Estúpidos, cruéis, preguiçosos e desonestos, por Tchecov

Foto de Tchecov mostra a colocação de ferro nos pés dos presidiários de Sacalina em 1890

“Afinal, em que esses homens estúpidos, cruéis, preguiçosos, desonestos são melhores que os mujiques bêbados e supersticiosos, ou melhores que os animais, também desvairados quando um acontecimento qualquer rompe a monotonia de suas vidas limitadas pelos instintos? Lembro-me de cães torturados até a morte ou enlouquecidos; pardais depenados vivos por garotos e em seguida atirados à água; toda uma longa, enorme lista de lentos e miúdos sofrimentos que pude observar nesta cidade desde a infância. E não cheguei a entender como vivem seus sessenta mil habitantes, por que leem o Evangelho, por que rezam, por que leem livros e revistas. De que lhes adianta tudo o que foi escrito e dito até agora se as mesmas trevas continuam em suas almas e se o seu desprezo pela liberdade é tão grande quanto há cem ou trezentos anos?”

Tchecov em “Minha Vida” (1896), citado em “Tchekhov”, de Sophie Laffitte, trad. Hélio Pólvora, ed. José Olympio, 1993, pag. 139

Fernando Sabino ao pé da cruz: “Nasci homem, vou morrer menino”

Fernando Sabino, janela ao fundo

Naquele 1994, eu trabalhava como editora-assistente do “Divirta-se”, a seção diária de cultura do “Jornal da Tarde”, quando a ocasião de entrevistar Fernando Sabino (1923-2004) se apresentou. O escritor que eu admirava tanto, mas do qual ninguém queria mais saber, descido aos infernos depois de narrar de próprio punho a vida da então ministra Zélia Cardoso de Mello, lançava um livro novo. Até que enfim, pensei. Fui até ele como o sedento corre atrás do primeiro copo d’água. Mas que decepção! Era como se o escritor, por meio do livro, narrasse a vida de Cristo com o objetivo de ser perdoado, e justamente perto do Natal. Uma história fraca, semelhante àquelas que os evangelizadores propagam em edições infanto-juvenis facilitadas, ou pelo menos, àquela altura, me parecia deste modo (jamais reli o livro). Matutei e decidi que ainda assim valeria a pena entrevistar o escritor. Por sua importância, até pelo imbróglio com Zélia, a ministra de aura corrompida que tinha a história impressa tardiamente, como sempre, nos nossos jornais.

Eu conhecera Fernando Sabino, cujo centenário de nascimento se recorda agora, nos bastidores dos shows do Nouvelle Cuisine, banda de jazz que, surgida no final dos anos 1980, tinha a participação de meu marido, o guitarrista Mauricio Tagliari. Lembro-me de uma noite em que, sentado ao lado da esposa, a bela Lígia, Fernando Sabino nos divertira ao espinafrar o amigo Vinicius de Moraes: “Só danço samba, só danço samba, vai vai vai? Isso é letra de música? Não dá”.

Pensei que, ao entrevistá-lo em sua casa, conseguiria frases divertidas assim. Vendi a pauta em reunião, o editor aceitou a ideia e peguei o voo para o Rio. Mas, ao visitar o escritor em seu apartamento simplório de Copacabana (cheguei a lamentar sua situação financeira, mas um editor de lá me garantiu que a pobreza de Fernando Sabino era só pão-durice), vi um homem diferente. Triste. Talvez porque Lígia não o quisesse mais.

Não me reconheceu daqueles tempos. E serviu café feito por ele mesmo na hora, obtido pelo filtro de pano que ia dar em um bule esmaltado branco. Sabino não queria falar sobre Zélia, nem eu, sobre o escrito novo. De minha parte, jovem, não sabia o que dizer sobre sua novela sem magoá-lo. Foi tudo difícil entre nós, um verdadeiro embate. “Quando vamos falar sobre o meu livro?”, ele me questionava, elétrico, e com razão. Mas eu o enrolei enquanto pude. E até consegui que comentasse sobre a vizinhança empobrecida, em uma narrativa direta, tão sua, a única que restou na minha memória daquele dia, embora eu não tivesse conseguido encaixá-la no tempo curto de edição e no espaço menor ainda da seção cultural:

Certo dia, em uma rua de Copacabana, Fernando Sabino ouviu um sem-teto bradar à mulher, sentada sobre a esteira de papelão: “Mas quando foi que lhe faltei?”

 

O escritor em 1994,
na foto de
Carlos Chicarino

Os pássaros bicam as flores de Fernando Sabino a cada 30 ou 60 segundos. Mas o escritor nunca está à janela para vê-los. É agitado esse homem de 71 anos e cabelos, em parte, muito negros. Fala a sua interlocutora enquanto aumenta o volume do som, prepara o café, mostra cadernos antigos e livros e exibe fotografias. Um beija-flor que pousa num pote de água açucarada parece mais sereno. Sabino não o vê. De costas para a janela, sentado na poltrona de seu apartamento em Copacabana, o autor de “O Grande Mentecapto” espia um enorme espelho. Eis o truque: Sabino observa os passarinhos, sim. Mas refletidos. São reflexos do mundo, o que ele vê. Heróis de grande plateia, que gosta de apelidar “literários”. Heróis com o nome de Zélia Cardoso de Mello. Ou Jesus Cristo.

Sim. O novo livro de Fernando Sabino, “Com a graça de Deus”, conta a história do Salvador. “Uma leitura fiel do Evangelho inspirada no humor de Jesus”, conforme ele nos relata no subtítulo. O escritor se declara um homem de fé. “Muito pequeno, eu olhava para o céu e me perguntava: ‘Onde isso começa? Onde acaba?’ Aos 11 anos, decidi que havia uma coisa misteriosa chamada Deus. E não pensei mais no assunto.” Sabino gosta de dizer que sua fé é irracional. “O problema não é eu acreditar em Deus. É ele acreditar em mim.” São tantos os livros sobre Cristo editados atualmente – 50 por dia, segundo seus cálculos – que o autor não considera possível lê-los todos. Ele não conhece os escritos de Claude Tresmontant, que enumeram, entre os erros de tradução dos evangelhos, aquele relacionado à palavra fé. Para o senhor Tresmontant, a fé deve ser entendida como no original hebraico: é um “estar certo da verdade”.

Fernando Sabino não se permitiu exagerado tempo para as pesquisas. Iniciou-as em agosto de 1993 e apresenta seu livro nesta semana de 1994. É uma história de Cristo em seu estilo: palavras simples e estudadas, narrativa clara. O humor é aquele contido em “The Humour of Christ”, título de um livro do teólogo Elton Trueblood que o inspirou a escrever. O escritor mineiro insiste que Jesus às vezes ri. Exatamente como o Cristo das lojas Piter. “Cristo era um convite à valsa. Comia e bebia. Mandava a festa continuar enquanto o noivo estivesse presente. E o noivo era ele”, diz. Precavido, avisa que, em sua obra, humor não significa escracho. É mais o que se poderia traduzir por um “jeito” do Senhor.

“Cristo tinha um cacoete”, crê. “Ninguém era bom para ele. Gostava de simular a impaciência”. Impaciência que também é a do ousado autor desta espécie de Novo Testamento facilitado. Em trechos de seu livro, ele repreende o estilo do Filho de Deus. Dá a impressão de querer que Cristo fale como ele, Sabino, escreve – fácil, sem um traço de rebuscamento, sem imagens intrincadas: “Por que Jesus teria de usar com homens tão simplórios, de alma tão cândida, uma linguagem assim requintada, cheia de metáforas, metonímias, palavras de duplo sentido? Ele próprio não dizia que se servia de parábolas para confundir os ímpios, mas as explicava para o bom entendimento dos discípulos?”, indigna-se à página 117. Talvez o Senhor risse, imaginando se ele sabe o que diz.

Certamente, Sabino sabe o que faz. “O escritor corrige a verdade”, argumenta. Foi assim com a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, que lhe forneceu material para o livro “Zélia, uma paixão”, de oito edições vendidas, quase todas elas nos primeiros meses subsequentes ao lançamento, em 1991. “Aparei os regionalismos de Zélia. Quando ela afirmava que havia uma ‘puta’ diferença entre isso e aquilo, eu tirava. Paulista usa ‘puto, puta’ pra tudo. Fiz o mesmo quando ela me disse que, em criança, sua relação com a mãe era ‘péssima’. Perguntei: ‘Zélia, você quer desgraçar a sua mãe?’ Tirei a expressão.”

Esse copidesque de intenções tem uma relação ainda carinhosa com a mulher hoje acusada de envolvimento com o esquema de PC Farias. Não entende a reação irada dos leitores ao texto. “Resolveram acabar comigo depois que escrevi esse livro”, ele diz, apontando um complô contra a brochura com a participação de empresários e do SNI, temerosos por revelações. Sabino atribuiu ao livro o mérito de lhe ter proporcionado uma grande experiência literária. Sentiu-se como um Tolstoi escrevendo sobre as ceroulas de Napoleão. Da paixão de Zélia à de Cristo, o pulo foi de três anos. Mas ele não quer que confundam seu sentido de oportunidade com oportunismo. Diz que não recebeu 2 milhões de dólares pelo livro sobre a ex-ministra, conforme parte da imprensa alardeou. Se ganhou a quantia, ele certamente não a distribuiu por seu aconchegante apartamento de Copacabana, no qual há muitos livros, um kit de bateria Pinguim e luxo nenhum.

“Ao contrário do escritor Ernest Hemingway, que olhava tudo no mundo pela última vez, eu olho tudo no mundo como se fosse a primeira”, ele diz. Sabino acha que está pagando um preço alto por ser Forrest Gump, o ingênuo interpretado por Tom Hanks no filme de Robert Zemeckis. Que não o culpem por agora estar cruzando o limiar da esperança, juntamente com o papa João Paulo II. O autor que criou um Cristo caricato em “O Grande Mentecapto” achou que era hora de construir um Cristo respeitoso. Se tudo se revelar um engano, será apenas mais um. “Sou um bobo. Um deslumbrado. Faço besteira o tempo todo. Nasci homem, vou morrer menino.” 

O mínimo de Jon Fosse

Não conhecia Jon Fosse, o norueguês que levou o Nobel de Literatura de 2023, e agora soube tratar-se de escritor e dramaturgo minimalista. Como é boa a internet às vezes, quando antes do café da manhã já se pode descobrir um dos livros do laureado traduzido ao inglês (Scenes from a Childhood, da editora Fitzcarraldo!) e improvisadamente fazer uma versão ao nosso português:

O MACHADO

Um dia o Pai grita com ele e ele vai até o depósito de lenha, pega o machado maior, leva-o para a sala, coloca-o ao lado da cadeira de seu pai e pede a seu pai que o mate. Como seria de esperar, isto deixa seu pai mais irritado ainda.

Língua mátria

A moçambicana Paulina Chiziane, primeira mulher africana a receber o Prêmio Camões 

Paulina Chiziane em foto de Renato Parada: seus livros são meditações sobre a terra, esse misterioso lugar onde se realizam os sentidos da mulher

Aos 68 anos de idade, a escritora moçambicana Paulina Chiziane tornou-se no dia 5 de maio a primeira mulher africana a receber o Prêmio Camões. A honraria literária, instituída pelos governos de Portugal e do Brasil em 1988, com o objetivo de estreitar os laços culturais entre os vários países lusófonos e enriquecer o patrimônio literário e cultural da Língua Portuguesa, havia sido concedida à escritora moçambicana em 2021. Na ocasião, o júri destacara a vasta produção e a boa recepção crítica da obra desta autora, uma das vozes da ficção africana mais conhecida internacionalmente.

Ao receber seu prêmio em Lisboa, Chiziane lembrou que, vinda “de lugar nenhum”, onde “aprendeu a escrever na areia do chão” e usou “o primeiro par de sapatos com 10 anos”, só poderia se sentir “muito feliz” por ter sido agraciada. “Para quem vem do chão, estar aqui diante do governo português, do governo brasileiro, do corpo diplomático e de várias personalidades é algo que comove profundamente. Caminhei sem saber para onde ia, mas cheguei a algum lugar, que é este prêmio”, disse, antes de agradecer aos seus leitores, “em Moçambique e em todos os países que falam português”.

Em outro trecho, Chiziane discursou pela “descolonização da língua portuguesa”. Após citar alguns exemplos de palavras definidas no dicionário de forma diversa dos seus usos correntes – como “matriarcado”, que aparece como “costume tribal africano” –, ela disse: “A língua portuguesa para ser nossa precisa de um tratamento, de uma limpeza, de uma descolonização.”

Quem ainda não viajou por seus mundos literários, que vá sem hesitar. Seus livros são meditações sobre a terra, esse misterioso lugar onde se realizam os sentidos da mulher, conforme ela os vê. Por conta da grande distância que persiste em nos separar das literaturas africanas de língua portuguesa, mal a conhecemos no Brasil, embora a Companhia das Letras tenha editado aqui três de seus romances, “Niketche: Uma história de poligamia”, “Ventos do Apocalipse” e “Balada de Amor ao Vento”.

Os duros começos de Kafka

Ao recuperar as cartas à noiva Felice Bauer, biógrafo expõe as apreensões do escritor e suas conquistas literárias de início

O sorriso, o chapéu coco, o insuspeito humor de quem provocara riso
nos amigos ao ler o primeiro
capítulo de “O Processo”

Em 1912, findo o réveillon, o escritor Frank Kafka (1883-1924) decidiu fazer um de seus costumeiros balanços de vida. Para tanto, escreveu as reflexões em seu diário, aquele que preenchia especialmente durante horas tranquilas, as noturnas, nas quais o silêncio parecia reinar na casa onde morava com a família, contígua à loja de produtos de luxo administrada pelos pais e irmãs, em Praga. Tinha 28 anos. Trabalhava pela manhã numa corretora de seguros, descansava à tarde, estava a um ano de escrever “O veredicto”, o primeiro texto a concretizar sua concepção literária, e pensava que o insucesso amoroso não poderia atormentá-lo mais. “Quando ficou claro em meu organismo que a escrita era a tendência mais produtiva do meu ser”, escreveu, “tudo o mais acorreu ao seu encontro, esvaziando todas aquelas capacidades que, de início, dirigiam-se para as alegrias do sexo, da comida, da bebida, da reflexão filosófica e da música”.

É quase certo que Kafka tivesse um organismo literário, por assim dizer. Mas por que a literatura excluiria necessariamente sua realização no amor, ainda mais naquele momento em que mal pusera seus escritos à prova pública? O motivo não seria religioso, considera o biógrafo alemão Reiner Stach em “Kafka: Os anos decisivos” (Todavia). Neste livro extenso, tantas vezes primoroso, a revirar com clareza erudita até mesmo a necessidade de as biografias existirem, considera-se que o fracasso literário não é uma opção para Kafka, enquanto o amoroso, ele talvez pudesse suportar. Um escritor, ele dizia, nunca estava suficientemente sozinho para escrever. De modo a continuar produzindo com energia, até mesmo contra a birra do pai, que não queria vê-lo dormir depois do almoço, ele poderia encontrar qualquer desculpa interior, fosse contra o amor ou contra o consumo de café e carne, embora a realidade às vezes teimasse em contradizer essas determinações.

Felice Bauer,
a primeira noiva

Pouco depois de avaliar que a paixão seria inalcançável para ele, uma vez que seu “organismo” nascera para a escrita, Kafka se enredou amorosamente de forma quase inexplicável por uma trabalhadora doce e obscura de classe média, Felice Bauer, mais interessada na obra do dramaturgo August Strindberg que na dele próprio, e dedicada à família de maneira profundamente compulsória, mais do que a si mesma. Ela era próxima do amigo Max Brod, um dos solteiros de seu grupo social de escritores (e aquele que, além de escrever sua biografia, recusaria o pedido do amigo para que queimasse seus originais). O envolvimento de Kafka com a jovem distante, moradora em Berlim, acabou por consumir muitos daqueles momentos de impulso criativo que ele esperava reservar para a escrita. O autor de “A Metamorfose” não parecia mesmo caber na autoimagem de celibatário infeliz. 

Esta biografia dos anos iniciais, que se faz a partir do espólio de Felice, descoberto por Reiner Stach nos Estados Unidos, inclui as cartas do escritor à amada (sem o contraponto das respostas de Felice, que Kafka destruiu), sempre entremeadas pela crença segundo a qual, para segui-lo, sua noiva deveria se prontificar a viver o inferno em vida. O raciocínio de Kafka, explicitado até mesmo ao pai dela, era simples, e caminhava pelo entendimento pequeno-burguês enraizado em seu meio social. Seria possível compartilhar o leito com quem não via outra razão para a existência exceto escrever, ademais sem ganhar dinheiro suficiente para isso?

O biógrafo Reiner Stach, com o ímpeto de historiador cultural

O biógrafo Stach, de 71 anos, é treinado no entendimento literário, filosófico e matemático. Seu poder de investigação parece infindo, embora ele veja no leitor médio o seu objeto, razão pela qual, ao escrever, jamais ceda à obscuridade. Como historiador cultural, Stach considera não apenas os fatos que cercaram a vida do escritor judeu em língua alemã na antiga Tchecoslováquia, mas também o conceito de sucesso e de fracasso literários naquele palco onde Kafka, em busca de concretizar sua visão, desconsiderou a gravidade da Primeira Guerra Mundial (é celebre a entrada em seu diário na qual diz ter ido nadar à tarde depois de decretado o conflito de manhã), distanciou sua literatura do sionismo militante praticado pela figura controversa de Brod e exerceu o humor aprendido no teatro iídiche mesmo em textos improváveis de sua autoria, como “O Processo”, cujo primeiro capítulo ele lera habilmente em voz alta de modo a provocar a risada dos amigos.

O flerte obsessivo com Felice foi uma prova muito dura. No verão de 1912, deu-se seu encontro com ela, e a difícil decisão de cortejá-la de maneira quase totalmente epistolar. Dois anos depois, aconteceu o rompimento do noivado. Nas duas vezes, diz seu biógrafo, Kafka sentiu estar sendo empurrado para a margem de sua própria existência. Nas duas vezes, ele mobilizou uma poderosa vontade de entrar nos moldes para combater a dissolução mental. Stach compreende estar lidando com uma mente poderosa e não busca rivalizar com ela, antes compreendê-la, algo seguro de que vai fracassar. Ele sabe que tudo o que percebe, Kafka aplica no que escreve, às vezes composições inteiras primeiramente deitadas nos diários que vão se tornar pequenos livros. Seu biografado está imbuído da perfeição, ciente de que sua missão é distinta de todos à volta, até mesmo do escritor Robert Musil, que o aceita no meio literário com reservas. Kafka era único no que fazia e podia provar.

Os melhores momentos da biografia situam-se na constatação da diferenciação deste saber. O que torna Kafka tão distinto de todos os artistas que o cercavam? Não era somente sua linguagem direta, enxuta, moderna, que certa vez obrigou um editor a aumentar o tamanho dos tipos e o entrelinhamento das páginas para apresentar ao mercado literário um volume de tamanho razoável contendo seus textos. A grandeza de Kafka estava no entendimento total que ele tinha de uma situação antes de relatá-la. Ao contrário do romancista polonês de língua inglesa Joseph Conrad (1857-1924), por exemplo, que certa vez disse ter construído a protagonista Winnie Verloc, de “O agente secreto”, a partir de observações coletadas ao acaso, Kafka começa a produzir a partir de um reservatório de ideias “que já está cheio”.

“A Metamorfose”, longe de ser
seu livro predileto

Em seus diários, pode-se ler a evolução dos pensamentos que vão resultar em um futuro texto. Os diários comprovam que os campos de tensão, as metáforas, os gestos e os detalhes já estão prontos, frequentemente até na forma exata que terão no futuro. “Kafka não trabalha o abalo sofrido, ele trabalha o material acumulado que foi liberto pelo abalo”, observa Reiner Stach. “Assim se explica que as referências e associações entre os elementos visuais e linguísticos de seus textos tenham uma densidade tão única e desafiadora. Tudo parece corresponder a tudo. É como se Kafka não precisasse inventar ou desenvolver mais nada e pudesse usar toda a sua força criativa na integração, na perfeita articulação de todos os componentes.”

Mais que isso, ele constrói uma tensão que não será resolvida pela saída tradicional, a morte. A tensão em Kafka provém de uma perspectiva inusual para seus contemporâneos. É uma perspectiva que expõe apenas o que está dentro do horizonte de percepção do protagonista. O leitor entra em um estado de identificação cada vez mais forte com esse personagem, como se estivesse “sob o efeito de um campo gravitacional”, no dizer de Stach. É o caso de “A Metamorfose”, um texto que Kafka escreveu enquanto permanecia obsedado pela conclusão de outro texto, “O desaparecido”, e que não sentia a menor urgência em editar, tão espontâneo fora escrevê-lo e concluí-lo. “A Metamorfose” nascera da sensação de que nem mesmo sua única confidente, a irmã Ottla, aceitava sua necessidade de se distanciar de um empreendimento familiar, uma fábrica de amianto na qual a família desejava ter seu empenho, justamente nas horas vespertina de descanso. Ele chegara a um ponto de desvalorização pessoal sem volta, como uma barata pisada, conformada com seu destino. Kafka sempre quis ser publicado, mas jamais desejou aparecer. Especialmente, aparecer com este livro foi uma espécie de fim.

Esta resenha foi publicada originalmente pelo site do caderno Aliás do Estadão em 11 de janeiro de 2023

Um mar de sangue em uma ilha de sal

Ganhei da amada Lulina no meu aniversário. Demorei pra engrenar, embora seja tão direto e simples. Descrever o aborto, comparar o exame da gravidez com o da aids, essa secura, essa distância, irrelevância, tudo isso que nos torna humanos, esse exercício existencial pra nos fortalecer, é difícil, mas feito sem assumido desejo de perfeição, sem rancor. Tão bonita essa ilusão, tão francesa. Annie Ernaux acaba de ganhar o Nobel de Literatura, porque a autoficção nasceu pra vencer. Neste livro, a cada golpe corresponde uma tranquilidade. Um mar de sangue em que há uma ilha de sal. A tradução de Isadora de Araújo funcionou pra mim como um dez.

Kafka, o oráculo

Às vezes sinto que Kafka vive em mim. Hoje, por exemplo. Enquanto me encontro à espera da eleição para presidente do Brasil, amanhã, abre-se no meu colo esta narrativa de traduzida por Modesto Carone e incluída no primeiro livro do grande escritor, “Contemplação”, de 1912. Com vocês, “Para a Meditação de Grão-Cavaleiros”:

Franz Kafka aos 22 anos, em 1905

Para a Meditação de Grão-Cavaleiros

Nada, pensando bem, pode induzir alguém a querer ser o primeiro numa corrida.

A glória de ser reconhecido como o melhor cavaleiro de um país é um prazer forte demais — no momento em que a orquestra dispara — para que na manhã seguinte seja possível evitar o remorso.

A inveja dos adversários, gente mais astuta, bem mais influente, tem de nos doer na estreita ala através da qual agora cavalgamos depois daquela planície que pouco antes estava vazia à nossa frente, com exceção de alguns cavaleiros arredondados que faziam carga, pequenos, contra a fímbria do horizonte.

Muitos dos nossos amigos correm para retirar o prêmio e só por cima dos ombros é que nos gritam dos guichês distantes o seu hurra!; mas os melhores amigos não apostaram em nosso cavalo, temendo que, em caso de perda, tivessem de ficar zangados conosco; agora porém que o nosso cavalo foi o primeiro e eles não ganharam nada, dão-nos as costas quando passamos e preferem olhar ao longo das tribunas.

Firmes nas selas, os concorrentes atrás de nós procuram avaliar a desgraça que os atingiu e a injustiça que de algum modo lhes foi infligida; assumem um ar bem-disposto como se fosse preciso iniciar uma nova corrida, agora séria, depois desta brincadeira de criança.

Para muitas damas o vencedor parece ridículo, porque ele se enfatua e no entanto não sabe o que fazer com os eternos apertos de mão, continências, mesuras e cumprimentos à distância, enquanto os vencidos mantêm a boca fechada e, absortos, dão palmadas nos pescoços dos seus cavalos, que na maioria relincham.

Finalmente do céu que ficou turvo começa a chover.

A culpa interditada: Lygia vê Capitu

Lygia Fagundes Telles
em foto de Olga Vlahou

Nesta reportagem publicada em 21 de agosto de 2008, Lygia Fagundes Telles fala sobre o roteiro feito em parceria com Paulo Emilio Salles Gomes, relançado em livro, que muda o foco narrativo de “Dom Casmurro”

Os diretores de cinema apareciam de mochila nas costas para visitar Lygia Fagundes Telles e Paulo Emilio Salles Gomes naquele ano de 1967. Ela era, como é ainda, uma das grandes escritoras do Brasil, e ele desfrutava o título de maior crítico de cinema em terras nacionais. A Vila Mariana onde moravam, dizia Paulo Emilio, fora um charco originalmente, e por esta razão ele apelidara seu apartamento paulistano de Sapos. Um dia, o diretor Paulo César Saraceni chegou ali munido não só de mochila, mas de um olhar oblíquo e dissimulado. Com ele, Saraceni os convenceria a transformar em roteiro de cinema o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.  

 

“Este Capitu nos deu uma tarefa difícil”, disse Paulo Emilio a Lygia, quando Saraceni, em quem ele vira aquele olhar da protagonista do livro, deixou Sapos para trás. O casal não começou imediatamente a trabalhar na adaptação do romance de 1900 no qual Bentinho, apelidado dom Casmurro, desconfia que sua amada o trai com o amigo Escobar. Seria preciso convencer Lygia de certas coisas antes, ela que era formada na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e fazia julgamentos a partir de evidências.

 

Quando leu o livro de Machado de Assis pela primeira vez, ainda universitária, Lygia se convencera de que o protagonista era um homem “inseguro e invejoso”, desmerecedor de confiança, ainda mais porque não outra voz, além da sua, falava no romance. Na segunda leitura, contudo, ela mudaria o pensamento por completo. Sim, Capitu seria a amante de Escobar. Ele era um homem muito mais atraente do que Bentinho, para começar. E havia alguns “indícios jurídicos” muito fortes a serem considerados pela escritora para que ela estabelecesse a culpa deste Leviatã.

 

Em uma cena do livro, Bentinho se cansa do espetáculo de teatro a que assiste, volta para casa e lá está Escobar com Capitu. Não havia motel para encontros naquele tempo, então é claro eles faziam ali o que não poderiam fazer em outro lugar. Depois, havia outra coisa. O menino Ezequiel, embora exímio imitador de todos, remedava perfeitamente Escobar, o que fora notado por ninguém menos que a própria Capitu. O velório de Escobar, por fim, sepultara qualquer chance de redenção à mãe de Ezequiel. Dona Sancha, a viúva, chorara tanto na ocasião quanto a traidora. As lágrimas de Capitu formaram mais um daqueles mares de ressaca, capazes de arrastar um observador, dois ou três, para dentro de si.

 

Estas certezas todas, apresentadas com eloqüência de advogada já na rua Sabará onde os dois passaram a morar, deixaram incrédulo o marido da escritora. Paulo Emilio era um grande professor, mas, se entrasse nesta discussão à maneira de Lygia, não convenceria a talentosa mulher de seu ponto de vista. O negócio era agir como padre: “Você precisa se limpar, você não pode julgar Capitu”, disse ele a Lygia, certo de que as provas que ela acumulara se mostrariam inúteis. O que ele pregou à esposa no momento seguinte a convenceu em definitivo: “Se o triângulo amoroso existe ou não, isto não interessa a você. Tem de haver a dúvida, ou haverá traição a Machado de Assis.”

 

O escritor narrara para intrigar, e teria esclarecido a trama ao final, fosse esse o seu desejo de ficcionista. O que ele parecia almejar, contudo, era que ficássemos discutindo aqui por longo tempo sobre um enigma maravilhosamente urdido e sem solução. Tão essencial é este livro que Lygia, por exemplo, tem-no como o primeiro de Machado, seguido de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. É uma tendência que de certa forma a Universidade de São Paulo segue: Dom Casmurro como a melhor fabulação, Memórias, como a experimentação maior.

 

Se não poderia culpar Capitu em seu roteiro, Lygia enfocaria o sofrimento terrível de Bentinho. Que outra coisa faz este personagem dentro do livro, a não ser penar? O roteiro seria, neste ponto, sobre o sentimento de ser traído, não sobre a traição. E seus autores fariam mais uma coisa interessantíssima, ousadíssima, para falar na língua de superlativos do agregado José Dias: anulariam o foco narrador. No roteiro, não é Bentinho quem conta a história. É um terceiro que urde a trama, iniciada na lua de mel de Capitu e contada livremente pelo tempo de vida dos personagens.

Nascido desta escolha, o livro que originou filme homônimo de Saraceni em 1968 resulta suave, mas intrigante. E é capaz de impacientar quem aguarda respostas claras ou anseia sempre pelo ponto de vista roubado. Goffredo Telles Neto, o filho de Lygia, morava com ela e Paulo Emilio naquele ano de produção crucial, e tomou as folhas datilografadas por Lygia para saber o que tanto elas tramavam. O Jovem, como o apelidara Paulo Emilio, leu e ficou sem entender aonde a escritora queria chegar. “Mamãe, dá sua opinião de uma vez! Ela traiu ou não?”, ele a inquiriu. E a autora foi sincera com o filho: “Eu não sei, eu não sei!” 

 

Lygia tem 85 anos. Para ela, ainda hoje, a traição é  “a dor maior”. Os tiros que de vez em quando os ciumentos desferem sobre as namoradas, segundo ela tem notícia a partir da leitura “destas revistas”, ainda prosseguem acontecendo. Seu ponto de vista, portanto, parece validar-se todos os dias. A traição incomoda. É eterna, enquanto o homem é breve. Paulo Emilio morreu em 1977  e o único filho de Lygia, Goffredinho, há dois anos. Lygia entende de que o sofrimento trata.

Ela dá entrevista no apartamento que habita há um bom tempo nos Jardins paulistanos, em cuja entrada há palmeiras imperiais. As palmeiras são bonitas e resistem à poluição, aos carros que buzinam, à gente que passa, vinda da rua Oscar Freire chique. Lygia não arreda pé dali, apenas para eventos aos quais os amigos insistem em convidar. O livro “O Demônio do Meio-Dia – Uma Anatomia da Depressão”, de Andrew Salomon, ainda repousa em um canto de sua sala, mas parece não se relacionar à pessoa que dá a entrevista.

 

A escritora é pessoalmente assistida pela neta, a professora de português Lúcia Telles. Aos 29 anos, Lúcia trabalha sobre cartas de Paulo Emilio para um mestrado. E ajuda Lygia em tudo, até quando uma palavra lhe falta. A certa altura da conversa com a CartaCapital, sugere à avó que catequisar é  o vocábulo certo para designar quem deseja transmitir a mensagem cristã. Com a neta ao lado, Lygia está bem. Ela liga a televisão minúscula onde a avó assiste a Ciranda de Pedra, uma novela que a diverte, sem qualquer relação com seu romance de 1954, segundo Lygia sabe muito bem. Ela também sorri, e fala como atriz, ao invocar seu muito querido Machado de Assis e a própria literatura. Queria tanto que seu Capitu fosse filmado de novo!

 

Está indignada, por ora, que a imitem e ainda cometam a ousadia de lhe mandar os originais com as imitações para ler. Rubem Fonseca lhe contou que isto também vem acontecendo com ele. A literatura de Lygia é inconfundível, forçoso notar que não a imitariam direito. Ela tem um conto que o filho não teve tempo de filmar, Potyra, sobre um vampiro que deseja morrer no Brasil. Quem sabe, entre os contos e o romance novos que prepara, não caiba uma roteirização desta peça ficcional, em companhia da neta constante? 

 

Esta escritora se diverte, apesar de tudo. Eleva a voz como uma atriz e pontua com graça as frases perfeitas. Está lúcida e grande, e seu olhar ainda encara o interlocutor como quem o arrasta.

 

Otto Guerra em autorretrato

O escritor e produtor de cinema narra com especial humor sua sina no desenho brasileiro

A bela, fluida e bukowskiana autopornografia de Otto Guerra

Dos livros lindos que recebo.

Você lê esta autobiografia do desenhista e produtor de cinema Otto Guerra de uma sentada só (ops).

“Nem doeu (autopornografia)” prova o que o seu humor fluido-surreal-alucinante porno-bukowskiano pode fazer por nós num país tão desgraçado quanto este.

Podemos rir!

Mas não rimos dele só porque somos maus. Rimos porque a saga deste escritor nem difere da nossa tanto assim.

E porque podemos, estimulados pelo homem, quebrar realmente tudo.

A editora do novo livro de Otto Guerra é a Mmarte (mmarteproducoes.com) e os editores, Márcio Jr e Márcia Deretti.

O tigre Llosa e eu

Não sei se acontece com vocês. Mas eu sou do tipo devagar. Demoro a perceber que realmente não sou bem quista em certos ambientes. Devo achar, por alguma razão misteriosa, talvez fundada em minha educação, que mereço ser considerada sempre. E quando acontece de os laços se desfazerem inequivocamente, fico impressionada. O susto demora a acalmar.

Acontece no trabalho. Na vida com amigos. Aconteceu nos namoros. Por que não percebo e não dou no pé? Acho que sempre vão me chutar antes.

Uma vez foi exatamente assim com Mário Vargas Llosa. Nunca fui fã do homem. E o escritor… eu preferia todos os latino-americanos antes dele. Adorei a análise que fez de Flaubert. De Madame Bovary. Reconheceu-se nela, mesmo sem o dizer. Escreve bem porque lê bem. Mas é isto. Pra mim, falta um toque pra me alcançar como leitora.

E então aconteceu de eu ir entrevistá-lo. Nem estava a fim. Tinha medo daquela figura, do seu cabelo liso, dos dentes. Ele começava a falar pelos cotovelos na imprensa elogiando os Tigres Asiáticos. Toda aquela sorte de bobagens partida do escritor-candidato. E então pensei: se eu conseguir que ele seja honesto comigo, vai ser bom, não vai? Vou gostar, não vou?

E fui. O problema era que eu trabalhava no JT. E ninguém no mundo editorial morria de vontade de frequentar aquelas páginas. A editora já tinha escolhido os quatro de sempre, Veja, Estadão, Folha e Globo, a quem ele concederia as entrevistas brasileiras. Mas uma boa alma na assessoria decidiu, talvez por eu ter feito algumas boas entrevistas antes, que eu poderia pegar o táxi com ele até o aeroporto.

No táxi? Tá bom. Pelo menos seria uma entrevista diferente. Perguntei-lhe o que pude, literariamente falando. Me lembro de ele gostar de trocar ideias sobre Melville, sobre Moby Dick. Conversávamos até animadamente quando de repente eu cheguei com os Tigres, uma pergunta que Renato Pompeu me ajudou a formular. Sua mulher o tempo todo olhava pela janela, o cabelo pintado de preto, os grandes óculos de mesma cor. Mas ué, o Llosa não gostava das bonitas? Não brigou com Garcia-Marquez por isso?

Claro que não perguntei sobre a desavenças com seu antigo amigo, nem sobre suas preferências femininas. Mais sóbria que eu, naquele momento, impossível. Mas depois dos Tigres ele se calou.

Chegamos ao aeroporto e continuei ao lado deles. Achei que pudesse retomar o fio. Até que a repórter fotográfica que fazia o papel de acompanhante/assessora, pelo lado da editora, olhou pra mim e berrou: “Não tá vendo que tá importunando? Dá o fora!” A mulher era (ainda é) um cão. (Depois soube de outras pessoas parecidas na fotografia. Logo na fotografia, que amo.)

Dei o fora.

Me lembro do casal imperturbável. E que ele, de costas, tinha um redemoinho no cabelo.

Anos depois, um amigo peruano de meu filho, também conservador, me disse algo que não me saiu da cabeça. O problema com Llosa é que ele “fala pelas feridas”.

Adorei ouvir. E me reconciliei de imediato comigo. De quebra, tive pena da pobre moça que me agrediu.

Preciso de muitos insights assim para curar eu mesma minhas feridas – e não falar por elas. Demora, né? Mas eu consigo. Vou conseguir.