Um neoliberal fascista

Assim o historiador italiano Enzo Traverso entende Jair Bolsonaro, um presidente contra os pobres e a favor da mentira como base da política

Traverso: “No Brasil de hoje, o intelectual só pode ser antifascista, antirracista e anticapitalista”

POR ROSANE PAVAM

Aos 64 anos, o italiano Enzo Traverso é uma estrela em ascensão. Ele mora nos Estados Unidos, onde ensina história política e intelectual na Universidade de Cornell, e embora não se entenda midiático, é um autor cujos livros escritos de maneira direta instigam o pensamento na direção da compreensão geopolítica e da ação crítica.

Historiador, Traverso não teme tocar nas feridas do presente. Ele constata um momento “pós-fascista” internacional, que seria caracterizado não exatamente pelo nacionalismo, marca de um fascismo antigo, mas pela submissão às leis financeiras internacionais. Mais que isso, o descompromisso com os fatos seria o fundamento de ação dos pós-fascistas, quando, para o fascismo clássico, imaginar um futuro grandioso embasava a ação política. 

Suas palavras para o Brasil atual são aterradoras. Um presidente como Jair Bolsonaro, abertamente submisso ao capital financeiro e espelhado na ditadura militar, seria, segundo Traverso, mais do que um pós-fascista, antes um neofascista liberal que exerceria um populismo personalista, trabalharia para a extinção do pobre e exerceria o racismo sem pudor, enquanto a extrema direita europeia, por comparação, ainda precisaria instigar o pavor ao Islã para implantar sua xenofobia.

A seguir, os principais trechos da entrevista com o intelectual.

Em seu livro “As novas faces do fascismo – Populismo e a extrema direita”, o sr. propõe intitular o momento presente de pós-fascista, já que a extrema direita assume o poder em alguns países sob novo formato, ainda em desenvolvimento. Mas chamá-lo de pós-fascista não diminuiria sua força?

A extrema direita é uma constelação muito variada e tem características distintas em diferentes países. Na Europa, distanciou-se do fascismo e sua ascensão depende em grande parte de sua capacidade de aparecer como uma alternativa – nacionalista, conservadora e xenófoba, mas ainda uma alternativa – às políticas neoliberais da União Europeia e do banco central europeu. Quando entra no governo, ela busca a mediação, mas seu perfil não é neoliberal. No Brasil, a situação é diferente: Bolsonaro afirma sua filiação à ditadura militar e sua política é abertamente neoliberal. No Brasil estamos diante de uma forma específica de neofascismo neoliberal ou neoliberalismo fascista.

O Brasil de Jair Bolsonaro de algum modo evocaria a Itália de Benito Mussolini?

O populismo, o estilo demagógico, os comportamentos transgressivos são típicos de uma certa retórica fascista. Sob muitos pontos de vista, Bolsonaro lembra Mussolini, mas esses são aspectos formais, externos. Mussolini não era um agente do capital financeiro, ele havia integrado o capitalismo em seu projeto de expansionismo militar, colonial, e lançou uma campanha contra a Liga das Nações que impôs sanções econômicas à Itália fascista após a guerra na Etiópia. Bolsonaro defende uma política neoliberal e uma guerra contra os pobres, se considerarmos suas políticas públicas em termos de saúde, educação e serviços sociais. Seu autoritarismo não é apenas nacionalista, mas abertamente fascista.

Nesta sociedade pós-fascista, as redes sociais têm feito usuários acreditarem em “verdades” que não passam de falsidades, às vezes muito evidentes. Como um absurdo desses pôde se estabelecer? 

Em sua vigência, o fascismo fez “sonhar” e pintou um futuro mítico. Hoje, o pós-fascismo é incapaz de projetar a sociedade no futuro – seu imaginário não tem uma dimensão “prognóstica”. Mas ele inventa uma realidade paralela que espalha pela mídia, cria enredos e transfigura seus inimigos, pintando um retrato que absolutamente não corresponde à realidade. Existe uma continuidade entre Bolsonaro ou Trump e o fascismo? Sim, seu traço comum são as mentiras, eles não suportam a verdade.

Seria possível propor uma regulamentação das redes sociais para o bem do regime democrático? Sob quais condições?

A regulamentação das redes sociais é um assunto delicado. Por um lado, é necessário: as redes sociais devem estar sujeitas às mesmas leis que regulam a imprensa escrita e a televisão na maioria dos países democráticos; não se pode mentir impunemente, insultar os adversários, inventar tramas. A ética da discussão exige regras em um país livre. Por outro lado, se um poder autoritário regula as redes sociais, o risco é censurá-las, amordaçá-las, como ocorre na China. Acho que existem duas soluções: por um lado, deveria haver órgãos de controle independentes do governo ou da presidência, não sujeitos ao poder político; por outro lado, deveriam existir leis contra o monopólio das redes de televisão, porque elas constituem uma alternativa às informações controladas pelo poder financeiro e político.

No Charlie Hebdo, algo que o historiador não gostaria de ver

O sr. afirma que o secularismo é o caminho percorrido pela extrema direita para exercer o racismo contra os povos islâmicos na Europa. E que, portanto, o exercício da blasfêmia deveria ser evitado em países seculares. Por que a liberdade de blasfemar não pode ser preservada? 

Nunca propus leis contra a “blasfêmia” ou contra a sátira. Sempre considerei as caricaturas do jornal francês Charlie Hebdo islamofóbicas, sexistas e racistas, mas jamais propus censurá-las. A sátira política é indispensável em um país livre. O problema é fazer bom uso dela. Defender a liberdade de expressão significa defender o direito dos inimigos de se expressarem livremente. 

Caricaturas “blasfemas” são transgressivas e têm potencial crítico nos países muçulmanos, onde muitas vezes se veem censuradas e incomodam o poder. Nos países democráticos da União Europeia, as caricaturas contra a religião islâmica estigmatizam em muitos casos uma minoria, as classes populares, os imigrantes, os “diferentes”. Gostaria de estender o exemplo: a sátira contra o obscurantismo dos rabinos é divertida na imprensa israelense; na Alemanha nazista, ele apenas fez rir os antissemitas.

O sr. vê algum problema no crescimento das políticas identitárias? 

Nada tenho contra as políticas identitárias se elas não forem concebidas como a reivindicação de identidades isoladas, separadas e incapazes de dialogar com os demais componentes da sociedade e as demais forças interessadas em uma transformação social e política. A solução não está na negação das identidades, mas na sua coexistência. O conceito de interseccionalidade permite que as identidades sejam articuladas em formas não hierárquicas, mas igualitárias, evitando que entrem em conflito. Identidades de gênero, classe e raça podem coexistir. Acredito que a noção de interseccionalidade é muito importante para um país grande como o Brasil, onde coexistem minorias e comunidades muito diferentes. Essa diversidade é sua riqueza.

O sr. se considera um intelectual midiático? Que problemas existem em trabalhar com a mídia atual?

Eu sou historiador e não estou muito na mídia de nenhum país. Certamente não sou um “intelectual midiático”. Mas acho que precisamos esclarecer o uso das palavras. O conceito de intelectual nasceu há mais de um século, na França, com o caso Dreyfus, e ao mesmo tempo em outros contextos linguísticos. Na época, os intelectuais eram uma elite, porque detinham o monopólio da expressão escrita, quando a grande maioria da população era excluída e a cultura, dominada pela imprensa. Régis Debray a define como a era da “grafosfera”, que terminou na década de 1960. Hoje, graças à universidade de massa, a cultura não é mais monopolizada por uma elite. Além disso, vivemos agora na esfera do vídeo, onde a cultura é dominada pela imagem. Posso dizer que sou um intelectual, porque meu trabalho é ler, escrever livros e artigos e ensinar, mas certamente não poderia dizer que integro uma elite. Isso seria bastante ridículo. Os “intelectuais midiáticos” geralmente não são intelectuais, não exercem nenhum espírito crítico, são agentes da indústria cultural e gerenciam a comunicação do poder.

Como pode um intelectual exercer livremente a crítica para sensibilizar a população sobre seus problemas? Depois de Jean-Paul Sartre, o intelectual ainda deve alertar essas consciências?

Não quero idealizar Sartre, uma figura que deve ser historicizada e cujas contradições não podem ser ignoradas. Mas acho que o intelectual ainda tem um papel a cumprir: ele deve falar a verdade, por mais incômoda que seja, criticar o poder, defender os fracos e não se preocupar com a própria popularidade. Se esse é o papel do intelectual, no Brasil de hoje o intelectual só pode ser antifascista, antirracista e anticapitalista.

O álbum de fotos de Brecht contra o fascismo

 

Oito meses antes de morrer, o dramaturgo editou na Alemanha Oriental imagens da guerra anteriormente publicadas por revistas como a “Life”, acrescidas por seus poemas-legendas

 

Brecht Hitler
“Esta coisa dominou o mundo uma vez.
Seus conquistados o superaram.
Contudo, desejo que vocês não gritem de alegria por tal razão;
o útero do qual isto rastejou permanece fértil.”

A faixa estendida neste 24 de abril de 2019 na praça Loreto, exato local de Milão onde o corpo de Benito Mussolini se viu exposto de cabeça para baixo, há 74 anos, renova os alertas à ameaça fascista. Na faixa, leem-se a frase “Honra a Benito Mussolini” e a assinatura “Irr”, abreviação de “Irriducibili”, nome da principal torcida organizada do time de futebol Lazio.

 

O último 20 de abril marcou também o aniversário de Adolf Hitler, nascido há 130 anos. E talvez, com seus atos, os torcedores fascistas do time mantivessem implícita uma vibrante comemoração às ideias do ditador, duvidoso “irmão” do Duce.

 

De qualquer maneira, na praça Loreto, neste 24 de abril que antecede em um dia a comemoração da libertação da Itália na Segunda Guerra, os fascistas usaram a saudação romana, simbólica do regime de Mussolini, para manifestar sua torcida pelo time, que hoje joga contra o Milão pelas semifinais da Copa da Itália.

 

O dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956) cansou-se de alertar sobre o perigo fascista, que atos como esse apenas demonstram ser permanente. Ele deixou sua Alemanha em 1933, ano em que o chanceler Hitler foi eleito, rumo à Dinamarca, à Suécia e depois à Califórnia, por conta da perseguição a suas ideias marxistas e a seu teatro libertador (e nos Estados Unidos se viu caçado pelos macartistas; mais tarde narro a vocês aqui no blog um episódio que ilustra a perseguição).

 

Brecht era também um apaixonado pela fotografia. Desde os anos 1920 compilava em grandes cadernos de esboço as imagens publicadas por revistas como a Life sobre a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial. Após o conflito, e vencendo a censura, o dramaturgo fez publicar em 1955, por meio de uma editora satírica da Alemanha Oriental, a Eulenspiegel, uma coletânea de 85 dessas imagens, intitulada “Krigsfiebel” (bíblia ou guia da guerra). As fotos exibidas pelo volume, editado em dezembro de 1955, oito meses antes de sua morte por ataque cardíaco, mostravam líderes nazistas e aliados, a destruição urbana causada pela guerra, os civis desolados e os inimigos mortos.

 

Contudo, ele acreditava que as imagens, embora potentes, não exprimiam sozinhas realidades complexas. Eis por que decidira acompanhá-las de “fotogramas”, como as intitulava, com uma densa, às vezes irônica, legenda em quatro versos. Como fazia em suas peças, coordenava então imagens e palavras de modo a provocar o leitor a pensar criticamente e a questionar seu conhecimento limitado sobre o fascismo e o capitalismo.

 

Quando as vendas do livro decaíram, Brecht o ofereceu a bibliotecas e outras instituições, sob a alegação de que a “louca supressão de todos os fatos e julgamentos sobre os anos de Hitler e a guerra” deveria ter um fim. Ele planejava acompanhar o livro de um outro volume, “Friedensfibel” (guia ou bíblia da paz), mas tal obra ficou inacabada.

 

A foto que publicamos aqui, retirada de seu livro-álbum e de autor ignorado, mostra Hitler em um pronunciamento de 1934. Na edição estadunidense, cujo título é “War Primer”, e que ganhou republicação em 2017, lê-se a legenda com o nome do ditador alemão e sua data de nascimento: “Hitler: 20 de abril de 1889”. Embaixo da foto, segue um fotograma em quatro versos, cuja tradução aproximada é esta, retirada do livro “Literature and Photography”, organizado por Jane M. Rabb e publicado em 1995 pela University of New Mexico Press:

 

“Esta coisa dominou o mundo uma vez.

Seus conquistados o superaram.

Contudo, desejo que vocês não gritem de alegria por tal razão;

o útero do qual isto rastejou permanece fértil.”

Os goebbels imprescindíveis

Os fascistas não se lixam pra economia.

Pra governar.

Ganham a eleição apenas para motivar à destruição as multidões temporariamente iludidas por segurança e estabilidade.

Haja espetáculos, xingamentos e palavras de ordem para que o oprimido tudo aceite e impulsione.

Enquanto isto é feito eles concentram dinheiro e poder para a burguesia, os donos de terra, os bancos, a indústria de armas.

Num modelo fascista de origem, uma elite nacional era a receptora dos recursos.

Agora não somente.

No Brasil, caso inexista resistência, praticaremos a conhecida expansão territorial. E, detalhe, não para nosso usufruto, mas principalmente para que EUA e seu estado-terrorista satélite, Israel, possam acumular e controlar nossas riquezas naturais.

É preciso incutir na multidão ignorante a extrema necessidade de combate.

O fascista transforma a guerra, o litígio, em coisas imprescindíveis.

Por isso a publicidade constante não é uma opção, mas uma necessidade.

Antes, Hitler e Mussolini precisavam de grandes eventos militarizados ao ar livre pra exercer esse fascínio. E fortaleciam o rádio, seus jornais e o cinema pra transmitir tais ideias.

Durante o fascismo italiano, funcionava até mesmo uma revista de crítica de cinema pelo bem da indústria.

A revista, dirigida pelo filho do Duce, acolhia entre seus escritores um jovem Antonioni, por exemplo.

Só pra vocês terem uma ideia da importância do cinema então…

Mas no Brasil de hoje nada disso parece ser tão necessário.

Basta a tevê do bispo.

O Carlos Bolsonaro.

E os propagandistas-pastores-postosipiranga para as ideias do desmonte, ministros e primeira-dama eficazes na comunicação com velhos e potenciais fiéis.

A bobajada que sai de suas bocas sujas, sempre prontas ao ataque, existirá portanto cotidianamente e em grande quantidade.

Aposto que danares e bozóica ganham um dinheirinho específico pra aparições cor-de-rosa…

“Toma aí um trocado pra comprar na Animale do shopping” é a frase que me vem.

Para entender o fascismo.

Um clássico de Robert Paxton procura distingui-lo de outros totalitarismos e, entre tantos aspectos, aponta a negligência administrativa de Hitler.  Quão fascista será o governo brasileiro atual? 

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Hitler fala baixo com o comandante Mannerheim (dir.) em vagão de trem na Finlândia. A conversa foi gravada sem seu consentimento em 1942. Sua voz, longe dos discursos, é grave e pausada. O historiador Hans Mommsen o considerava um “ditador fraco”.

Nesta semana, circulou por meu facebook um link em que é possível ouvir a voz de Adolf Hitler proferida numa situação particular. Feita a sua revelia no vagão de um trem, em 1942, por um técnico de emissora de rádio da Finlândia, país onde o ditador se encontrava secretamente, a gravação foi interrompida tão logo a SS se deu conta de que era realizada. Possivelmente de modo a evitar hostilidade em relação ao país que desejava aliado, Hitler não exigiu sua destruição, apenas que fosse recolhida. Isto porque o ditador jamais deixava sua voz ser transmitida em situações caseiras, especialmente sem que, para isso, houvesse um ensaio anterior. A gravação, de onze minutos, voltou para a emissora finlandesa apenas em 1957.

Trata-se do único registro conhecido em que Hitler fala baixo, desinteressado de atiçar a multidão. Durante esta conversa com o então comandante militar Carl Gustaf Emil Mannerheim, posteriormente presidente finlandês, Hitler mais falou do que ouviu. Ele precisava convencer seu interlocutor de que estava certo. E aparentemente desejava demonstrar que a Finlândia tinha toda a razão ao se voltar contra a União Soviética mais uma vez, depois de tê-la enfrentado em um avanço sobre seu território entre 1939 e 1940. Hitler admitia a Mannerheim ter errado o cálculo sobre o poderio militar de Stalin. Sentia-se inconformado com o fato de a URSS fabricar tanques em quantidade e velocidade inimagináveis, enquanto os habitantes soviéticos, fazia questão de ressaltar, viviam um cotidiano precário.

Hitler não somente fala baixo e pausadamente durante a gravação (sua voz, ao contrário do que se poderia imaginar, não era aguda). Parecia ponderar com equilíbrio a situação negativa. E aparentava um conhecimento de causa, a enumerar estratégias militares e a explicitar motivos para suas decisões que, ao fim, resultaram em fracasso. A gravação não deixa de ser insidiosa, contudo, a desejar a adesão de seu interlocutor, que na fita, aliás, surge mais exaltado que o próprio Hitler. Admitir um erro de cálculo colocava o nazista em frágil situação confessional, mas também apontava para a cooperação entre os países (não explicitada, contudo, durante a gravação). Hitler se vitimizava, desejoso de vilanizar o inimigo. Entre 1941 e 1944, Mannerheim comandou o exército durante a Segunda Guerra Russo-Finlandesa, contra as pretensões soviéticas em seu território. Embora o país tenha aderido à Alemanha em situações pontuais, não pertenceu ao Eixo durante a Segunda Guerra. Suas Forças Armadas, por exemplo, receberam milhares de judeus de países ocupados.

 

 

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Um clássico escrito após estudo revolucionário sobre o colaboracionismo de Vichy

A gravação me levou de volta a um grande livro lançado em 2004, A Anatomia do Fascismo, que recebeu tradução brasileira (de Patricia Zimbres e Paula Zimbres) pela editora Paz e Terra três anos depois. Um livro que, a considerar o estado da política mundial, continua urgente. Seu autor, o cientista político e historiador Robert Paxton, nasceu em 1932 e foi professor da Columbia University de 1969 até sua aposentadoria, em 1997. Hoje professor emérito da universidade, tornou-se célebre ao estudar o colaboracionismo francês em Vichy France: Old Guard and New Order, 1940-1944. Este livro de 1972 desmistificou o entendimento de que os franceses cederam ao nazismo apenas para evitar o conflito, por passividade.

A Anatomia do Fascismo nasceu, diz Paxton, depois de ele constatar que seus alunos desconheciam as origens e as reais características desse movimento, intitulando “fascista” todo governo orientado pelo totalitarismo. Embora o ditador italiano Benito Mussolini se declarasse totalitarista, por exemplo, ele o fazia em um sentido catalisador, explica Paxton. Dizia-se “totalitário” para que pudesse condensar sobre sua pessoa política as aspirações de uma grande parcela social. Mussolini deveria ser tudo, significar tudo. Mas os totalitarismos não redundam necessariamente em fascismo, ele precisa explicar. Se comparados, não necessariamente se equivalem. O exercício de poder por Mussolini difere daquele de Francisco Franco, na Espanha, ou de Juan Domingo Perón, na Argentina. Quando a imprensa americana, por exemplo, intitulou Perón de fascista, em verdade desejou derrubar no americano médio o fascínio que lhe causavam as leis argentinas a favorecer o trabalhador.

O fascismo tem características essenciais. É um movimento, não uma ideologia, esta que prontamente se pode alterar conforme o gosto do ditador no poder. O líder fascista não se obriga a obedecer o próprio programa de governo, aliás nem mesmo tem um: seus eventuais princípios e promessas de campanha (quando a eleição existe) podem ser alterados sem necessidade de mais explicações. O que importa é a submissão do indivíduo aos interesses do Estado (no caso de Hitler, do partido) e à figura de seu condutor máximo. Quem adere ao fascismo não necessariamente pertence a um grupo dominante. O fascismo é um fenômeno horizontal, ao contrário do socialismo, que implica o fortalecimento de uma classe, a trabalhadora. Pobres e ricos são fascistas unidos desde sempre. A potencialidade do movimento depende da ação de uma imprensa manipuladora, rendida aos interesses de grupos conservadores, os verdadeiros beneficiados pela adesão a esse sistema. Os conservadores utilizam os fascistas quando lhes convém e se desapegam deles quando não mais lhes servem. O desejo generalizado que o fascismo manipula é o de “mudança” e engrandecimento nacional, percebido por seus seguidores em todas as classes.

 

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O historiador americano Robert Paxton

O fascismo existe para atiçar a multidão, motivá-la a uma ação constante e dirigida. É basicamente uma manipulação da consciência de massas em uma sociedade que acolhe o show. Precisa de violência, de poucas palavras, de anti-intelectualidade, da degradação cultural, do não-pensamento para florescer. No início do século XX, a centralidade de poder e o culto pessoal ao governante foram exercidos inovadoramente pelos fascistas, com som e fúria, diante das câmeras do cinema e dos microfones do rádio. Não se tratava mais de expor argumentos à população, mas simplesmente instigá-la à força, em eventos festivos e militares, com ampla cobertura midiática. Os embates parlamentares das ideias burguesas foram substituídos por discursos em praça pública assegurados pelo quebra-quebra das milícias nas ruas. Antes de fortalecer a igualdade, buscou-se a desconfiança em relação ao voto. O sacrifício individual foi exigido para que se construísse uma ideia de grandeza nacional. O fascismo, em suas manifestações iniciais, genuínas, detestava o burguês, o rico acumulador, uma situação transformada conforme o poder se consolidava em torno de um homem só. Mas uma de suas características nunca mudou. O inimigo número um do fascista é genericamente o socialista. E, particularmente, o homossexual, a mulher e as etnias responsabilizadas por uma instabilidade econômica do país.

A manipulação precisa ser corroborada pela justiça e pela polícia, explica Paxton, esta que passa a constituir autoridade inquestionável e duradoura, celebrada por promoções salariais. O fascismo deve ser anticomunista, mas não necessariamente anticlerical, embora o fosse, por exemplo, o programa inicial de Mussolini, que depois exaltou o fervor religioso dos italianos. A Igreja passa a interessar como aliada por conta de seu poderio econômico. Os fascistas, sempre e necessariamente, precisam extrapolar seus limites territoriais. As guerras de conquista são combustíveis para a crença no governo “engrandecido”. O ódio a determinada etnia, como aquele ao judeu, varia a depender do país. Na Itália, explica Paxton, os judeus ricos acreditaram nas promessas de recuperação econômica de Mussolini e o financiaram até o início da guerra, no final dos anos 1930, quando leis raciais passaram a restringi-los.

 

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Tela do futurista Giacomo Balla falseia a participação de Benito Mussolini na Marcha Sobre Roma, que alçou o movimento ao poder na Itália em 1922

 

Tudo o que um fascista escreve não deve ser lido, como tão bem explica um filme que Robert Paxton não cita, mas parece fundamental a este entendimento, especialmente na Itália. A Marcha sobre Roma, realizado por Dino Risi em 1962, mostra, por meio da figura de dois desprovidos enganados, interpretados por Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman, como o fascismo nasceu anticlerical e antiburguês, a pregar terra para todos e direitos iguais, e como, aos poucos, abandonou suas antigas promessas. É um filme a explicitar o engodo da marcha até Roma pelos fascistas “liderados” por Mussolini (ele não participou da marcha, mas uma iconografia posterior, como a tela concebida pelo futurista Giacomo Balla, coloca-o à frente da manifestação). Em verdade, os camisas-negras que participaram da marcha foram barrados na entrada da cidade. Seu acesso se tornou permitido posteriormente porque o rei decidiu, convencido por seu governo, ceder a quem prometia extinguir à força a ameaça comunista e, de quebra, arrumar a economia.

 

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Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman em A Marcha sobre Roma, de Dino Risi

O nacionalismo fascista nega o socialismo justamente, entre outros, por seu aspecto internacionalista. Conforme a economia declina em países como a Alemanha e a Itália, as ofertas de trabalho diminuem internamente e os camponeses se veem desprotegidos, o fascismo cresce, atribuindo a pequenos grupos migrantes, antes bem-vindos, a responsabilidade pela crise. A promessa do fascismo é ser nacionalista ao extremo, expulsando a “ameaça” externa dentro do país. Um corpo ideológico, uma farsa sobre as origens da nação ditará o que é nacional ou não – o mito da nacionalidade estabelecerá o que é autóctone, portanto legal, e o que é estrangeiro e não se deve tolerar. Na Alemanha fascista, a legalidade era ambígua. O governo desrespeitava as próprias instituições, incentivando o poder paralelo do partido e das milícias, que se tornavam autoridades. Segundo Paxton, existia no país um “Estado dual”, normativo enquanto prerrogativo. O Estado normativo, constituído pelas autoridades legalmente constituídas e pelo serviço público tradicional, disputava o poder com o Estado prerrogativo, formado pelas organizações paralelas ligadas ao partido único. Hitler se serviu dos dois.

O livro de Paxton compreende o fascismo com particularidade. Em seu texto escrito com muita clareza, o Brasil vem citado nas ocasiões ditatoriais até então mais recentes, o Estado Novo e a ditadura. Não há, nos dois casos, situações de guerras de conquistas territoriais que possam estabelecer a chancela fascista, ele conclui. Getúlio Vargas não aderiu ao nazismo como prometia, especialmente durante a Segunda Guerra, embora atacar o comunismo estivesse em seu ideário. E a ditadura brasileira dos anos 1960 tampouco elegeu a mística em torno de um único ditador, genericamente financiada, que era, pelo governo americano. Nos Estados Unidos e na França, houve sempre grupos a favorecer e incentivar o racismo e as milícias de exclusão. Mas, novamente, não se constituíram países onde o fascismo vingou com as tintas a ele aplicadas por Hitler ou Mussolini.

O historiador busca esclarecer as origens e as características do movimento de modo a discriminá-lo de outros autoritarismos. É possível supor que Paxton não ligasse o atual governo golpista inteiramente ao fascismo. Michel Temer tem apoio da oligarquia política, dos setores conservadores, da imprensa, mas carisma não é seu forte. As falas de Temer mais constrangem do que instigam o brasileiro à defesa de suas ações. A justiça e a polícia são suas aliadas e ele enaltece a submissão da própria mulher, como manda o fascismo, mas ainda não empreendeu uma luta por conquistas territoriais. Tampouco soube ser populista na medida exigida, à moda de Mussolini ou Hitler. Extirpa direitos sociais em lugar de os acrescentar seletivamente ou de os maquiar (inicialmente, o nazismo soube arrumar internamente a casa alemã; cuidou muito bem, por exemplo, da saúde de quem considerava cidadão). Talvez, então, segundo o entendimento de Paxton, o homem que ocupa o máximo cargo executivo no Brasil atual fosse visto apenas como um autoritário apoiado em grupos de interesse conservador, com privilégios assegurados pela corrupção, pela justiça e pela polícia violenta. Nem mesmo fascista Temer conseguiria ser?

Volto à gravação da voz de Hitler, feita na Finlândia, porque ela me parece esclarecedora de um ponto ressaltado pelo instigante livro do professor da Columbia University. Hitler não agia conforme o esperado. Sua performance publicamente eletrizante não correspondia a uma grande energia pessoal para conduzir suas políticas. Tudo o que fez, ele o fez gastando pouco. Nem mesmo exercia um pragmatismo motivador à frente da administração de seu país, embora fosse assertivo na propaganda. Paxton descreve um momento durante a guerra em que todo governante, em lugar de usar as verbas recebidas pelo Estado para vitalizar a força produtiva de sua comunidade, sentia que seu dever era aplicá-la em políticas de extermínio, incentivadas largamente pelo ditador. Hitler não quebrava a cabeça para resolver os problemas da economia, embora ela parecesse ajeitada por algum tempo. Enquanto Mussolini mourejava por longas horas em sua mesa de trabalho, Hitler continuava a se permitir o diletantismo indolente e boêmio de seus tempos de estudante de arte.

Narra Paxton: “Quando os auxiliares tentavam atrair sua atenção para assuntos urgentes, Hitler frequentemente mostrava-se inacessível. Passava muito tempo em seu refúgio na Bavária e, mesmo quando em Berlim, negligenciava questões de maior urgência. Submetia seus convidados com monólogos que iam até a meia-noite, acordava ao meio-dia e dedicava suas tardes a paixões pessoais, como fazer, com seu jovem protegido Albert Speer, planos para a reconstrução de sua cidade natal de Linz e do centro de Berlim num estilo monumental compatível com o Reich de Mil Anos. Após fevereiro de 1938, o gabinete deixou de se reunir. Alguns ministros jamais conseguiam ver o Führer. Hans Mommsen chegou ao ponto de escrever que Hitler era um ‘ditador fraco’. Mommsen nunca teve a intenção de negar a natureza ilimitada do mal definido e aleatório exercício pelo poder de Hitler, mas observou que o regime nazista não era organizado segundo princípios racionais de eficiência burocrática, e que sua surpreendente explosão de energia assassina não foi produzida pela diligência de Hitler.”

Por Rosane Pavam