Não tenho religião. Mas tenho um anjo da guarda. Anjo Torto. Dou bastante trabalho pra ele desde sempre. Nestes meus dias de inferno astral, então, nem sei como o querido tem sido capaz de me suportar.
Sou desligada e preocupada ao mesmo tempo. Quero rir depois de chorar. Porto sacolas, mas preciso ser leve. Quero sair para cumprir meu dia enquanto fotografo a rua. Ou será o contrário?
Fotografia de rua me faz feliz. Me descubro e me reflito com a câmera do celular à mão. Tá, o Sebastião Salgado que vocês adoram dizia que celular não faz fotografia, nem fotografia vive da cor. Não ligo pra seu Salgado, nunca liguei, o que me torna uma extraterrestre ainda maior dentro do meu campo político de esquerda. Mas prefiro não me estender em assunto polêmico que, no fundo, nem me interessa.
Ninguém (ou quase) posa pra mim. Do fundo do coração, preciso revelar o escondido. Caço imagens à moda do que o Flávio Damm me ensinou, silenciosa como um gato ao me aproximar, rápida como um rato ao fugir, com a intenção de, ao fotografar, devolver ao mundo um pouquinho da beleza que vi, do erro que constatei, do humor de que desfrutei, da surpresa. Às vezes tenho sorte, às vezes não.
Hoje saí pra hidroginástica, no centro da cidade, com celular à mão. Na ida fotografei e na volta também. Tive sorte?
No retorno, comprei produtos orgânicos no instituto Feira Livre e fui à farmácia à procura de um remédio difícil de achar (semana passada quase morri de dor no ouvido direito, era infecção e fungo, eu estava bem lesada; hoje fui correndo à dermatologista porque uma pequena mancha áspera aparecera nas costas; a velhice não deixa ninguém em paz). Depois de não achar o remédio em duas farmácias, decidi colocar o fone de ouvido para ouvir o spotify, mas qual o quê? O celular não estava mais comigo, não.
Gelei porque não posso pagar um aparelho novo no momento, nem devo, o que mais me faltava? Não consigo viver bem sem ele, contudo. Voltei ao mercado à procura do objeto, quase certa de encontrá-lo, mas nada; nas farmácias, a chance ficou menor ainda. Corri para casa de modo a tentar fazer um tracking no bichinho, só pensando: vou perder aquela foto X! A Y terá ficado escura demais? Vivo com celular o tempo todo por causa do vicio fotográfico, melhor que gim e drogas, e quase não tenho outra razão para carregar o telefone – exceto escrever.
Fiquei triste, mas brava também. O que o Anjo tinha a dizer? O quê, seu Torto duma figa? Há dois anos, Anjo aparecera na minha vida depois de salvar meu celular. O bichinho havia caído diante da estação Sumaré do metrô. Foi resgatado por um jovem que atendeu minha ligação. Mais. Mês passado, um amigo da vizinhança achou meu RG no chão, me procurou no Facebook e gentilmente me entregou o documento em casa. Por que só agora fiquei na mão, Anjo?
Eis que adentro o saguão do prédio onde moro e o porteiro me recebe como se diante de uma equação matemática, coçando a cabeça.
– Dona Rosane!
Olho para a mesa de madeira escura da portaria e grito:
– Meu celular, João!
Estava ele ali, com um bilhete ao lado, no qual se lia: “Fábio, da Vivo, telefone tal”.
– Então, que coisa! Ele achou seu celular caído na rua, não conseguiu abrir porque a senhora bloqueou a tela. Daí – o cara é da Vivo, né? – ele foi até a patrulha da Polícia Militar na avenida Ipiranga, que destravou o aparelho. Ali eles acharam o telefone do seu marido, ligaram e o moço da Vivo veio entregar pra senhora!
Anjo, mil desculpas. Anjo amado. Anjo de mon petit coeur!
Resumindo a história, virei atração no prédio. Contei a história pros coletores do lixo e eles ficaram parados diante de mim por muitos segundos, sorrindo de cabo a rabo. O zelador ligou pro meu marido, orgulhoso de um policial ter aparecido à porta junto com um moço (da Vivo!) trazendo um celular pra sua senhora. O porteiro da tarde, já informado, acredita que sou boa na vida, ou o Anjo não me ajudaria. O vigia do condomínio veio me ver de perto.
Sim, sou boa na vida, Junelson! Só posso ser. Embora isso não mude nada no mundo mau, meu Anjo Torto vai fazer bonito.
Agora, que história é essa de a PM abrir o celular da gente na hora que quiser?


