a versão contida no blog poemasbeatnick.blogspot.com.br, que não creditava a autoria: “Ela pede desculpas pelo problema causado e nós, como coordenadores, vamos reforçar essa questão na reunião com todos os tradutores esse ano.” Muito diferente foi a reação do canal HBO-Max (que programa novas sessões dias 12, 15 e 25 de agosto e 1 de setembro). A HBO não informa que empresa fez a legendagem. E diz: “A HBO adquire os direitos dos filmes que vão ao ar nos seus canais com todas as liberações necessárias para a exibição. Não foi registrado até o momento nenhum problema de direitos com o filme O Uivo, que está sendo exibido no canal Max. Sendo assim, a HBO não possui comentários sobre qualquer questão envolvendo o filme.” A editora do livro resume em uma frase sua posição oficial: “A L&PM não foi consultada sobre a utilização da tradução”. Neste momento, Claudio Willer se contenta com a repercussão do caso no blog. “Mas se essa versão passasse no cinema, eu fazia sair de cartaz. Se fosse comercializada em DVD, eu fazia prender.” Eis os pés com asas do poeta próximos da porta, perigosamente.

 

 

PS:

O pensador Claudio Willer, que viveu pela poesia, era uma pessoa de quem qualquer um prezaria se aproximar. Um personagem da cidade ou de “Uma Outra Cidade”, como no documentário de Ugo Giorgetti em que a cena de sua juventude literária, ao lado de Roberto Piva e de outros, ganhava detalhe.

Um dia, encontrei uma boa desculpa para entrevistá-lo, quando ele se irritara ao ver sua tradução para “O Uivo” usada sem autorização ou respeito. Depois da entrevista acima, nós nos falamos várias outras vezes, sem registro. E ele gentilmente aceitou o convite para a noite de autógrafos de um livro que eu escrevera, “O cineasta historiador”. Ainda em 2022, esteve presente numa roda virtual em comemoração ao ciclo de filmes documentais de Ugo Giorgetti dentro do Festival É Tudo Verdade, a última vez em que nos falamos.

Willer, sem você perdemos a alegria, mas por você continuaremos a resistir.

Claudio Willer ao meu lado em 2015, enquanto lhe redijo uma dedicatória do livro que acabara de lançar

Como cheguei à flânerie na Paris de 1990

Fiz jornalismo cultural a maior parte do tempo em que exerci a profissão, sempre a sofrer imensos problemas de saúde decorrentes dessa escolha, depressões, gastrites, síndromes irritáveis, cáries… Minhas complicações com o jornalismo brasileiro sempre foram totais, giraram em torno de seu modo de ser, de haver e de se impor a mim, fosse por assédio moral e sexual dos superiores ou por implicância com qualquer coisa que eu escrevesse e propusesse, como uma vez fizeram troça da minha ideia de falar sobre dança numa edição de quarta-feira…

Por exemplo, eu era bem jovem, 26 anos, quando me vi fundadora e editora de um caderno cultural. E depois de certo tempo a sofrer o de sempre, pressões e enxovalhos, pedi demissão do tal jornal. Nessa época ainda era possível requerer a um patrão que nos demitisse e ele aceitar isso, o que permitia a nós, demissionários, retirar nosso fundo de garantia (isto se o empregador tivesse depositado o valor devido todos os meses…) e usá-lo de nosso jeito. Demiti-me em 1990 e planejei a primeira viagem à Europa.

Ao comprar dólares com o valor da rescisão, vivi minha grande sorte. Quando Fernando Collor assumiu a presidência, eu me tornei quase a única pessoa com dinheiro no Brasil. A besta quadrada collorida, que mal andar sabia, não conseguira confiscar meu dinheiro! E assim fui a Paris, depois ao interior da França, ao litoral e ao norte da Itália, deslumbrada com tudo, visitando, fotografando, comendo e bebendo com prazer desse privilégio. Já sem um tanto desse dinheiro, retornei depois de um mês de viagem à mesma Paris por onde comecei. E lá morei mais um mês em troca de cuidar do filho pequeno de uma família que esperava outro nenê.

Neste mês a viver por ali com meu francês ruim, senti toda a ojeriza do parisiense a pessoas “inferiores” feito eu, ainda por cima em ousada flânerie. Uma vez passeava sozinha pela avenida Champs Elysées e uns jovens baixinhos italianos começaram a me cantar e a me sorrir. Eu tinha pernas bonitas e nem sabia mais o que fazer para afastá-los, eles que me perseguiam pela rua, quando o menorzinho se aproximou, me perguntando de que região da Itália eu era: “Di Napoli? Di Roma?” E então achei um jeito de me livrar deles, sorrindo também: “Sono brasiliana!” Fugiram de imediato de mim, e até hoje me divirto em pensar que talvez tivessem me achado uma travesti brasileira alta, muito da bonita e elegante.

Bem, continuei andando tranquilamente, às vezes sob olhos ruins, pela rua e de metrô, embora uma noite tenha sentido como ameaçadora a presença de um homem em um vagão vazio. Paris pode nos abraçar como não desejamos…

O resto dos meus dias foi no parque com o bebê de um ano, assistindo a shows como o de Marianne Faithful no La Pigalle ou andando pela cidade com minha câmera fotográfica analógica Yashica, que comprei graças à contribuição monetária do meu amado tio Bissa, seu presente a mim antes de morrer com câncer. Eu mal sabia focalizá-la direito manualmente, a única opção de foco que tinha.

Fotografava bobagens que poderia ver nos livros, quadros e esculturas do Louvre ou do d’Orsay, e às vezes, um pouco temerosa, a rua em si. Hoje meu filho descobriu um álbum pequeno com essas fotos em papel e me mostrou. Fotografei um sem-teto, clochard embriagado que fechou os olhos ao protestar contra mim diante da câmera, o clássico descanso ao sol das famílias no Jardin de Luxembourg, um elegante jogo de cartas à sombra das árvores, a fachada de um cinema de arte, as esculturas representando Marcello Mastroianni e Massimo Troisi em “Che Ora È?”, filme de Ettore Scola de 1989 que os franceses chamavam de “Quelle heure est-il?” (assisti à ficção atraída pela vitrine e a saudade da Itália me pareceu imensa…)

Entre as fotos, havia ainda a tímida tentativa de mostrar um homem a passear com uma mulher na cadeira de rodas, o céu de maio sobre o qual se formavam nuvens finas e, sim, o estranho veículo conduzido por jovens que sugava das calçadas o cocô dos cães…

Antes que eu empreenda novas buscas por esses arquivos, mostro-lhes estas imagens sentimentais.

O clochard embriagado fecha os olhos ao protestar diante da livraria
O clássico descanso ao sol
no Jardin de Luxembourg
O elegante jogo de cartas
à sombra das árvores
As esculturas representando
Troisi e Mastroianni em “Quelle heure est-il?”, na vitrine do cinema
A fachada de um cinema de arte
Um passeio bem assistido
O céu de outono
O veículo que chupava o cocô dos cães

Mattoli à brasiliana

Roberta Gomes, Maurício Tagliari e Marco Mattoli na Biroska, em 2019

Mau, meu marido, era já amigo dele havia décadas quando finalmente o conheci, em um desses cinemas da avenida Paulista, em São Paulo, durante a première de “Mundo Cão”, em 2016. O estranho filme de Marcos Jorge inspirado em “Un Borghese Piccolo Piccolo”, de Mario Monicelli, embora ancorado na Globo Filmes, não faria sucesso algum.

Eu diria que Jorge, embora tendo estudado cinema em Roma, não havia absorvido o espírito frio como aço da commedia all’italiana, algo, cá entre nós, que seria muito difícil mesmo para qualquer um fazer. Seria preciso ter estado lá, naquelas duas décadas posteriores ao fim da guerra, sofrendo aquela Itália de um classe média sonegadora e pequena (alguma semelhança com o que acontece em outro tempo e lugar?), e além disso, estar munido das garras do socialismo crítico de Monicelli, para entender aquele tipo médio italiano que nem pequeno burguês chegara a ser. 

Contudo, com toda a parcialidade possível, eu havia entendido que a trilha sonora composta por meu marido, o Maurício Tagliari, para “Mundo Cão”, com a participação do Marco Mattoli, dera a dimensão da malandragem que a ficção havia tentado mostrar sem conseguir.

Mattoli cantava ali com a bossa de um Wilson Simonal. Uma coisa propositadamente suingada, a evocar com muita beleza um cantor que a história não repete. E assim o filme ganhava o sal que sua direção (ou a produção de Daniel Filho) falhara em ter. 

Em certo momento da première nos vimos juntos, Mattoli e eu, os sem estrela, presos num corredor, e ele que mal havia sido apresentado a mim começou a me falar de filhos. Do meu, que então estagiava no estúdio onde ele trabalhava… “Ele tem talento, musicalidade, é um menino muito bacana”, foi dizendo. Agradeci e comentei alguma coisa em relação ao conflito geracional que temos de enfrentar em relação aos nossos meninos, e ele começou a me falar da filha arquiteta, que tanto respeitava.

Pronto. Desde então, sempre me senti próxima dele, do modo como a gente sente um igual, embora nunca mais tenhamos conversado muito tempo sozinhos, e com tanta franqueza. Certeza que eu não fora a única com quem Mattoli dividira um momento assim, pois se uma coisa ele fazia como ninguém era tratar a humanidade como uma situação a seu alcance.

Em uma ocasião na qual desejava introduzir o Maurício ao imenso talento musical da compositora Roberta Gomes, por exemplo, cozinhou meticulosamente um macarrão a carbonara para nós, e eu notei pela primeira vez a seriedade por trás daquele sorriso. E ele só extravasou a enorme alegria de novo pra mim quando soube que eu tinha relação com a “Animal”, revista que ajudei (ou atrapalhei) o Rogério de Campos a fazer. Era um amante de quadrinhos. Liberatore!

Fui a muitos shows do Mattoli nestes últimos anos, do Clube do Balanço ao Samba do Marcos, ou àqueles de que participava como convidado. Bebíamos e ríamos muito depois. O último foi o show da big band Nova Malandragem, que ele produziu com Maurício para o selo Mundaréu Paulista, criado pelos dois. Que descoberta! Que músicos além de seu tempo! “Feliz com essa juventude, né, querido?”, eu lhe perguntei. E ele, sério, cabeça baixa: “Gosto muito também”.

Em maio fiz aniversário, convidei-o a almoçar com a gente, mas ele andava por uma Ilhabela ensolarada (ainda bem!), com sua linda Betânia. Não deu.

Meu italiano sambista, figura rara, tive tanta sorte em lhe conhecer! Você viverá para sempre na gente, como um pedaço de luz.

Tudo pode dar certo: minha entrevista com Geraldine Chaplin

Em outubro de 2015, aproveitei a rara chance que a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo me dava e, tremendo nas pernas, entrevistei a atriz Geraldine Chaplin, hoje com 78 anos. Me avisaram de um dia para o outro que eu teria dez minutos apenas para conversar com ela no saguão do hotel Renaissance da alameda Santos, em São Paulo. Cheguei lá antes, fui a primeira e abusei da sorte – de dez passei para vinte minutos de conversa, e ela não reclamou. Pessoa rara, raríssima, não recusou responder qualquer questão, riu comigo e me deixou fotografá-la com o celular, imagem que posto aqui. Todos os grandes são simples! Alguns dias depois, tentei entrevistar Wolfgang Becker (de “Adeus, Lenin”), diretor do filme no qual ela atuava, e ele foi tão diferente, um porco comigo, com perdão aos porcos. Quis que eu pagasse a cerveja que tomava no Maksoud Plaza e reclamou de só haver Heineken no bar. Paguei foi nada! Mas o filme com Geraldine era razoável, até muito bom quando ela aparecia nele. Na entrevista a seguir, a atriz atribui sua carreira à sorte. Diz que seu pai jamais quis lhe ensinar atuação, embora ela muito solicitasse. Chaplin, ela conta, demonstrava muito menos bom humor que sua mãe, Oona. Ele não sabia quem era Ingmar Bergman e só se interessava pelos próprios filmes. Cinéfila, Geraldine amou ter conhecido “Limite” e toda a fatalidade a envolver Mário Peixoto, seu diretor.

Com a camiseta das
Tartarugas Ninja e o crachá
da Mostra, posando para
meu celular: os grandes
são simples

Um mar de tranquilidade cerca Geraldine Chaplin. Aos 71 anos, sem jamais impacientar-se, a atriz enfrenta o burburinho em direção à mesa do saguão do hotel paulistano onde conversará sobre sua vida e seus filmes. A presidente do júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo tem os cabelos pintados de preto e sua franja se vê encimada por um par de óculos de sol de cor laranja, que ela usa como uma tiara. Veste calça, tênis e uma camiseta com a estampa do desenho animado Tartarugas Ninjas. Uma estrela em “Kaminsky e eu”, o primeiro filme dirigido por Wolfgang Becker depois de “Adeus, Lênin”, de 2003, ela sorri sempre e fala rápido. “Humor é a única maneira pela qual você pode lidar com a tragédia da vida”, acredita, disposta a enfrentar qualquer pergunta, mesmo as inevitáveis a envolver Charles Chaplin, seu pai.

A filha maior em
“Luzes da Ribalta”, dirigida
por seu pai

Diz-se que o diretor mal viu os filmes em que ela atuou, mas a atriz assegura o contrário. Por exemplo, Chaplin assistiu a “Doutor Jivago”, no qual ela interpreta Tonya, em 1965. Era sua segunda participação em um longa-metragem depois de ter sido escalada, no mesmo ano, para estrear ao lado de Jean-Paul Belmondo em “Par um beau matin d’été”, de Jacques Deray. Ela havia seguido a carreira de bailarina depois de uma breve aparição, aos 8 anos, em “Luzes da Ribalta”, dirigida por seu pai. Mas o balé, que exercera com brilho até mesmo no circo, não lhe dera compensação financeira. “Não podia voltar para casa assim sem nada, não teria como encarar meus pais. E então pensei: ‘Talvez possa me tornar uma atriz.’ Eu tinha um bom sobrenome, não é? Aquele que me abriria portas. E saí atrás de empresário, simples assim.”


Em “Doutor Jivago”, seu segundo

longa: o diretor David Lean
a escalou porque ela
se parecia com uma russa

“Doutor Jivago” surgiu de um acaso. “O diretor David Lean me viu na capa de alguma estúpida revista feminina e, ao saber que eu era uma Chaplin, disse a sua produtora: ‘Ela parece russa, vamos testá-la’.” O longa correu animado, como sua carreira em mais de uma centena de filmes. “Toda a minha vida foi sorte, sorte, sorte”, diz, sem ironia. “Mas o sobrenome Chaplin não tem a magia de antes. Minha filha Oona, uma atriz maravilhosa, bem o sabe.” O fato é que depois de não se entender estupenda em “Doutor Jivago” pediu ao pai as orientações que auxiliariam seus futuros desempenhos. “Oh, você é a melhor coisa do filme”, respondeu-lhe aquele cujo nome, à época, talvez estivesse próximo de significar todo o cinema. “Queria seus conselhos e ele não me dava. Nem ligava para o que eu fazia ou apenas agia como meu pai.” De todo modo, ela desejou ser atriz, apaixonar-se pela profissão. “Mas não é uma carreira fácil, sabe? O estudo dos seres humanos que fazemos. Os deserdados que representamos. Como chegar até eles?”

No filme “Peppermint Frappé”,
do então marido Carlos Saura:
Chaplin amou

Talvez tenha se sentido atriz pela primeira vez ao lado do diretor espanhol Carlos Saura, com quem esteve casada por doze anos, e para quem atuou em clássicos como “Cria Cuervos”, de 1976. Quando partiu para viver com ele sob a ditadura franquista, seu pai arregalou os olhos: “Você enlouqueceu?” E ela sentiu então de perto a diferença entre lutar contra o totalitarismo imersa no regime ou a milhas distante dele. “Todos na Espanha odiávamos o dramaturgo Fernando Arrabal, porque ele atacava a ditadura acomodado em Paris”, recorda-se. “Percebi, naqueles anos com Saura, que os filmes poderiam ser mais, quem sabe mudar o mundo. Hoje é preciso reconhecer que provavelmente os filmes não mudem o mundo. Se assim fosse, vários deles, como os de meu pai, talvez tivessem transformado alguma coisa.”


Chaplin, que esteve na Suécia para receber um prêmio,

viu um filme de Bergman, gostou,
mas não tinha ideia de
quem fosse o diretor

Ao contrário do que sugerem relatos de época que informam o apreço de muitos diretores, como Vittorio de Sica, às avaliações positivas do criador de Carlitos sobre suas obras, Chaplin não assistia a muitos filmes. “Só os via quando estava escrevendo os seus, porque tinha de escolher com quem trabalhar. Caso contrário, nada de filmes, exceto os que ele fazia.” Uma vez foi à Suécia receber algum prêmio e, quando voltou, perguntou à esposa: “Vimos esse filme, tão bonito, tão incrível, daquele, como é o nome mesmo?” E Geraldine: “Ingmar Bergman?” Para que Chaplin respondesse: “Acho que é esse mesmo”. Ele não tinha a mínima ideia de quem fosse quem no cinema. Seu marido, Saura, Chaplin conheceu por necessidade, e gostou muito de “Peppermint Frappé”, de 1967, em que ela atuou.

Como uma documentarista
em “Nashville”: a única
orientação do diretor
Robert Altman foi que
ela o seguisse e imitasse

Um pouco à moda do pai, Geraldine buscou a originalidade, e suas interpretações mesclaram graça, profundidade e estranheza. Muitas vezes, um papel inesquecível representado por ela nasceu de uma orientação inesperada. Em “Nashville”, por exemplo, ela surpreendeu ao interpretar uma documentarista que sai atrás dos nomes da cena country estadunidense. “Eu não conhecia o trabalho do diretor quando aceitei o papel. Uma amiga que trabalhava com ele sugeriu meu nome”, conta. “Ao me aceitar para o filme, Robert Altman deu apenas esta indicação: ‘Siga-me e me imite.’ Fiz como ele pediu. Alguns dos filmes de que participei são muito bons, e eu fiquei tão feliz por ter atuado neste. Ninguém imaginou que virasse o que virou. Uma obra-prima, ao contrário de ‘Mash’, do mesmo diretor, que envelheceu.”

Na direção oposta à do pai, Geraldine tem muito a dizer sobre o cinema, novo ou antigo. Sentiu-se maravilhada, por exemplo, ao descobrir “Limite”, realizado por Mário Peixoto em 1931, restaurado e exibido durante a mostra. “Foi um choque completo para mim. Os planos são mágicos nesse filme melancólico, tão poético. E de pensar que, velho, o diretor ainda tentasse explicar essa magia jamais retornada, como se fosse um Arthur Rimbaud retirado da poesia, mas aos 21 anos.” Apesar de tão observadora, nem sempre deu sorte com os filmes de que participou, especialmente os dirigidos pelos novos. Ela destaca um raro caso de felicidade ao aderir a uma obra de estreia. Em 2007, interpretou uma médium em “El Orfanato”, um sucesso de crítica e público na Espanha. O diretor Juan Antonio García Bayona a quis para “A Monster Calls”, com lançamento então previsto para 2016, por sentir que ela lhe dava sorte. Contudo, de início, não tinha o que lhe oferecer. “O papel disponível era o de uma professora chinesa de 25 anos. E então Bayona decidiu que deveríamos esquecer que ela era chinesa e tinha 25 anos.”

Em 1952, entre Chaplin e Oona,
além da irmã Jacqueline: a
engraçada da família era a mãe

A atriz aderiu alegremente a “Kaminsky e eu”. Adorava o filme anterior de Wolfgang Becker, um diretor que lhe garantiu ter feito muito dinheiro no cinema e não ter pressa. “Ele me perguntou se eu aprenderia alemão para atuar, respondi que não. E no filme falo a língua apenas foneticamente. Mas Wolfgang se entusiasmou com a performance a ponto de me pedir para adicionar uma pronúncia francesa a meu alemão. Fiquei incrédula.” Seu personagem neste filme é um entre tantos que interpretou à margem da vida. “Tentei atuar como um computador que deu errado. Tudo estava lá, mas algum botão… Bem, não entendo nada de computadores. Vejo meu marido, o diretor Patricio Castilla, reclamar dizendo que perdeu tudo dentro deles, e eu penso como isso se dá. Então sou como um computador neste papel. Estou lá, mas não estou.”

Por não saber cantar, nunca enfrentou uma carreira na Broadway, como fizera seu irmão Sydney, embora tenha atuado ao lado de Anne Bancroft na bem-sucedida peça “The little foxes”, de Lilian Hellmann, dirigida por Mike Nichols. “O teatro é diferente demais, exige outra técnica. Cinema é o que sei fazer.” Uma arte naturalmente equilibrada entre o riso e a melancolia, como ela a entende. “Sempre vi o humor correr pelo sangue da família, mas jamais fui ensinada a desenvolvê-lo. Muito mais que meu pai, minha mãe nos divertia com seu senso de humor extraordinário. E somente Oona conseguiria rir das situações mais trágicas, como os funerais.”


Com o pai, que jamais quis
lhe ensinar a atuar

Odisseia paulistana

O imenso escultor grego Nicolas Vlavianos, radicado em São Paulo há seis décadas, morreu hoje nesta cidade que considerava sua, aos 93 anos, de insuficiência respiratória. Quando chegou aos 80, ele me concedeu esta entrevista, em maio de 2009, na qual descreveu sua revolução pelo aço, mas não só. Conversar com este artista foi um grande privilégio meu. Aprendi como poucas vezes no jornalismo, antes ou depois, o sentido da arte em um tempo que inviabiliza o esforço físico e no qual a escultura não cabe mais.

Em foto de Patrícia Stavis, o escultor Vlavianos segura uma miniatura, ele que foi o artista da grande escala

POR ROSANE PAVAM

Sob seus olhos há pequenas bolsas e os cabelos brancos estão gentilmente rebeldes, mas o escultor grego Nicolas Vlavianos ainda pensa como sorri, de um jeito jovial, aberto às utopias. Ele habita São Paulo há quase cinco décadas, os pais e a esposa morreram aqui e os filhos Myrine e Gabriel prosseguem o caminho que ele abriu na arte. A cidade é seu lugar e sua revolução.

Homenageado pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte em abril, Vlavianos tem 80 anos, 40 deles como professor e coordenador cultural da Faculdade Armando Álvares Penteado, a Faap. Mas nada disso talvez conte tanto para ele quanto esta metrópole, toda por sua desde que o artista foi selecionado à VI Bienal Internacional de Arte. “São Paulo me deu a oportunidade de não sentir falta de alguma coisa”, raciocina Vlavianos, inclinado a terminar sua narrativa com frases excelentes, um homem educado que se senta em seu escritório na Faap em meio a pequenas esculturas nas prateleiras, uma mesa com papéis, folhetos e livros de arte e um computador.

Menino em Atenas

Vlavianos contava 32 anos naquele 1961, não era casado, não tinha filhos, não terminara o curso de Direito e seus pais, Charilaos e Evangelia, continuavam tabeliães em Atenas, de onde ele saíra cinco anos antes para habitar Paris. Por sua natureza de escultor, jamais pulou de lugar em lugar, sempre fixado à forja dos ateliês. Não era surpreendente, portanto, que de toda a Grécia só conhecesse a capital, até deixá-la, em 1956, aos 28 anos. Na cidade francesa, suas exposições adquiriram fama para além do estúdio que alugara em Montparnasse. Ele era uma nova realidade nas mostras do Museu Rodin, um artista finalmente moderno, contra tudo o que seu país lhe proporcionara.

É preciso não exercer a tentação de associar a imagem de Vlavianos à de todos os grandes escultores gregos dos quais aprendemos histórias. Vlavianos não é Fídias, não constrói imagens de adoração que parecem uma coisa quando vistas de perto e outras diferentes se observadas do sopé da montanha. Vlavianos não é um clássico, assim entendido o artista como um homem da Antiguidade. Ele nunca persegue a velha escola. Ontem como hoje, olha para o depois.

Paris aconteceu em sua vida porque os gregos deixaram de ser como seu conterrâneo Fídias, do qual não restaram obras, apenas relatos. Desde meados do século XIX, os gregos eram alemães da Bavária no campo da arte, e Atenas não pertencia politicamente a si mesma. A escultura neo-helênica, surgida nos últimos dois séculos, fora influenciada pelo neoclassicismo alemão. Os gregos, então, obedeciam curiosamente a quem reinterpretava sua luz antiga. “Não existia arte moderna em meu país”, diz.

O artista e sua lida, na cidade que lhe possibilitou a revolução pelo aço inoxidável e lhe deu um ambiente artístico atento, ameno, solícito

O Brasil do artista grego não tinha passado e seu futuro parecia certo aos estrangeiros. Como todos os que correram para cá naqueles anos, Vlavianos não enxergava limites nas terras brasileiras. A língua portuguesa não lhe parecia difícil, ele que falava francês, e além disso o jovem a sofisticava de tempos em tempos com a leitura da coluna do Vão Gogo, na verdade Millôr Fernandes, na revista O Cruzeiro. O clima era quente e os homens e mulheres, amenos. Todos, neste particular, eram um pouco gregos também.

Bastava conversar com uma profissional especializada como Felícia Leirner, a ele apresentada por um amigo grego comum, para que todo o mundo da arte se abrisse a Vlavianos. Havia críticos na São Paulo de então para notar sua existência e convocá-lo à contribuição no panorama das artes. Walter Zanini o percebera como escultor e se tornara seu amigo pessoal. Mário Pedrosa e Geraldo Ferraz acompanhavam entusiasmados a solidez do artista. A partir de pessoas como essas, a amizade com Cacilda Becker lhe surgiria como um novo degrau. A atriz de Pirassununga aproximara-se do escultor com uma proposta teatral.

Em 1963, Vlavianos já alugara um ateliê, em razão da encomenda feita por um funcionário da Bolsa, Fernando Leite de Barros, que desejava ter um cavalo de bronze em tamanho natural, parecido com aquele fincado no Edifício Itália. Para fazer a escultura por boa quantia, Vlavianos não viu outra opção a não ser alugar um estúdio, encontrado à rua Espártaco, para diversão do escultor. O gladiador de origem trácia liderara a maior revolta de escravos da Roma Antiga e entrara no imaginário popular alguns anos antes por meio da interpretação de Kirk Douglas no filme Spartacus, de Stanley Kubrick. Enquanto Vlavianos fazia o cavalo no estúdio da Lapa, Cacilda lhe pedia armas para a montagem de César e Cleópatra, uma peça de Bernard Shaw que se revelaria um fracasso de público em 1964. Vlavianos compôs escudos, capacetes e espadas para os personagens ensurdecerem em cena os poucos espectadores.

Por essa época, as esculturas do artista começaram a mudar. Em sua sólida base terrena, sem jamais aspirar à leveza de quem voa pelo céu ou o procura, as obras ganharam flexibilidade, pregos, furos, humor. E aço. São Paulo deu-lhe o que, para Carlos Drummond de Andrade, havia de sobra nas calçadas da mineira Itabira, e também nas almas. “Em Paris, eu usava bronze e alumínio”, conta. “Mas São Paulo me deu o aço inoxidável.” E não somente ele. “Aqui achei eletrodos para soldar, lixas para lixar, todo o maquinário destinado a esculpir.”

Esta foi uma revolução para Vlavianos e para a arte do Ocidente, embora poucos se dessem conta do enorme fato. Até os anos 1960, não havia quem se atrevesse a esculpir integralmente em aço em todo o mundo. O material e o equipamento para manejá-lo, fartos na capital paulista, impulsionaram essa revolução.

“Sempre falamos mal de São Paulo, e eu também. Mas considere isso. A cidade tem de tudo.”

Aqui também houve centros para estudar a arte. O grego foi convidado a dar aulas na Faap em 1969, depois de recusar o convite do amigo Zanini para ensinar na Escola de Comunicações e Artes da USP, pobre em ateliês e recursos. Na Faap também dava aulas sua mulher, a artista Teresa Nazar. Ele via com bons olhos o trabalho estável, que ainda lhe rendia mais espaço para planejar as esculturas. Contudo, não tinha qualquer didática a oferecer à garotada. “Ainda não tenho. O que eu sei fazer, até hoje, é trazer os alunos para produzir as coisas. Nunca falo ‘o seu projeto é uma merda’. Eu digo: ‘Dá para melhorar’.” Ele não se recorda de um nome extraordinário saído de suas aulas de escultura, mas reconhece ter tido bons alunos pintores.

Isso porque a pintura, no seu particular modo de ver, é um estágio para um crescimento tridimensional. A arte começaria pela poesia. Dela seria possível chegar ao desenho e, posteriormente, à tela com cores. E, desse estágio, existiria a chance de alcançar a escultura, primeiramente feita com materiais maleáveis, como a madeira e a pedra-sabão de Minas Gerais, depois com os blocos rígidos.

A questão importante, para ele, é que hoje em dia não há nem mesmo uma possibilidade real para quem deseja alcançar o estágio de um escultor. “A escultura não é para nossa época”, sentencia. “Ela requer um grande esforço físico, mas nós perdemos essa capacidade de nos esforçar fisicamente.” O computador daria soluções mais rápidas e desacostumaria o artista com a lida. “É um instrumento que estreita o pensamento. Não é o computador que entra na sua maneira de pensar, é você que entra na maneira de pensar do computador.”

Para Vlavianos, que experimenta, contudo, parcerias para esboçar projetos nesse formato, tal meio técnico inibe até mesmo a avaliação de um problema, quando ele surge. E é só compreendendo o problema corretamente que se pode solucioná-lo. A solução, na escultura, acontece quando usamos a cabeça e as mãos, não quando clicamos o mouse, defende.

O computador também responderia a uma necessidade que a época tem por reagir de forma menos agressiva às coi- sas. “Quando o sapo é jogado na água quente, pula de imediato. Mas não percebe a ameaça se é cozido em fogo brando. Quem percebe o aquecimento global, a menos que tudo aqueça demais?”

Vlavianos compara esse estado de coisas na arte ao jornalismo, que incluiu gastronomia no cardápio, quando antes só admitia, e em casos específicos, a publicação de receitas de pratos. “O que vou fazer? Brigar por isso? Para brigar, seria necessário uma razão que o tempo não me dá.”

O espírito do tempo pede a acomodação, não a polêmica, o debate de ideias, afirma Vlavianos, como quem se resigna. Uma vez que a crítica acabou, o que é artístico se torna também negociável. A arte encarece com a necessidade atual de patrocínios, transporte, seguro, fotografia. Há a figura especialmente intrigante do curador. Ele é o homem do conceito, mas e se o conceito estiver errado? “Um conceito errado, por exemplo, é o de arte brasileira. Se colocamos estrangeiros para fazer arte brasileira, o que isso significa? Não existe arte brasileira. Existem os artistas do Brasil. Existem o carnaval e as mulatas.”

Vlavianos não tem conselhos a dar ao artista novo. Exceto, talvez, aquele de trabalhar de forma incessante, sem esperar enriquecer. “Se você quer dinheiro, abra um bar. Os bancos são os caminhos mais fáceis para isso. Para fazer arte, ou seja, expressar uma pequena parte do que pensa, você não pode exigir descanso. Se eu fico parado, tenho ideias muito boas de vez em quando. E daí? Daí, nada.”

O artista nunca soube o exato significado de seu nome de família. Talvez, em grego, algo “vlaviano” equivalha a algo “fiel”. O qualificativo faria sentido para ele, já que, neste mundo, a coisa que suporte mais dificilmente seja a perda de “quase todos os amigos”. Restaram-lhe as utopias. Ele ainda espera, como um sonho, correr um rio e conhecer a França inteira.

Adeus, Perrin

Soube que Jacques Perrin morreu dia 21, aos 80 anos. Amava-o nos filmes de Valerio Zurlini. Que triste e maravilhoso é “Cronaca Familiare” (Dois Destinos), de 1962.

Mastroianni vive ali o irmão maior, inconformado, voluntarioso, que tenta ensinar algo da sua força ao caçula, frágil e contido até a morte.

Me parece haver também no filme a alusão a um amor entre homens, impossibilitado pela educação social. A direção de atores é estupenda, como em qualquer filme de Zurlini. E como estão perfeitos aqui!

Obrigada, Perrin. 💚