Tenho mais livros que os possa ler. E não conto isso para as mentalidades marie kondo, para quem livros, como roupas, devemos acumulá-los ao mínimo denominador de uso. Entendo e respeito que sua experiência com os livros seja diferente da minha.
Eu não uso livros desse modo. Eles não se esgotam, para mim, como um quimono ou um sapato. Exceto, é claro, se suas costuras forem frágeis.
No tempo em que fiz pós, meu hábito de juntar livros permitiu a conclusão de capítulos, visto que eu trabalhava e cuidava dos filhos enquanto estudava, portanto sem tempo para bibliotecas.
Até hoje, ser afortunada a ponto de dispor de mais livros que os possa ler me abriu possibilidades para temporadas ruins, como esta, pandêmica. Nesses momentos, é só percorrer as estantes para redescobrir um gosto guardado, interrompido, e se ocupar das iluminações.
Sei que em razão disso as minhas serão, no mais das vezes, leituras novas-antigas, visto que não estarei atrás do que emerge no momento. Por mais que meus amigos se entusiasmem com as novidades literárias, não sei compará-las, sem prejudicá-las, com a visão do passado.
Qual foi o último novo livro ficcional brasileiro que me fisgou pelo sabor? Melhor nem dizer. Leio os primeiros capítulos e não me entusiasmo. Por certo estou ultrapassada em informações, por certo preciso ler mais e mais.
No entanto, acompanho com ânimo novas pesquisas históricas. Os livros sobre a aventura intelectual me proporcionam o prazer da descoberta que não encontrei nos ficcionais.
É tudo uma questão de limitação pessoal. Se eu fosse um Borges, nem precisaria de biblioteca em casa, pois a teria toda em minha cabeça.
Uma vez o escritor argentino se declarou insultado com a observação de Vargas-Llosa, que, ao visitá-lo em Buenos Aires, anotou com surpresa (ou terá sido superioridade) o número limitado de livros nas estantes. Como se acúmulo de publicações significasse saber! Adoro recordar isso porque conheci de perto a figura pequena que Vargas Llosa é.
A meu modo sou pequena também, razão pela qual minha biblioteca é razoavelmente grande, capaz de deter em parte os pesadelos que vivo no presente.
Morar no centro tem sido minha alegria neste ano que já se vai.
Aliás, ele se vai, mas não desejemos que parta tão já.
Vamos curtir o que resta deste ano, porque como me disse um músico ontem, o Marcos Mauricio, tudo vai piorar no ano que vem.
Então vamos curtir o sol e as árvores…
E antes que você me pergunte: há miséria onde vivo, sim.
Mas a cidade inteira tem sua porção.
São Paulo se enche dela.
Me interessa a luz do centro.
Gosto de me centrar.
Às vezes me parece que, neste lugar onde reside o caos calmo dos meus afetos, volto à infância.
Um comportamento… um jeito de falar que é só daqui e que é pra mim…
E os prédios da Light e do Mappin que ainda estão lá, além de todos os caminhos que levam à Sé, à Liberdade, à Mário de Andrade!
A linda biblioteca para onde, criança, eu ia ler e estudar, já que não tínhamos muitos livros em casa, exceto os maravilhosos de arte de meu pai e duas enciclopédias: a portuguesa Verbo (seis volumes bem fininhos) e a Tecnirama, em fascículos.
Creio que fosse pouca coisa pra minha curiosidade em relação ao mundo, que nessa época me atordoava em demasia.
Sempre morei no meu passado com muito carinho.
Mentalmente.
E agora fisicamente também.
Pois sexta-feira ia naquele caminho bem andado quando o garoto de 15 anos da foto se aproximou de mim em cima de sua bike.
Me perguntou se eu sabia onde vendia brinquedo.
Fiquei meio confusa. Não achei que nada ruim partisse dele. Mas falava portunhol, eu não compreendia bem.
Queria comprar brinquedo, mas não de criança.
Não brinquedo de brincar.
Bonecos, assim.
Disse a ele que havia lojas especializadas nesse setor em duas galerias.
Ele não as conhecia.
Perguntei se queria que eu o levasse até lá, já que estavam próximas de meu destino.
Quis.
Então lhe perguntei de que tipo de bonecos gostava.
“Não são pra mim.”
“São pra sua namorada?”
“Ainda não. Não é minha namorada.” Riu. É só sorrisos.
“Ah, então é pra conquistar…
“Não sei se vou conseguir. Mas já fiz o desenho dela olhando a foto do WhatsApp.”
“Você é desenhista?”
“Sou.”
“Que bacana. Mas, olha, os brinquedos às vezes não são baratos.”
“Meus pais compram pra mim se eu for bem na escola.”
“Em que série você está?”
“Primeira do Ensino Médio.”
“E passou de ano?”
“Ainda não sei” (um riso grande). “Vou ver uma nota na segunda.”
“E de onde você é?”
“Como assim?”
“Onde nasceu?”
“Venezuela.”
“Que legal! Conheço um venezuelano que faz um documentário sobre os compatriotas no Brasil. Foi até Rio Branco.”
“Eu também.”
“Você veio de lá?”
“Não, eu moro na Rio Branco.”
“A avenida! Entendi. Você veio pro Brasil com sua família?”
“Primeiro vieram meu pai e meu tio. Depois vim com minha mãe.”
“Você gosta daqui ou pensa em voltar?”
“Penso em voltar.”
“Lá está ruim, né?”
“É aquele presidente.”
“Sim, imagino. E o que vocês achavam do Chavez?”
“Bom. Muito bom. Com ele não tinha ninguém morando na rua, hoje tem. Ninguém passava fome, hoje passa. Ele protegeu as áreas dos índios. Não quis saber dos Estados Unidos. E ele falava três línguas, sabe?”
“Não sabia. Quais? Espanhol…”
Mais um riso longo.
“Lá não falamos espanhol. É castelhano.”
“Claro!” (rio de volta). “E que outras línguas?”
“Guarau.”
“Língua indígena?”
“Sim.”
“E a terceira?”
“Não sei.”
“Que bom que Chavez era bom. Aqui falam mal dele, é incrível.”
“Também falam mal de Lula, não? As pessoas são muito ignorantes.”
“Pode ter certeza! Olha, chegamos na galeria.”
“Eu não posso entrar com a bicicleta, só vim ver onde comprar. Depois volto. Obrigado.”
“Como você se chama?”
“Elker.”
“Legal te conhecer, Elker. Sou Rosane. Posso te fotografar?”
Oito meses antes de morrer, o dramaturgo editou na Alemanha Oriental imagens da guerra anteriormente publicadas por revistas como a “Life”, acrescidas por seus poemas-legendas
“Esta coisa dominou o mundo uma vez. Seus conquistados o superaram. Contudo, desejo que vocês não gritem de alegria por tal razão; o útero do qual isto rastejou permanece fértil.”
A faixa estendida neste 24 de abril de 2019 na praça Loreto, exato local de Milão onde o corpo de Benito Mussolini se viu exposto de cabeça para baixo, há 74 anos, renova os alertas à ameaça fascista. Na faixa, leem-se a frase “Honra a Benito Mussolini” e a assinatura “Irr”, abreviação de “Irriducibili”, nome da principal torcida organizada do time de futebol Lazio.
O último 20 de abril marcou também o aniversário de Adolf Hitler, nascido há 130 anos. E talvez, com seus atos, os torcedores fascistas do time mantivessem implícita uma vibrante comemoração às ideias do ditador, duvidoso “irmão” do Duce.
De qualquer maneira, na praça Loreto, neste 24 de abril que antecede em um dia a comemoração da libertação da Itália na Segunda Guerra, os fascistas usaram a saudação romana, simbólica do regime de Mussolini, para manifestar sua torcida pelo time, que hoje joga contra o Milão pelas semifinais da Copa da Itália.
O dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956) cansou-se de alertar sobre o perigo fascista, que atos como esse apenas demonstram ser permanente. Ele deixou sua Alemanha em 1933, ano em que o chanceler Hitler foi eleito, rumo à Dinamarca, à Suécia e depois à Califórnia, por conta da perseguição a suas ideias marxistas e a seu teatro libertador (e nos Estados Unidos se viu caçado pelos macartistas; mais tarde narro a vocês aqui no blog um episódio que ilustra a perseguição).
Brecht era também um apaixonado pela fotografia. Desde os anos 1920 compilava em grandes cadernos de esboço as imagens publicadas por revistas como a Life sobre a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial. Após o conflito, e vencendo a censura, o dramaturgo fez publicar em 1955, por meio de uma editora satírica da Alemanha Oriental, a Eulenspiegel, uma coletânea de 85 dessas imagens, intitulada “Krigsfiebel” (bíblia ou guia da guerra). As fotos exibidas pelo volume, editado em dezembro de 1955, oito meses antes de sua morte por ataque cardíaco, mostravam líderes nazistas e aliados, a destruição urbana causada pela guerra, os civis desolados e os inimigos mortos.
Contudo, ele acreditava que as imagens, embora potentes, não exprimiam sozinhas realidades complexas. Eis por que decidira acompanhá-las de “fotogramas”, como as intitulava, com uma densa, às vezes irônica, legenda em quatro versos. Como fazia em suas peças, coordenava então imagens e palavras de modo a provocar o leitor a pensar criticamente e a questionar seu conhecimento limitado sobre o fascismo e o capitalismo.
Quando as vendas do livro decaíram, Brecht o ofereceu a bibliotecas e outras instituições, sob a alegação de que a “louca supressão de todos os fatos e julgamentos sobre os anos de Hitler e a guerra” deveria ter um fim. Ele planejava acompanhar o livro de um outro volume, “Friedensfibel” (guia ou bíblia da paz), mas tal obra ficou inacabada.
A foto que publicamos aqui, retirada de seu livro-álbum e de autor ignorado, mostra Hitler em um pronunciamento de 1934. Na edição estadunidense, cujo título é “War Primer”, e que ganhou republicação em 2017, lê-se a legenda com o nome do ditador alemão e sua data de nascimento: “Hitler: 20 de abril de 1889”. Embaixo da foto, segue um fotograma em quatro versos, cuja tradução aproximada é esta, retirada do livro “Literature and Photography”, organizado por Jane M. Rabb e publicado em 1995 pela University of New Mexico Press:
“Esta coisa dominou o mundo uma vez.
Seus conquistados o superaram.
Contudo, desejo que vocês não gritem de alegria por tal razão;
Em 1994, entrevistei o fotógrafo David Drew Zingg para as páginas vermelhas da revista IstoÉ. (leia o pdf David Drew Zingg (1).)
À época, não somente um dos grandes fotógrafos a atuar no Brasil, ele se tornava colunista de um grande jornal, depois de haver contribuído para ajustar a fotografia do diário “Notícias Populares”, de que gostava bem mais.
Drew Zingg, então integrante da banda Joelho de Porco, era o velho anarquista preferido por todos nós. Não sei se por todos nós da redação, na verdade. Provavelmente não por eles… Mas por mim, certamente. E por meus poucos-grandes-geniais-amigos de combate.
Contudo, quando o entrevistei em uma tarde de verão daquele ano tão distante, ele não se parecia de modo algum com um anarquista.
Conversava comigo apenas nos intervalos de uma longa sessão de entrevistas a candidatos a uma vaga na revista que dirigia. Seus papéis e recortes iam empilhados em ordem sobre a mesa limpa. Quem esperaria por isso? Talvez os fortes. E talvez eu fosse forte, sem saber.
Cheio de interdições, ranzinza, ele me recebia na sua pequena sala de trabalho a cada quinze minutos e interrompia a nossa conversa sempre que um novo candidato ao emprego aparecia.
Eu estava por lá mesmo. E decidira furar seu bloqueio de maneira simples. Rindo sem parar do que ele me dizia. Queria fazer florescer a comédia que ainda acreditava habitar nele. Me tornei seu público.
Com o tempo, a entrevista se tornou hilária e franca. E ele ainda me deu a dica de uma câmera fotográfica portátil, a Olympus Stylus, então sua preferida, que me acompanharia por muitos anos.
Publicada a entrevista, Zingg ligou ao então secretário de Redação da IstoÉ, Hélio Campos Mello, para agradecer a matéria e a louca jornalista que haviam enviado para lhe entrevistar. Em seguida, ligou pra mim.
Fui atender na mesa do chefe, trêmula.
“David, você entendeu o título que eu dei à entrevista, não?” – perguntei, sorridente.
E ele, para meu alívio:
“Claro que entendi, Rosane. Very smart…”
(E ainda me lembro de ter minha gargalhada retribuída.)
Em 1995, subeditora do Caderno de Sábado do Jornal da Tarde, eu me colocava a difícil tarefa de entrevistar Tzvetan Todorov. Ele participava de um desses encontros de pensadores com o público, fenômeno inicial naquela década paulistana. Eu suspeitava que me ofereciam a entrevista exclusiva apenas porque ninguém mais desejava fazê-la. Sempre trabalhei em meios de comunicação de público relativamente pequeno, para os quais os organizadores de eventos culturais e as editoras davam uma importância secundária. E nunca me foi fácil ou imediata a chance de estar com os grandes de pensamento. Todorov talvez fosse entendido como um número dois pela imprensa, candidato, portanto, a habitar minhas margens…
Ao contrário dos palestrantes dos cafés atuais, ele não era um divulgador de filosofias. Era a própria filosofia, sustentada pela história. E eu temia pelas dificuldades de entendimento entre nós. Nem todos os seus livros, como A Conquista da América, seriam aceitos com facilidade pelo leitor médio, meu público naquele caderno cultural. E se ele não quisesse tergiversar sobre as coisas terrenas, até triviais, essas que ajudam a temperar as conversas jornalísticas? E se ignorasse por completo o Brasil?
Medos infundados. Os grandes, em geral, teimam em ser humanos… Não só jamais ignorara este país, como aqui estivera durante a ditadura, observando com humor certas ignorâncias da censura no poder. Tinha, por nós, uma inusitada consideração. “No Brasil, a mentalidade tropicalista, do tipo descuidada, restringiu o controle dos governos”, disse, com delicada ironia. Conversamos por quase três horas no saguão do hotel onde se hospedara, o Caesar Park da rua Augusta, fechado em 2006. Falamos sobre muitos assuntos, entre eles a guerra originada por extremos nacionalismos e a impossibilidade de união entre nações e povos tão próximos.
Enquanto conversávamos, ele era fotografado por Monica Zarattini entre os livros (sim, livros eram então atrações para turistas) presentes no lobby. Todorov aproveitou para folhear os volumes de arte. Parou em uma encadernação que exibia a obra dos holandeses do século XVII. Fascinava-o A Lição de Música, de Gerard Terborch. “Não há inocência nos quadros desse período”, ressaltou. A posição das mãos, a quase antever uma carícia, e a inclinação do professor diante de sua aluna absorta no instrumento sinalizariam as intenções escondidas. A cada quadro, suas observações serenas e sorridentes ampliavam as possibilidades interpretativas de determinado pintor. Um testemunho do prazer no livre-pensar. Uma das melhores, despretensiosas e instigantes conversas que tive com um intelectual em minha carreira de jornalista.
Quando Todorov morreu, em fevereiro deste ano, busquei por esta entrevista no Google. Claro, não a encontrei. Sou a senhora dos veículos pequenos, desprestigiados, até extintos… Mas, durante o fim de semana, fui presenteada com este xerox por meu marido. Ele guardara organizadamente muitos trabalhos do meu passado, que oferecerei aos poucos dentro do blog.
Eis por que, agora, posso mostrar este Tzvetan Todorov com sabor de inédito a vocês.
Por Rosane Pavam
(A imagem em destaque, publicada pela Wikipedia, foi realizada durante palestra do pensador em Estrasburgo, em 2011.)
Um clássico de Robert Paxton procura distingui-lo de outros totalitarismos e, entre tantos aspectos, aponta a negligência administrativa de Hitler. Quão fascista será o governo brasileiro atual?
Hitler fala baixo com o comandante Mannerheim (dir.) em vagão de trem na Finlândia. A conversa foi gravada sem seu consentimento em 1942. Sua voz, longe dos discursos, é grave e pausada. O historiador Hans Mommsen o considerava um “ditador fraco”.
Nesta semana, circulou por meu facebook um link em que é possível ouvir a voz de Adolf Hitler proferida numa situação particular. Feita a sua revelia no vagão de um trem, em 1942, por um técnico de emissora de rádio da Finlândia, país onde o ditador se encontrava secretamente, a gravação foi interrompida tão logo a SS se deu conta de que era realizada. Possivelmente de modo a evitar hostilidade em relação ao país que desejava aliado, Hitler não exigiu sua destruição, apenas que fosse recolhida. Isto porque o ditador jamais deixava sua voz ser transmitida em situações caseiras, especialmente sem que, para isso, houvesse um ensaio anterior. A gravação, de onze minutos, voltou para a emissora finlandesa apenas em 1957.
Trata-se do único registro conhecido em que Hitler fala baixo, desinteressado de atiçar a multidão. Durante esta conversa com o então comandante militar Carl Gustaf Emil Mannerheim, posteriormente presidente finlandês, Hitler mais falou do que ouviu. Ele precisava convencer seu interlocutor de que estava certo. E aparentemente desejava demonstrar que a Finlândia tinha toda a razão ao se voltar contra a União Soviética mais uma vez, depois de tê-la enfrentado em um avanço sobre seu território entre 1939 e 1940. Hitler admitia a Mannerheim ter errado o cálculo sobre o poderio militar de Stalin. Sentia-se inconformado com o fato de a URSS fabricar tanques em quantidade e velocidade inimagináveis, enquanto os habitantes soviéticos, fazia questão de ressaltar, viviam um cotidiano precário.
Hitler não somente fala baixo e pausadamente durante a gravação (sua voz, ao contrário do que se poderia imaginar, não era aguda). Parecia ponderar com equilíbrio a situação negativa. E aparentava um conhecimento de causa, a enumerar estratégias militares e a explicitar motivos para suas decisões que, ao fim, resultaram em fracasso. A gravação não deixa de ser insidiosa, contudo, a desejar a adesão de seu interlocutor, que na fita, aliás, surge mais exaltado que o próprio Hitler. Admitir um erro de cálculo colocava o nazista em frágil situação confessional, mas também apontava para a cooperação entre os países (não explicitada, contudo, durante a gravação). Hitler se vitimizava, desejoso de vilanizar o inimigo. Entre 1941 e 1944, Mannerheim comandou o exército durante a Segunda Guerra Russo-Finlandesa, contra as pretensões soviéticas em seu território. Embora o país tenha aderido à Alemanha em situações pontuais, não pertenceu ao Eixo durante a Segunda Guerra. Suas Forças Armadas, por exemplo, receberam milhares de judeus de países ocupados.
Um clássico escrito após estudo revolucionário sobre o colaboracionismo de Vichy
A gravação me levou de volta a um grande livro lançado em 2004, A Anatomia do Fascismo, que recebeu tradução brasileira (de Patricia Zimbres e Paula Zimbres) pela editora Paz e Terra três anos depois. Um livro que, a considerar o estado da política mundial, continua urgente. Seu autor, o cientista político e historiador Robert Paxton, nasceu em 1932 e foi professor da Columbia University de 1969 até sua aposentadoria, em 1997. Hoje professor emérito da universidade, tornou-se célebre ao estudar o colaboracionismo francês em Vichy France: Old Guard and New Order, 1940-1944. Este livro de 1972 desmistificou o entendimento de que os franceses cederam ao nazismo apenas para evitar o conflito, por passividade.
A Anatomia do Fascismo nasceu, diz Paxton, depois de ele constatar que seus alunos desconheciam as origens e as reais características desse movimento, intitulando “fascista” todo governo orientado pelo totalitarismo. Embora o ditador italiano Benito Mussolini se declarasse totalitarista, por exemplo, ele o fazia em um sentido catalisador, explica Paxton. Dizia-se “totalitário” para que pudesse condensar sobre sua pessoa política as aspirações de uma grande parcela social. Mussolini deveria ser tudo, significar tudo. Mas os totalitarismos não redundam necessariamente em fascismo, ele precisa explicar. Se comparados, não necessariamente se equivalem. O exercício de poder por Mussolini difere daquele de Francisco Franco, na Espanha, ou de Juan Domingo Perón, na Argentina. Quando a imprensa americana, por exemplo, intitulou Perón de fascista, em verdade desejou derrubar no americano médio o fascínio que lhe causavam as leis argentinas a favorecer o trabalhador.
O fascismo tem características essenciais. É um movimento, não uma ideologia, esta que prontamente se pode alterar conforme o gosto do ditador no poder. O líder fascista não se obriga a obedecer o próprio programa de governo, aliás nem mesmo tem um: seus eventuais princípios e promessas de campanha (quando a eleição existe) podem ser alterados sem necessidade de mais explicações. O que importa é a submissão do indivíduo aos interesses do Estado (no caso de Hitler, do partido) e à figura de seu condutor máximo. Quem adere ao fascismo não necessariamente pertence a um grupo dominante. O fascismo é um fenômeno horizontal, ao contrário do socialismo, que implica o fortalecimento de uma classe, a trabalhadora. Pobres e ricos são fascistas unidos desde sempre. A potencialidade do movimento depende da ação de uma imprensa manipuladora, rendida aos interesses de grupos conservadores, os verdadeiros beneficiados pela adesão a esse sistema. Os conservadores utilizam os fascistas quando lhes convém e se desapegam deles quando não mais lhes servem. O desejo generalizado que o fascismo manipula é o de “mudança” e engrandecimento nacional, percebido por seus seguidores em todas as classes.
O historiador americano Robert Paxton
O fascismo existe para atiçar a multidão, motivá-la a uma ação constante e dirigida. É basicamente uma manipulação da consciência de massas em uma sociedade que acolhe o show. Precisa de violência, de poucas palavras, de anti-intelectualidade, da degradação cultural, do não-pensamento para florescer. No início do século XX, a centralidade de poder e o culto pessoal ao governante foram exercidos inovadoramente pelos fascistas, com som e fúria, diante das câmeras do cinema e dos microfones do rádio. Não se tratava mais de expor argumentos à população, mas simplesmente instigá-la à força, em eventos festivos e militares, com ampla cobertura midiática. Os embates parlamentares das ideias burguesas foram substituídos por discursos em praça pública assegurados pelo quebra-quebra das milícias nas ruas. Antes de fortalecer a igualdade, buscou-se a desconfiança em relação ao voto. O sacrifício individual foi exigido para que se construísse uma ideia de grandeza nacional. O fascismo, em suas manifestações iniciais, genuínas, detestava o burguês, o rico acumulador, uma situação transformada conforme o poder se consolidava em torno de um homem só. Mas uma de suas características nunca mudou. O inimigo número um do fascista é genericamente o socialista. E, particularmente, o homossexual, a mulher e as etnias responsabilizadas por uma instabilidade econômica do país.
A manipulação precisa ser corroborada pela justiça e pela polícia, explica Paxton, esta que passa a constituir autoridade inquestionável e duradoura, celebrada por promoções salariais. O fascismo deve ser anticomunista, mas não necessariamente anticlerical, embora o fosse, por exemplo, o programa inicial de Mussolini, que depois exaltou o fervor religioso dos italianos. A Igreja passa a interessar como aliada por conta de seu poderio econômico. Os fascistas, sempre e necessariamente, precisam extrapolar seus limites territoriais. As guerras de conquista são combustíveis para a crença no governo “engrandecido”. O ódio a determinada etnia, como aquele ao judeu, varia a depender do país. Na Itália, explica Paxton, os judeus ricos acreditaram nas promessas de recuperação econômica de Mussolini e o financiaram até o início da guerra, no final dos anos 1930, quando leis raciais passaram a restringi-los.
Tela do futurista Giacomo Balla falseia a participação de Benito Mussolini na Marcha Sobre Roma, que alçou o movimento ao poder na Itália em 1922
Tudo o que um fascista escreve não deve ser lido, como tão bem explica um filme que Robert Paxton não cita, mas parece fundamental a este entendimento, especialmente na Itália. A Marcha sobre Roma, realizado por Dino Risi em 1962, mostra, por meio da figura de dois desprovidos enganados, interpretados por Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman, como o fascismo nasceu anticlerical e antiburguês, a pregar terra para todos e direitos iguais, e como, aos poucos, abandonou suas antigas promessas. É um filme a explicitar o engodo da marcha até Roma pelos fascistas “liderados” por Mussolini (ele não participou da marcha, mas uma iconografia posterior, como a tela concebida pelo futurista Giacomo Balla, coloca-o à frente da manifestação). Em verdade, os camisas-negras que participaram da marcha foram barrados na entrada da cidade. Seu acesso se tornou permitido posteriormente porque o rei decidiu, convencido por seu governo, ceder a quem prometia extinguir à força a ameaça comunista e, de quebra, arrumar a economia.
Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman em A Marcha sobre Roma, de Dino Risi
O nacionalismo fascista nega o socialismo justamente, entre outros, por seu aspecto internacionalista. Conforme a economia declina em países como a Alemanha e a Itália, as ofertas de trabalho diminuem internamente e os camponeses se veem desprotegidos, o fascismo cresce, atribuindo a pequenos grupos migrantes, antes bem-vindos, a responsabilidade pela crise. A promessa do fascismo é ser nacionalista ao extremo, expulsando a “ameaça” externa dentro do país. Um corpo ideológico, uma farsa sobre as origens da nação ditará o que é nacional ou não – o mito da nacionalidade estabelecerá o que é autóctone, portanto legal, e o que é estrangeiro e não se deve tolerar. Na Alemanha fascista, a legalidade era ambígua. O governo desrespeitava as próprias instituições, incentivando o poder paralelo do partido e das milícias, que se tornavam autoridades. Segundo Paxton, existia no país um “Estado dual”, normativo enquanto prerrogativo. O Estado normativo, constituído pelas autoridades legalmente constituídas e pelo serviço público tradicional, disputava o poder com o Estado prerrogativo, formado pelas organizações paralelas ligadas ao partido único. Hitler se serviu dos dois.
O livro de Paxton compreende o fascismo com particularidade. Em seu texto escrito com muita clareza, o Brasil vem citado nas ocasiões ditatoriais até então mais recentes, o Estado Novo e a ditadura. Não há, nos dois casos, situações de guerras de conquistas territoriais que possam estabelecer a chancela fascista, ele conclui. Getúlio Vargas não aderiu ao nazismo como prometia, especialmente durante a Segunda Guerra, embora atacar o comunismo estivesse em seu ideário. E a ditadura brasileira dos anos 1960 tampouco elegeu a mística em torno de um único ditador, genericamente financiada, que era, pelo governo americano. Nos Estados Unidos e na França, houve sempre grupos a favorecer e incentivar o racismo e as milícias de exclusão. Mas, novamente, não se constituíram países onde o fascismo vingou com as tintas a ele aplicadas por Hitler ou Mussolini.
O historiador busca esclarecer as origens e as características do movimento de modo a discriminá-lo de outros autoritarismos. É possível supor que Paxton não ligasse o atual governo golpista inteiramente ao fascismo. Michel Temer tem apoio da oligarquia política, dos setores conservadores, da imprensa, mas carisma não é seu forte. As falas de Temer mais constrangem do que instigam o brasileiro à defesa de suas ações. A justiça e a polícia são suas aliadas e ele enaltece a submissão da própria mulher, como manda o fascismo, mas ainda não empreendeu uma luta por conquistas territoriais. Tampouco soube ser populista na medida exigida, à moda de Mussolini ou Hitler. Extirpa direitos sociais em lugar de os acrescentar seletivamente ou de os maquiar (inicialmente, o nazismo soube arrumar internamente a casa alemã; cuidou muito bem, por exemplo, da saúde de quem considerava cidadão). Talvez, então, segundo o entendimento de Paxton, o homem que ocupa o máximo cargo executivo no Brasil atual fosse visto apenas como um autoritário apoiado em grupos de interesse conservador, com privilégios assegurados pela corrupção, pela justiça e pela polícia violenta. Nem mesmo fascista Temer conseguiria ser?
Volto à gravação da voz de Hitler, feita na Finlândia, porque ela me parece esclarecedora de um ponto ressaltado pelo instigante livro do professor da Columbia University. Hitler não agia conforme o esperado. Sua performance publicamente eletrizante não correspondia a uma grande energia pessoal para conduzir suas políticas. Tudo o que fez, ele o fez gastando pouco. Nem mesmo exercia um pragmatismo motivador à frente da administração de seu país, embora fosse assertivo na propaganda. Paxton descreve um momento durante a guerra em que todo governante, em lugar de usar as verbas recebidas pelo Estado para vitalizar a força produtiva de sua comunidade, sentia que seu dever era aplicá-la em políticas de extermínio, incentivadas largamente pelo ditador. Hitler não quebrava a cabeça para resolver os problemas da economia, embora ela parecesse ajeitada por algum tempo. Enquanto Mussolini mourejava por longas horas em sua mesa de trabalho, Hitler continuava a se permitir o diletantismo indolente e boêmio de seus tempos de estudante de arte.
Narra Paxton: “Quando os auxiliares tentavam atrair sua atenção para assuntos urgentes, Hitler frequentemente mostrava-se inacessível. Passava muito tempo em seu refúgio na Bavária e, mesmo quando em Berlim, negligenciava questões de maior urgência. Submetia seus convidados com monólogos que iam até a meia-noite, acordava ao meio-dia e dedicava suas tardes a paixões pessoais, como fazer, com seu jovem protegido Albert Speer, planos para a reconstrução de sua cidade natal de Linz e do centro de Berlim num estilo monumental compatível com o Reich de Mil Anos. Após fevereiro de 1938, o gabinete deixou de se reunir. Alguns ministros jamais conseguiam ver o Führer. Hans Mommsen chegou ao ponto de escrever que Hitler era um ‘ditador fraco’. Mommsen nunca teve a intenção de negar a natureza ilimitada do mal definido e aleatório exercício pelo poder de Hitler, mas observou que o regime nazista não era organizado segundo princípios racionais de eficiência burocrática, e que sua surpreendente explosão de energia assassina não foi produzida pela diligência de Hitler.”