Na Mongólia, o ouro que cava desertos

“As Veias do Mundo”, na seleção da Mostra Internacional, apresenta as contradições da resistência ao garimpo predador em um país que perdeu 300 lagos e 300 de seus rios

O resistente Erdene (Yalalt Namsrai) e seu filho Amra (Bat-Ireedui Batmunkh)

A mais ativa usina de ouro do mundo está situada na Mongólia, onde cerca de trezentos lagos e trezentos rios secaram por conta da mineração sem controle dos últimos anos. Neste país em que a densidade populacional é tão baixa, menos de dois habitantes por quilômetro quadrado, as esperanças são igualmente desérticas sobre o que vive, incluídos nesta última categoria, os seres humanos.

Um desejo resistente de conservar o que restou

Expulsos pela ação do garimpo, os mongóis se dirigem cada vez mais às áreas urbanas, especialmente à capital Ulan Bator, não só para sobreviver, mas também para realizar seus sonhos como artistas, às vezes expressos por ilusões globais como a franquia do programa de calouros “Mongolia’s got talent”. 

A venda de queijo no caminho para a escola

Assim é que Amra (interpretado por Bat-Ireedui Batmunkh), menino de 11 anos filho de um camponês resistente à cessão da terra aos especuladores, e cuja família vive do pastoreio na estepe, vendendo queijo nos arredores, é levado pelo próprio pai a se candidatar ao sucesso como cantor neste “As veias do mundo”. Um fato grave se interpõe a seu objetivo e ele de repente o menino estará mudado, experimentando precocemente o lado que o oprime. 

A mãe de Amra, Zaya (Enerel Tumen), e a filha Altaa (Algirchamin Baatarsuren) no pastoreio

O filme da diretora Byambasuren Davaa, nascida em Ulan Bator em 1971, esquematiza a desesperança. Seus planos de paisagem natural e humana são exuberantes, e os atores, especialmente os infantis, veem-se conduzidos de modo a intensificar o encanto da história. Tudo neles é expresso pelo rosto ardente e gentil, a dor, o riso, a determinação, a inocência e sua perda. Talvez as sequências fossem mais fortes se se demorassem um pouco em suas qualidades, mas esta cineasta é ágil para o corte, porque se move pelo princípio da ação.

A diretora de “As Veias do Mundo”, Byambasuren Davaa

“As Veias do Mundo” é a obra essencial desta artista que atuou como assistente de direção na televisão pública mongol e estudou na Escola de Cinema de Munique (HFF). Seu primeiro longa-metragem, “Camelos Também Choram” (2003), foi exibido na 28ª Mostra Internacional, indicado ao Oscar de melhor documentário daquele ano. A cineasta também dirigiu “The Cave of the Yellow Dog” (2005) e o documentário “The Two Horses of Genghis Khan” (2009).

Na revolta de Amra, a expressão da resistência

AS VEIAS DO MUNDO

Dir.: Byambasuren Davaa

Alemanha, Mongólia

2020   

96 min

https://mostraplay.mostra.org/film/as-veias-do-mundo/

Ser escritor na China, ou como transpor o mar

Em documentário na Mostra Internacional, Jia Zhangke ouve três escritores chineses sobre a arte no país a partir dos anos 1950

Jia Pingwa: “Escrever poesia não significa viver uma vida poética”

Nadando até o mar se tornar azul é mais que um título de filme, antes um verso concreto, dito com alguma naturalidade pelo escritor Yu Hua ao final deste belo documentário de Jia Zhangke. O autor conta ao cineasta que realmente, em sua vida, nadou em um mar amarelo até que o enxergasse azul… 

Adepto de uma fotografia que traduz a reflexão do artista entrevistado, focalizando seu rosto enquanto todo o entorno parece borrar-se, o cineasta caminha com calma para desvendar esse tão bem falado horizonte chinês. Os depoimentos parecem ter sido muito desejados pelos depoentes. Há intensidade, risos e lágrimas em tudo o que dizem ao diretor.

A escritora Liang Hong: as emoções pesam

Existiria um modo melhor que usar a literatura das últimas décadas, desde aquela imediatamente posterior à revolução, nos anos 1950, para esclarecer esse horizonte? Talvez sim, mas talvez, igualmente, ninguém tenha pensado nisso antes de Jia Zhangke.

O cineasta vale-se tanto do depoimento intenso e bem-humorado de Hua como da memória do célebre autor morto Ma Feng e dos depoimentos de Jia Pingwa e da escritora Liang Hong, tão emotiva, para recompor a história do fazer literário no país. É como se, durante as conversas com o cineasta, os escritores nos ensinassem coisa demais sobre ser chinês. O valor da solidariedade. A intensidade de desejar a literatura, mesmo que ela lhe tenha sido vetada pelas circunstâncias do trabalho braçal. Tentar reescrever o final e o início de um belo livro cujas páginas foram arrancadas pela revolução cultural. Tornar-se escritor na China! O equivalente a transpor o mar.

Jia Zhangke: boa conversa e inusual fotografia para traduzir quem escreve

Ainda assim, não será tudo. Tornar-se um poeta estará longe de dar um salto verdadeiro na existência. “Escrever poesia não significa viver uma vida poética”, lembra-nos Jia Pingwa. E o que ele aconselha para que isto se dê? Ele não diz. Mas podemos ler um de seus versos. “Lance um olhar frio sobre o mundo”, escreve Jia Pingwa sobre as pedras. 

Tentar imaginar o final e o início de livros cujas páginas foram arrancadas pela revolução cultural tornou-se um exercício para Yu Hua

Nadando até o mar se tornar azul
Dir.: Jia Zhangke
China

112 minutos

2020

https://mostraplay.mostra.org/film/nadando-ate-o-mar-se-tornar-azul/

Um lago onde os sonhos param

“Walden”, da diretora tcheca Bojena Horackova, presente na Mostra Internacional, revisita a burocracia distópia da Lituânia nos anos 1980 por meio do desenvolvimento de um amor adolescente

Uma dificuldade de entender o presente

Tanto a história não se destaca excessivamente neste filme que seu final é antecipado em inserções sobre a vida de um dos personagens, vindo da França para a Lituânia trinta anos depois. Parece interessar à cineasta tcheca Bojena Horackova que recuperemos junto a esse protagonista o que ele sentiu, a simplicidade vivida na adolescência, e entendamos por que ela ainda o atrai. “Walden” vai e vem na cronologia, incerto sobre se os dois protagonistas viveram um enlaçamento por amor ou pelo desejo de fugir do stalinismo.

A diretora tcheca Bojena Horackova

Adolescentes de Ensino Médio, Jana e Paulius se encontram pela primeira vez na pista de patins de Vilnia, na Lituânia dominada por burocratas nos anos 1980. Ele joga hóquei, ela nada na piscina. Ele é um outsider destituído de utopias que faz câmbio ilegal com alemães para adquirir os objetos de consumo que julga importantes, uma bicicleta e um carro, e ela, filha de médico, uma das primeiras da classe, começa a trilhar seu caminho. Paulius já escolheu que vai transigir, Jana acompanha-o com seus olhos grandes. Um dia entram num lago dentro da floresta, que o tio de Paulius apelidou de Walden, e pensam se esconder do mundo.

É uma trama nada intrincada. E faz desse “Walden”, que jamais cita diretamente a obra homônima de 1854, escrita por Henry David Thoreau em recusa à industrialização e à urbanização, uma gargalhada triste e distópica. A fotografia, que tem a participação de Agnès Godard, a fotógrafa de Wim Wenders, propõe algum brilho em meio à aridez que a juventude desse tempo precisa enfrentar. 

Fabienne Babe (Paulius) e Jana (Ina Marija Bartaité) em “Walden”: é amor ou desejo de fugir?

Walden

Dir.: Bojena Horackova

França, Lituânia

85 min

2020

https://mostraplay.mostra.org/film/walden/

O discreto charme da aristocracia do czar

“Malmkrog”, filme de quase quatro horas do romeno Cristi Puiu, presente na Mostra Internacional de Cinema, é um falar constante sobre deus, o diabo e o cristianismo na Rússia que logo irá perdê-los. Quem está em quarentena, gosta de filosofia, aprecia o sarcasmo e a atuação de bons atores enfrentará as longas horas com algum prazer.

Uma cena inicial de “Malmkrog” a evocar a geometria clássica da pintura

Este filme existe como se o russo Andrei Tarkovsky (1932-1986) tivesse se unido ao espanhol Luis Buñuel (1900-1983) para comporem juntos uma obra de cunho filosófico com o objetivo elevado de cutucar deus, o diabo e o cristianismo. Seria um longa-metragem de fato, com quase quatro horas de duração, como este “Malmkrog”, em que os personagens discutiriam a quase seriedade de sua decadência de classe, entre a sala de estar e a de jantar, servidos por homens e mulheres a quem jamais cumprimentariam ou agradeceriam. E isto, evidentemente, não poderia dar-se em um ambiente excessivamente sério, daí a presença jocosa de um surrealista anticlerical (fantasma de Buñuel) para esquentar o argumento, às vezes com uma briga de criança e sua babá no fundo da cena, ou quem sabe tiros. 

O diretor de “Malmkrog”, o romeno Cristi Puiu

“Malmkrog” realiza-se assim, como uma atualização inventiva a ecoar a obra dos dois grandes diretores. O cineasta romeno Cristi Puiu, de 53 anos, é também, e obviamente pelo que se vê neste longa, um encenador dos palcos que estudou pintura e cinema. Seu filme, baseado em roteiro próprio para o livro “Três conversações”, do filósofo místico russo Vladimir Solovyov (1853-1900), é constituído por estranhos movimentos. Muitos dirão que não há movimento algum por três horas e vinte minutos de filme, mas isto será um exagero, é evidente.

Há movimento na geometria rígida e clássica dos enquadramentos. Os atores, muito bons, mexem-se com mínimos volteios entre as portas, colunas, mesa, cadeiras, poltronas. Em tomadas exteriores à distância, na neve, tornam-se pontos a caminhar. Suas expressões faciais se prolongam ou se congelam, ao bel-prazer do que suas palavras dizem, com sarcasmo, mormente. Sorrisos, um levantar de longas taças, um vestido que gira dali para cá, e o filme se faz.

Estamos na Rússia czarista e o que esta nobreza discute em francês (um proprietário de terras e seus amigos influentes) é se faz sentido ter paz. E o que é a paz. E a quem serve um mundo pacificado. A deus? Quem ele é? Pode ser bom por natureza ou apenas um pregador da bondade, que não convence ninguém sobre o íntimo de suas intenções. A guerra deve ser glorificada ou a não-violência é divina? Por que não somos todos europeus? A Europa, este continente também reivindicado pelos russos, seria um objetivo de todos os seres. Seria deus. Ou a cultura. E todos discutem sobre se a ressurreição será a prova dos nove para a religião cristã.

É um filme que nada nos facilita, e em que as palavras são jogadas em tal velocidade que podemos perdê-las ocasionalmente e ainda assim estaremos diante do cerne. De um mundo que vai findar-se, mas que ainda será discutido hipnoticamente, para que todos se convençam de sua seriedade e eternidade. 

Alguém por favor apresente Cristi Puiu à reunião do ministério de Bolsonaro vazada por Moro. Nós também chegamos a imaginar que seria a última.

Fantasmas da liberdade: a gente filósofa do czar e seus serviçais de pé

Malmkrog

Dir. Cristi Puiu 

Romênia, Sérvia, Suíça, Suécia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia do Norte

200 min

2020

https://mostraplay.mostra.org/film/malmkrog/

Um mergulho nos oráculos da noite com Willem Dafoe

Na Mostra Internacional de Cinema, “Sibéria”, do cineasta Abel Ferrara, procura reproduzir as estruturas imagéticas do sonho, em uma busca do protagonista pelo autoconhecimento

Dafoe pelo deserto, conduzido pelos huskies: a Sibéria é um estado interior

Deve ser o paraíso para o estadunidense Abel Ferrara contar com a parceria fílmica de seu conterrâneo Willem Dafoe, um ator “sem idade”, robusto, profundo, e que para o cineasta, por exemplo, interpretou até mesmo Pasolini (em 2014). Dafoe tem no rosto uma máscara poderosa, flexível. Sua energia se impregna nela, assim como sua jovialidade. A ironia e o olhar investigativo tampouco escapam ao bom espectador.

É um ator ideal para situações da cinematografia independente, que abraça sempre com muito simpatia, talvez porque, ao atuar nesta espécie de filme aberto, tem o dom de reescrevê-lo. E não haveria outro exceto ele, possivelmente, a enfrentar este “Sibéria” de Ferrara sem deixá-lo resvalar no ridículo. O filme é uma viagem incandescente pela vida deste homem que ele interpreta, retirado à região gelada (numa Sibéria que não é real, mas um estado interior), depois de sofrer traumas e desejar esquecê-los.

Sem Dafoe, talvez fosse difícil entender essa procura íntima sem resvalar no ridículo

O protagonista interpretado por Dafoe recomeça do lugar mais distante possível. Clint trabalha em um bar com reluzente balcão de madeira por onde passam nativos indígenas, russos, gente falando outras línguas, enquanto ele se comunica em inglês. As russas são duas, e com uma delas, por exemplo, em condição surreal, Clint faz amor.

Um momento onírico, para representar a surrealidade das expectativas

Ele passeia pelos desertos com seu trenó movido por huskies siberianos, e os animais comentam as sequências muito bem, já que seus olhares têm expectativas. Cada segmento do roteiro mistura o tempo real da narrativa com as abstrações oníricas, nas quais Clint, por exemplo, fala consigo mesmo por meio de sua imagem projetada na água, em irônica remissão ao Duende Verde que Dafoe interpretou em Homem-Aranha.

Abel Ferrara, diretor de “Sibéria”

É como se aqueles que lhe ensinam sobre a vida, nessas conversas evocadas por sonhos, sejam miniaturas do Dersu Uzala de Kurosawa. Os diálogos que expõem religiosidades e filosofias são muito bons. 

– Eu não quero ganhar.

– Por quê?

– Eu não quero perder.

Ou:

– Respeite a presença do sono. Fuja de quem não dorme. Seja alegre durante o dia. Não entregue ao estômago o pão da aflição que lhe perturbará à noite.

As paisagens são espetaculares, brancos e vermelhos se alternam, e não há ordem definida para que o protagonista encontre, por meio da memória viva e palpável, o filho, a mãe, a ex-mulher, a grávida e principalmente o pai, morto sem que Clint o tivesse compreendido.

Um espaço “Duende Verde” para que Clint possa dialogar consigo mesmo

Talvez por sua narrativa errática, este filme se veja condenado a um público reduzido. Mas é muito interessante que por meio dele Abel Ferrara tenha tentado reproduzir as estruturas do sonho e da memória, o que significa bastante coisa. Este foi o interesse que revolucionou o pensamento ocidental no século 19, tornou-se tema de exploração pelo filósofo-escritor Henri Bergson e fez Marcel Proust promover uma revolução literária. 

Trata-se de uma intenção poderosa e de uma investigação muito interessante, portanto, sobre o formato de nosso inconsciente e sobre nossa constante remissão ao sonho, este que nos coloca no caminho do autoconhecimento. Aqui e ali “Sibéria” perde em movimento e congela o interesse de quem o observa, mas não é absolutamente um filme ruim.  

Dersu Uzala às avessas, à procura da sabedoria em lugar de ensiná-la

Sibéria (Siberia)

Dir. Abel Ferrara

Itália, Alemanha, México

2020

92 min 

https://mostraplay.mostra.org/film/siberia/

O mal, o bem e o curandeiro

A ficção de Agnieska Holland “O Charlatão”, presente na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, movimenta a linguagem do filmão hollywoodiano para mostrar uma essência humana

O curandeiro Jan Mikolásek (Ivan Trojan) e seu assistente Frantisek Palko (Juraj Loj): um desafio às imposições stalinistas contra a homossexualidade

Houve esse tempo em que um filmão de Hollywood ainda era possível, e vencia Oscar. Era uma espécie de obra que, embora expusesse fatos terríveis, abria com competência narrativa e bela fotografia uma possibilidade psicológica de futuro e esperança.

Eis que a célebre tcheca de 72 anos Agnieska Holland exerce essa linguagem tradicional em O Charlatão, indicado por seu país para concorrer ao Oscar de melhor obra estrangeira. E talvez este seu filme seja a contrafacção de muitos outros, a exemplo de “O Jogo da Imitação” (2014), do norueguês Morten Tyldum, em que se descreve como o matemático Alan Turing, apesar de ter quebrado as criptografias nazistas, acabou na sarjeta por ser homossexual, gênero interditado na Grã-Bretanha de então.

Agnieska Holland: sem se curvar à consolação psicológica

O mínimo que se pode dizer é que Agnieska não se curva à consolação psicológica ao fim, bastante precisa sobre a existência de maldade ou bondade nos homens. O charlatão aqui é um curandeiro que trata de pacientes ao observar o estado de sua urina. O herbalista, traumatizado pela participação como soldado na guerra, sobrevive, contudo, em alto estilo: com o tempo, a cura em massa lhe rende dinheiro e ele adquire uma grande casa onde vive e atende a uma fila constante de pacientes.

Apaixonado por seu assistente, que mora com ele apesar de casado com uma mulher, compra-lhe um automóvel fabricado nos Estados Unidos, isto quando a população já sentia os efeitos da escassez sob uma controladora administração comunista. E, sim, a homossexualidade também lhe pesa como um crime.

Um banco dos réus para a liberdade

O estilo de Agnieska opera por flashbacks constantes a nos esclarecer sobre a figura rígida e enigmática do curandeiro. Ele escapa dos interrogatórios porque a todos atende, e salvou da morte até nazistas e comunistas poderosos, que por isso sempre o liberaram de constrangimentos. O filme é feito de planos médios, predominantemente escuro. Volta-se aos interiores onde a luz principal mimetiza a da janela, por onde o curandeiro analisa a urina. Nas situações românticas ou positivas dentro do filme, abre-se o sol, e o vento movimenta o trigal.

Sem a surpresa ao fim, não se entende este filme sobre um complô. Esta cineasta sorridente assimila procedimentos humorísticos que incluem surpresa e deslocamento. Seu filme não acaba com um estouro, como “Parente é Serpente”, de Mario Monicelli, mas com um pequeno gesto de carinho.

O curandeiro, seu assistente e a urina observada na fresta de luz

O Charlatão (Charlatan)

Dir. Agnieska Holland

República Tcheca, Irlanda, Eslováquia, Polônia

1h58min

2020

https://mostraplay.mostra.org/film/o-charlatao/

Chineses, reclamar por quê?

O artista plástico Ai Weiwei precisa voltar ao Brasil urgentemente para compreender por que seu filme sobre a pandemia nos parece estranho em muitos momentos. A China errou, e muito, ao ignorar o potencial do vírus no início, mas nunca esteve nos planos do governo matar deliberadamente seus cidadãos contaminados

Nos hospitais, os incansáveis procedimentos de urgência

De 1 de dezembro do ano passado, quando o primeiro caso foi detectado, até o estabelecimento do lockdown na China, em 23 de janeiro de 2020, um grande silêncio foi imposto aos habitantes do país sobre o potencial letal da Covid-19. Este parece ser um dos lamentos centrais do artista plástico Ai Weiwei, que dirigiu remotamente o documentário “Coronation”, exibido até o dia 5 de novembro durante a 44 Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ao organizar imagens aéreas e terrenas de Wuhan, a cidade por onde a contaminação primeiro e rapidamente se espraiou.

A polícia controla os papeis de quem se dirige à cidade que é foco de contaminação



Médicos, enfermeiros, trabalhadores de construção, doentes e seus familiares foram registrados por meio de câmeras e celulares particulares para que ocorrências relacionadas ao estouro da pandemia se vissem exibidas em ritmo cinematográfico, de modo a “coroar” os verdadeiros responsáveis pelos erros que resultaram na contaminação acelerada e transformaram a China, inicialmente, na nação do coronavírus, esta a que o diretor alude ironicamente no título do filme como “coronation”.

Para Weiwei, que reflete enquanto expõe, errado é um sistema político que prende seus habitantes à burocracia controladora de suas vidas, ignorando dores e necessidades particulares, como aquelas envolvidas na luta pela sobrevivência dos doentes. Parentes que não podem dispor facilmente das cinzas de seus mortos, por razões não esclarecidas, e que acabam por queimar seus restos em plena rua, nas sequências finais do filme, são expostos em sua impotência diante da morte evitável. Há humor quando uma idosa servidora do partido reflete sobre a grandeza da união em prol do bem comum no país: ela saberá que a cúpula chinesa mente aos seus cidadãos?

A idosa servidora do partido e seu filho, em uma sequência com elementos de humor:
ela sabe que a cúpula chinesa omite informações a seus cidadãos?

O brasileiro que vê este filme deve se preparar para o sofrimento dobrado. Toda a lamentação chinesa lhe parecerá estranha, desde aquela dos pacientes curados, a quem foi imposto o confinamento sem diagnóstico contundente final. Por que reclamar, se se salvaram?

A vestimenta sem erro e a rigorosa esterilização dos funcionários nos hospitais

Depois de um grande tropeço de avaliação inicial, nada parece errado no que a China faz para curar seu povo e impedir que a contaminação ande além. Todos os que partem de locais contaminados ou a ele se dirigem são rigorosamente inspecionados. Há medidores de temperatura nos locais públicos, incluindo transportes. Depois de certa altura, se sair à rua sem cuidados, e quando não recomendado, um chinês será obrigado a pagar pelo tratamento, que durante a pandemia foi gratuito. Nenhum médico está sozinho na hora de se higienizar: dentro dos hospitais, uma câmera rastreia seus procedimentos e alguém, ao observar a cena por monitores, avisa ao profissional se não limpou direito seus sapatos.

Drones medem a amplitude de um país continental

Não é um filme sobre particularidades, antes sobre contextos. Weiwei preza a observação extensa, continuada, incansável e irônica de seus personagens em linha de montagem, que podem, por exemplo, estar sujeitos a um juramento de fidelidade ao Partido Comunista quando isto nem de longe seria o esperado em pleno estouro de uma crise sanitária.

Ai Weiwei: em “Coronation”, os olhos abertos para as grandes dimensões

Vivenciamos as dimensões continentais do país no seu cotidiano. Um médico anda por vários minutos por entre labirínticos corredores até alcançar seu local de trabalho num hospital em que tudo, desde a vestimenta de proteção, funciona a contento e com cuidado. Câmeras em drones demonstram a imensa malha de trilhos e estradas que fazem daquele um vasto território acordado para o mundo em todas as horas da noite e do dia.


Por que reclamar da China, se somos brasileiros nas mãos de genocidas?

Weiwei, volte ao Brasil, e rápido.

O fechamento de uma urna funerária diante dos parentes dos mortos, que ficam de costas

Coronation (Coronation)

Dir. Ai Weiwei

China

115 min

2020

https://44.mostra.org/filmes/coronation

Eleanor Marx, a saga e o rock

No longa em exibição na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a filha mais nova do pensador alemão tem a trágica trajetória narrada pela cineasta italiana Susanna Nicchiarelli

Romola Garai interpreta Eleanor, filha caçula de Marx e socialista dedicada à obra do pai

Antes de sua morte em 1883, aos 65 anos, Karl Marx assistiu ao perecer de cinco de seus familiares mais íntimos, quatro filhos e a mulher Jenny. Foi um marido apaixonado e um pai tão bom para todos que, enquanto se concentrava para a escrita de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, por vezes interrompeu o trabalho e se atrelou, como um cavalo, a uma fila de cadeiras de pés quebrados. Atrás dele, os filhos usavam sobre suas costas um chicote imaginário, e assim ele fazia a carruagem andar.

Patrick Kennedy vive Edward Aveling, militante marxista que significou a ruína para Eleanor

Eleanor, a Tussy, era a filha mais nova a puxar pelo pai. Estudiosa de sua obra, ela inicialmente, como a irmã Jennychen, desejou os palcos, mas o pai a proibiu de ser atriz. Suas filhas, preocupava-se Marx, deveriam casar-se bem para evitar a miséria e a exclusão social. Ainda assim, elas prosseguiram a pensar, traduzir e ler. Nascida na Inglaterra, Eleanora formulou parâmetros para a ação libertária feminina dentro da Liga Socialista. Mas, no meio disso, uniu-se ao eminente militante marxista britânico Edward Aveling, um mulherengo e perdulário que foi sua ruína. Suicidou-se aos 43 anos, da mesma forma que a irmã Laura, morta junto ao marido Paul Lafargue.

Eleanor em foto de 1871, aos 16 anos
A eletrizante biografia da família Marx, aqui publicada em 2013


MISS MARX, longa-metragem da italiana Susana Nicchiarelli, parece sabedor das informações apontadas neste texto, muitas delas organizadas na eletrizante biografia familiar “Amor e Capital”, de Mary Gabriel (Zahar, 2013). Mas as utiliza displicentemente, como se falasse apenas aos marxistas sabedores dos bastidores históricos. O filme sofre de mimetizar a ousadia de Sofia Coppola, que um dia transformou Maria Antonieta em uma figura hollywoodiana sobre os tênis do presente.

Susanna Nicchiarelli, a diretora de Miss Marx

Eis que Nicchiarelli se sente livre, depois de Sofia, para afogar o desespero de Eleanora no bom punk do Downtown Boys. Seu filme tem uma fotografia de qualidade, como se ela trouxesse a nossos corpos a umidade londrina, a se espalhar por tecidos, casacos e tapetes entre o verde e o vermelho. De resto, contudo, MISS MARX é uma oportunidade perdida.

Um punk dos Downtown Boys para a triste Eleanor desabafar

Miss Marx (Miss Marx)

Dir.: Susanna Nicchiarelli

Itália, Bélgica

2020

107 min

https://mostraplay.mostra.org/search.html?q=miss+marx

Chechênia, onde matar gays virou obrigação de família

Filme de David France na Mostra Internacional em São Paulo retrata uma dor em andamento. Na república ao sul da Rússia, os homossexuais são reprimidos sem que nada seja feito para impedir a ação policial fora de ordem

Maxim Lapunov e o namorado Bogdan: fuga e afirmação

Welcome to Chechnya é o retrato de uma grande dor em andamento. Na Chechênia, república ao sul da Rússia liderada por um certo Ramsan Kadyrov, fantoche barba-ruiva de Vladimir Putin, os gays são localizados pela polícia, espancados, presos, torturados e mortos sem que nada seja feito para reprimir uma autoridade francamente fora de ordem e vil. 

O líder Ramsan Kadyrov, que com a ajuda de Putin fecha os olhos ao massacre de jovens

Mais. Embora se trate de um país laico, uma maioria populacional muçulmana tem ditado as regras de existência. Quase certamente, ao receber em casa os torturados, as famílias terminarão o serviço iniciado por esses policiais, a seu conselho. Simplesmente matarão os parentes homossexuais feridos – e o filme chega a mostrar uma câmera de rua no momento em que alguém joga uma grande pedra sobre o corpo tirado de um camburão.

O ativista David Isteev, que coordena as fugas dos perseguidos a Moscou

Contudo, não foi sempre assim, conforme diz o ativista David Isteev, coordenador responsável por Crises na organização Rede LGBT Russa. Isteev recebe as ligações de jovens em desespero e encaminha sua fuga para um abrigo em Moscou, até que os refugiados encontrem passaporte para viver em outros países associados à organização não-governamental, como Bélgica ou Canadá. (Foram 151 os repatriados em dois anos de atividade da organização, enquanto nem Rússia nem os Estados Unidos de Trump aceitam acolher chechenos homossexuais).

No abrigo em Moscou, a espera constante por asilo

O trabalho de Isteev, assim como o de Olga Baranova, diretora do centro comunitário para Iniciativas LGBT em Moscou, fez-se necessário ou imprescindível desde que, em março de 2017, uma batida da polícia chechena localizou drogas com dois contraventores. No celular de um deles, os policiais encontraram mensagens e fotos de sexo explícito gay. Os traficantes foram torturados para que delatassem mais dez de seus colegas homossexuais. E, a partir da coerção à delação, que se transformou em hábito no país, o número de perseguidos, torturados e mortos aumentou exponencialmente.

Gisha, pseudônimo de Maxim Lapunov, torna-se protagonista do filme. De início, o diretor lhe aplica um recurso adotado para todos os personagens sob risco: altera digitalmente seu rosto. Gisha nem checheno é. Foi à região para trabalhar, mas, detectado como gay, viu-se preso por um ano numa cadeia onde a tortura era rotineira. Solto e de volta a sua Rússia, prosseguiu caçado e as ameaças se estenderam a sua família – mãe, irmã e sobrinhos que se recusaram a patrocinar sua eliminação. Eles vão penar para encontrar lugar. “Sabe do que fugimos?”, considera sua mãe. “Não de um país, mas de um povo que, ao ganhar poder, começa a abusar dele.”

Mulheres homossexuais como Anya estão sujeitas à violência constante

Mais do que Gisha, o filme materializa a dificuldade em amparar as mulheres homossexuais. Elas vivem já cerceadas, escondidas em casa. Detectada sua sexualidade, sofrem torturas e abusos violentos. Foi o que aconteceu com Anya, uma jovem rica de 17 anos chantageada pelo tio: ou transava com ele ou ele a delataria ao pai, que certamente decidiria matá-la. Isteev a acolhe depois de uma complicada operação para enganar sua família, mas as coisas não correrão como imaginadas em prol de sua libertação.

Um filme sem fotografia especial, com o fôlego, a apreensão e o coração de uma transmissão televisiva. Um filme a pedir ajuda, desesperadamente.

Welcome to Chechnya (Welcome To Chechnya)

Dir.: David France

EUA, 2020

107 min

https://mostraplay.mostra.org/film/welcome-to-chechnya/

Uma resposta mexicana para os bacuraus

Nova Ordem”, em cartaz até a meia-noite de hoje na Mostra Internacional,
é o avesso dessas fantasias revolucionárias que inundaram o cinema recente. Nele, um enxame de realidade adentra em nós. Uma velha ordem, crudelíssima, se vê reimposta diante de nossos corações aos pulos

No centro da ação, a coisificação do sequestro

Acompanhe esta receita cinematográfica.

Imagine Bacurau concebido por Francesco Rosi ou Costa-Gavras nos anos 1970, com seu perfeito timing para multidões, acrescido de toques do terror giallo de Sergio Corbucci, mas sem o humor ou o cinismo do Reality Z de Claudio Torres na netflix.

Imagine mais. Um filme sempre sério, sem investigação psicológica e com fotografia sólida, um belo contraste de cores primárias.

Você estará perto de entender Nova Ordem, de Michel Franco, diretor de 41 anos que apareceu para o público da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo em 2015, com o ótimo e amargo Chronic.

Para inserir a Louis Vuitton no caos selvagem

Tudo neste seu novo longa-metragem é violento, frio e verdadeiro, como infelizmente o mundo em que vivemos. Ainda assim, algo nos escapa no filme. A rapidez com que a realidade se desfigura na trama, talvez. Os olhos permanentes do caos. Os sinais da cruz risonhos antes de um roubo de joias ou de um fuzilamento.

Uma doméstica, um sinal da cruz, um roubo, um sorriso

É uma ficção científico-política que responde com furor frio a qualquer arrefecimento da percepção de desigualdade na América Latina e também a qualquer ilusão de fortaleza entre os vencidos, em contramão direta ao que o brasileiro Kleber Mendonça concebeu com seu sucesso de crítica, de público e de tapete vermelho.

Nova Ordem é o avesso disso tudo. Um enxame de realidade adentra em nós. Uma velha ordem, crudelíssima, se vê reimposta diante de nossos corações aos pulos.

Na festa de casamento, o regabofe do trigal loiro

O filme desenvolve-se durante uma festa de casamento em Pedregal, bairro assemelhado ao Jardim Europa das mansões paulistanas, na capital do México. E, com todas as armas do suspense e do terror, muito bem ritmadas dentro do filme, vamos conhecendo o trigal loiro dos burgueses arrogantes que celebram enquanto se anuncia o submundo sem trégua dos oprimidos de origem indígena que lhes servem. São universos incomunicáveis, que se tocam pela má educação e pelas más palavras.

Verde é a cor das pixações dos manifestantes. Verde serve para marcar um território e isolar os burgueses, coisificando-os como mercadorias em um rentável jogo de sequestro. De verde serão manchados igualmente os oprimidos. Verdes são oliveiras, mas também exércitos. 

Um novo tom preponderante para os bens da arte

Quanto sangue você tem? Quanto sangue você vale?

Isto nunca se saberá ao certo nesta obra que exemplifica magistralmente como tudo muda, nos sistemas da desigualdade, para que tudo permaneça como está.

Um mundo fechado para nós que somos ricos

Nova Ordem (Nuevo Orden)
Dir. Michel Franco

México, França

88 min

2020

https://mostraplay.mostra.org/film/nova-ordem/

 da 0h01 às 23h59 do dia 23 de outubro