Polarization news

Quando passeio pela avenida Ipiranga…

É domingo, vou à feira no centro e já estendo o peito para colarem todo tipo de adesivo pró-Lula, até porque, na feira, o Verme não entra. Às vezes acho que nem panfletagem os vermináceos fazem mais. Os rios do orçamento secreto devem desaguar diretamente nas fakes do zap.

Bom. Vamos fazer pastéis em casa e na feira não tem catupiry. Me mando pro super dos chineses, mais barato no geral, em busca do ingrediente. Porém é domingo e os chineses não estão lá. Pergunto pro marrento branco gordo, funcionário de bermuda e boné, se têm catupiry. Me olha. Afasta os olhos. E me diz não, de lado. É o tipo físico do miliciano, mas se trabalha, miliciano não deve ser, só um fã estupidificado, mais um.

Me resta o supermercado do bairro também frequentado pela besta do Augusto Nunes, jornalista que, zumbi véi, sempre adentra o espaço sem olhar pros lados. Fazer o quê? No Carrefour, também aberto, não entro nunca mais, então só tenho essa opção. E penso: sempre que vou a esse mercado do bairro (e nem é sempre, visto o preço alto das coisas por lá) me tratam bem. Caem dois adesivos do peito pelo caminho, resta um, quase no ombro. Aperto pra ele ficar coladinho. Vamos ver como reagem.

Entro e encontro o catupiry, assim como o palmito, o aliche em conserva e o fundo de alcachofra. Fecho os olhos e decido levar tudo no meu cartão de crédito. Vou até a caixa e ela me olha por trás da máscara, a franja progressiva preta, solta, caindo sobre olhos. Penso: lá vem. Ela aponta meu ombro. “Esse sim!”, faz com um sinal de positivo. Ao nosso redor, ninguém. “Só não posso dizer isso aqui, mas é nele que vou votar”. Eu fico tão feliz e desconcertada a ponto de lhe dizer: “Isso aí, companheira!”

E são estas as notícias de polarização do dia.

Um mar de sangue em uma ilha de sal

Ganhei da amada Lulina no meu aniversário. Demorei pra engrenar, embora seja tão direto e simples. Descrever o aborto, comparar o exame da gravidez com o da aids, essa secura, essa distância, irrelevância, tudo isso que nos torna humanos, esse exercício existencial pra nos fortalecer, é difícil, mas feito sem assumido desejo de perfeição, sem rancor. Tão bonita essa ilusão, tão francesa. Annie Ernaux acaba de ganhar o Nobel de Literatura, porque a autoficção nasceu pra vencer. Neste livro, a cada golpe corresponde uma tranquilidade. Um mar de sangue em que há uma ilha de sal. A tradução de Isadora de Araújo funcionou pra mim como um dez.

então pronto.
eu me admito triste.
desde domingo não sou a mesma.
dor de cabeça, de corpo.
energia zero, sem dormir e lutando pra cumprir o mínimo.
mas isto não importa.
dá pra fazer tudo igualzinho com ou sem dor.
não que resolva muito, mas continuo denunciando fake news nas redes sociais.
discutindo com uberistas e porteiros se for o caso.
enchendo os amigos com as informações que tenho e trocando o que tenho pelo que me dão.
f-se.
não vou parar de viver só porque essa meia dúzia troncha de vizinhos resolveu que eu não sirvo.
essa meia dúzia é que não me serve, ela que não aguentaria um minuto de discussão com a gente.
vão achando que canhões matam ideias, vão!
nunca dei bola pra classe média paulistana, não ia ser agora.
espero que acordem, mas se não acordarem, que pena.
até a xtébtis sabe diferenciar um pato de um laranja!
e se a minha pessoa querida, minha conhecida, que perdeu seu filho pro Brasil já voltou a lutar, como eu ficaria quieta?
é tudo difícil como sempre foi.
e a gente sabe mais que ninguém que está lutando por nossas vidas, por nossa comida, nossa saúde, nossa escola, nosso impossível!
ainda temos tempo, sim.

Me dê motivo

O corpo pesa. Cadê energia pra reescrever o texto titubeado e, ainda por cima, encontrar um título. Atraso a leitura do calhamaço pra resenha. As pedras rolam devagar. Bocejo. Colocar toda a roupa no varal foi Sísifo. Vou à hidro depois de ontem? Meu entrevistado me encostou na plateia. E eu, nesta vida, sempre tão boazinha pros outros. Inferno. Água morna. A prófi tá séria. Eu diria braba. Não pergunta nada, não conversa, não converso. A aula começa com Alceu Valença: tu vens, eu já escuto teus sinais. Depois Lulu: tudo muda o tempo todo no mundo. Tim: te espero para ver se você vem, não te troco nesta vida por ninguém. Percebo que a música popular do meu passado é só charme pela reconquista. A sedução humilhada em troca daquele quartinho com cama dos fundos. Nunca desistir de quem nos chutou, senão onde iremos dormir? Me dê motivo pra ir embora. Capoeiramos. A aula vai ser só MPB hoje. Talvez eu fique melhor. Na última, o pop Transamérica distraiu meus pensamentos. Prófi queria seus alunos relaxados pra domingo, mas agora se sente puta por ter acreditado nesses perus e bacanaços. Haja sequência subliminar pra importunar os véi. Abdominal vai fazer a barriga de vocês doer amanhã. Vocês estão trocando a mão pelo pé. Eu só faço hidro porque me sinto bem depois. Faltam dez minutos pro alongamento. Cinco. Três. O que será que vem? De olho nos teus sinais. Tu vens. Call me Elvis. We can’t go on together with suspicious minds. Gosto da parte em que, depois de esticar o braço, bato na água com força: toma, minion! Nós a aplaudimos. Ela nos aplaude de volta. Depois que suspiramos, o aviso: esta é a minha última aula pra vocês.

O meu Piauí

O texto a seguir foi publicado em junho de 2009 na coluna virtual que tive na revista de Sr. Democracia. Quando saí da publicação, há seis anos, tiraram do ar tudo o que escrevi para eles – felizmente, digo eu, já que aquilo produzido por mim ali de fato não lhes pertence.

Este texto, por exemplo, decidi escrever enquanto chorava os efeitos de uma enchente no estado que não causava a menor comoção nos meus conhecidos. Eles estavam por demais habituados a debochar do Piauí para sentir qualquer empatia pelos piauienses, razão pela qual decidi responder-lhes com meu protesto. Hoje sabemos que a terra de Mário Faustino e de Torquato Neto orgulha todos nós mais uma vez: ela jogou na cara do verme despresidente um não eleitoral rotundo, de mais de setenta por cento dos votos no estado.

Um protesto, aliás, a seguir uma tradição de protestar… A data de 13 de março de 1823, inscrita na bandeira piauiense, refere-se à Batalha de Jenipapo, ocorrida em Campo Maior. Seis meses depois da proclamação da independência, piauienses, maranhenses e cearenses lutaram às margens do Riacho Jenipapo contra as tropas portuguesas comandadas pelo major João José da Cunha Fidié. O 7 de Setembro ocorreu pra valer, como a gente observa, um semestre depois, e o riacho era outro. As tropas portuguesas usaram armas de fogo e os sertanejos, algo desprovidos delas, tudo o que tinham. Em sua maioria mercenários bem treinados, os portugueses ganharam a batalha, mas perderam a guerra da independência graças às táticas de guerrilha dos sertanejos: após o combate do Jenipapo, num assalto de surpresa ao acampamento militar, eles se apoderaram dos armamentos, da munição, do dinheiro e da bagagem do Major Fidié, e cercaram o caminho para Oeiras, forçando o comandante português a se retirar do Piauí e de sua pretensão sobre o território na América.

A história é minha alegria.

Viva o Piauí!

E quem sabe:

Take me back to Piauí!

Minha mãe nasceu no Piauí, o que, suspeito, tornou-me rara. Conheci o Piauí de perto. Ninguém na maior parte do Brasil parece saber o que o Piauí é. Mas, na minha infância, ele não tinha mistérios. Era apenas indescritível. Um céu com mais estrelas.

Os colunistas de blog da atualidade, os atores, os filósofos do saber, acham interessante dizer que, com essa enchente terrível, responsável por deixar dez mil desabrigados no estado, o País todo fica com a cara do Piauí. Como se ao Piauí equivalesse a máxima miséria brasileira e como se, ao evocar seu nome no título de uma revista cultural, a ironia pelo contraste estivesse perfeita.

Observo que muitos males ainda pendem do imaginário dos pensadores locais. Antes o Brasil se parecesse com o Piauí. Dizer Piauí é dizer uma utopia que o País não alcança. São pobres lá, antes e agora, como foram e ainda serão os brasileiros em todos os recantos das cidades ricas. Mas são também ricos no Piauí, como poucos suspeitam. As escolas, a arqueologia, a poesia, um cotidiano de profundas marcas.

Outro dia, em uma festa a que compareci, alguém se aventurou ao curioso raciocínio: “Se não conheço ninguém que tenha vindo do Piauí, o Piauí não existe. Não conheço ninguém que tenha vindo do Piauí.” Não sei o porquê da sem-cerimônia com relação ao estado de triste sina. Se não conheço ninguém que tenha vindo do Rio Grande do Sul, por acaso ele teria deixado de existir?

Lembrei-me, ao presenciar o exercício dessa complexidade lógico-linguística, que “lugar nenhum” é o significado para utopia. Thomas Morus utilizou a palavra no título de um livro clássico do século XVI. Era um relato ficcional irônico, provando a impossibilidade da vida perfeita. Com o passar dos anos, Morus preferiu que esquecessem o que escrevera e se dedicou, como padre, a condenar os pensadores viajantes.

O Piauí é utópico. E os ironistas sem linha se servem dessa utopia.

Minhas férias de verão aconteciam em Floriano, no sul do estado. Férias de quase três meses. O verão que eu passava por lá era inverno para os piauienses, porque chovia. Na cidade piauiense, a terceira do estado, ardente apesar de seu estado invernal de dezembro a março, as lavadeiras tiravam a blusa a céu aberto e passavam sabão nos seios sem se importar com quem as observava. O rio Parnaíba onde lavavam quilos de roupa de encomenda era marrom como o barro. O rio afogava os desavisados, eventualmente paulistanos que integravam o Projeto Rondon. Os cavalos, vez por outra, deslizavam mortos pela forte correnteza e eu assistia a sua última viagem. O sol se punha sobre Floriano, e eu o observava da margem oposta, na Barão de Grajaú maranhense.

A avenida mais bonita dessa cidade dava para o cais, onde se atracava um restaurante flutuante. Era uma avenida não como se entende uma grande via de asfalto urbana. A avenida do cais vinha calçada de pedras. A via séria, principal, era a Getúlio Vargas, que seguia contínua até a igreja da praça. De noite, a gente jovem andava por ela em círculos.

Sentados na praça, ficavam os meninos a observar os cabelos novos das moças, tirados da novela da Globo, que passavam no estado com atraso de meses. Em pé, alguns loucos, como o juiz que falava “gudnaite!” em respeitado inglês, faziam-se ouvir por trás do terno azul, do chapéu e da bengala. Havia a jovem negra continuamente grávida, alegadamente louca, de chupeta na boca, de nome Ciça. O vigário corria atrás dos casais improvisados atrás da matriz. As missas do padre Pedro eram gloriosas, porque educavam os fiéis. Irmão que casa com irmã, dizia padre Pedro, tem filho sem cabeça nem pé.

Nos anos 70, não havia esgoto na cidade cujo nome homenageava o terrível marechal republicano. As vacas e as cabras andavam soltas na rua e o sol moía os olhos dos pedestres. Era uma festa quando chovia, porque a água banhava as crianças, que levavam sabão e toalha para a calçada. As casas amplas tinham terreno para galinhas, viveiros de pássaros, goiabeiras e umbuzais. Como não havia encanamento em todas as casas, o banho frio usualmente partia dos baldes retirados de poços. Matava-se a sede com a água de um pote de barro, colhida por meio de concha grande de alumínio.

As comadres se sentavam à noite em cadeiras plásticas coloridas trançadas, diante de suas casas. Conversavam porque a televisão encerrava expediente às nove. Enquanto elas atualizavam histórias dos vizinhos e dos fantasmas, nós, as crianças, andávamos de bicicleta até a igreja e o cais, sem medo de bicho papão. Mas nos escondíamos dos adultos quando ocupávamos a garupa das lambretas.

O Carnaval de rua de Floriano era lindo, remetendo a um século anterior. Havia blocos em que nos encaixávamos, aprontando a roupa igualzinha, pelas mãos de habilíssimas costureiras pobres. Os blocos saíam arrumados e os moleques sem dinheiro investiam contra eles com suas bisnagas cheias de xixi e uma porção de tinta. A apoteose ocorria quando todos os blocos se encontravam na tal avenida do cais, dançando ao som de exímios músicos andarilhos, de manhãzinha. Em casa, esperavam-nos o cuscuz de milho com manteiga ou o caldo de mocotó. As mães e tias dormiam.

Há tanto sobre o Piauí entre aquelas coisas recortadas de minha memória que renderia muitas pequenas colunas. Não me cansaria de falar da sabedoria daquela gente em meio à miséria, cercada da imensa luz da noite. No chão de terra batida das casas, naturalmente, os homens se submetiam aos coronéis. Na Piauí dos anos 70, havia duas classes apenas. Os pobres, que sorriam. E os ricos, cuja fortuna, citando Charles Chaplin, nascera de um crime social. Para sobreviver à pobreza, era preciso agregar-se aos ricos.

A miséria no Brasil pode se equivaler àquela piauiense, mas não é a mesma. Quando se vive na favela paulistana ou fluminense a lua não é mais branca do que aquela.

Dock of the bay

quem é fascista, quem não é?

Espero a hora de minha fisio começar escondida num restaurantezinho árabe da Paulista, quando de repente me dou conta de que já entrei no modo que vai durar um mês: olho os passantes apenas pra identificar sua bolçonalidade.

Motoqueiros, todos, sim porque sim! Porteiros, check. Garçons, só os homens. Mendigos e bêbados, lulistas comigo pra pegar um troco. Donos de bancas de jornais, bolços desde antes de nascer. Consumidoras loiras de roupas no torra-torra, sim, claro. Fruteiros, um mistério. Chingling, nem escondem.

Outra característica interessante minha neste momento é que não tenho ideia do que estou fazendo. Vocês pelo menos gostam de televisão e se distraem com aquilo, pensem na vantagem.

A imprensa diz sem dizer

Entendem? É Bolsonaro quem “vai” nesta manchete. É ele quem age. Quem tem o corpo em porção maior na foto, com semblante entusiasmado, mas sereno. Lula se esforça pra acenar, esmagadinho na composição da imagem, inclinando-se, enquanto Bolsonaro está ereto, luminoso. Não é preciso pensar muito, nem mesmo ler o texto da manchete, para entender como o jornal vê o momento.

Pra cima deles com nossos vermífugos, moçada

Por que as pesquisas eleitorais erram? No caso atual, há pelo menos uma explicação. Os institutos tiram suas conclusões a partir de um mapeamento do país proporcionado pelo censo. Mas, por certo, perdemos o censo! Ele foi tirado de nós, em tempo, para que não soubéssemos quem somos até a eleição.

Véus.

Uma vez que a canalhada escondeu o país onde vivemos (encolhidos e humilhados, por sinal), nós nos desatualizamos sobre nós mesmos. Quem somos? A base de dados desatualizada não ajudou ninguém a compreender o país antes de inquiri-lo nas pesquisas eleitorais.

Todas as informações relevantes, como aquelas sobre nossa saúde, por falar nisso, estão ocultas há tempos. É muito sigilo correndo solto, não somente sobre os crimes e o cartão corporativo da família verminácea – simplesmente nossas vidas têm sido obliteradas, sem que nos demos conta da proporção voraz em que isto ocorre.

Somente essa falta de informação proposital na área da saúde pública, por exemplo, já teria sido motivo para impeachment do governante uns dois anos atrás. Mas nada é feito neste país quando todas as instituições, como a imprensa, estão tomadas pelo desinteresse em mudar. A imprensa, a Procuradoria-geral, o Congresso, a Justiça – todos os que deveriam lutar por nós não querem fazê-lo. O espaço público, queridos, encolheu.

Enquanto isso, outro encolhimento, o cognitivo, prossegue lancinante por meio da existência zapeada dos brasileiros, em especial a dos pobres, mas a dos remediados também. É pelo zap que circulam livremente as notícias alucinatórias, fakeadas, que remodelam o conceito de opressão aos oprimidos, para fazer com que ela lhes pareça natural – até justa! Já viram sem-teto bolsonarista? Pois hoje meu marido deparou com um deles remexendo o lixo…

(Um dos memes mais fantásticos que vi nos últimos tempos é aquele que, sobre a ficção distópica “1984”, de Orwell, coloca estas palavras: “Este livro era pra ser um alerta, não um guia”.)

Aceitamos a cegueira porque vivemos nela. É um golpe carniceiro o que transcorre, como vocês sabem. E sofisticado no último, porque se baseia na anulação de nossa habilidade de reagir. Estamos aqui, pequenos, lutando uns contra os outros nos cabos de guerra da internet, onde não cabem os olhos, os sorrisos, o cheiro, os argumentos, a conversa, além disso impondo o pouco que realmente sabemos e percebemos, censurando a mínima oposição, apenas para que sintamos algum poder sobre o outro. Que tal, em vez disso, conversar cara a cara com ele? Talvez tenhamos esquecido como se faz. Mas seríamos tão mais felizes se o fizéssemos.

Eu não sei como isso pode mudar. No fundo do coração, nem creio que seja mais possível.

Ontem, ao consultar o Facebook de minha família bolsonarista, deparei com um vídeo do papagaio pelado da Havan, que pelo jeito é o novo filósofo-astrólogo a substituir o fumante que partiu desta, espero, para pior. Naquele vídeo, um dia antes da eleição, ele pede para que seu espectador vá ao quarto dos filhos e netos, cubra-os e beije-os na cama e depois se ponha a pensar numa só coisa: na Venezuela. “Você quer que os seus sofram como sofrem as pessoas naquele país? Então, se não quer, se deseja um futuro aos seus, veja lá o que vai fazer amanhã na urna, hein?”

Foi das coisas mais assustadoras que vi antes de o dia amanhecer. Até o metrô mais próximo, duzentos ou mais metros, não vi ninguém de vermelho feito eu a caminho da votação. Antes, vinham todos na contramão, assustados ou desafiadores, às vezes animados, mas fingindo não me perceber. E isto para mim significou apenas uma coisa: estamos encolhidos, conforme esses monstros pelados nos ensinaram a ser. Não ousamos mudar o passo, porque, bem, sabe-se lá o que nos espera.

Vamos continuar assim, talvez? Eu desejo que não. Mas, de novo, sem qualquer esperança a circundar meu pensamento… Sou boa de ação, contudo, muito otimista pra agir! E talvez por isso espere de todos nós a guerra de trinta dias para mudar este presidente que é a própria maldição, mesmo que estejamos habitados por nossos medos. Por que, caso contrário, que saída teremos?

Só posso lhes propor isso, ademais no abstrato de suas intuições. Vamos desligar os vermes. Vamos meter-lhes os vermífugos invisíveis de nosso conhecimento, sem dó. E voar alto, por sobre seus canhões.

Quebrando a cara, obra-prima de Giorgetti sobre Eder Jofre

Waldemar Zumbano e Eder Jofre em “Quebrando a Cara”, documentário de Ugo Giotgetti, 1986

O grande Eder Jofre morreu hoje, aos 86 anos. E o Brasil lhe fez justiça por meio do documentário que é uma espécie de contrafacção de “Rocco e seus irmãos”, de Visconti, com “Accatone”, de Pasolini, na qual a história do pugilista remete à de sua família periférica. Não percam a chance de ver “Quebrando a cara”, de 1986, uma obra-prima de Ugo Giorgetti desde a primeira maravilhosa sequência. Aqui, a versão integral no YouTube.

Kafka, o oráculo

Às vezes sinto que Kafka vive em mim. Hoje, por exemplo. Enquanto me encontro à espera da eleição para presidente do Brasil, amanhã, abre-se no meu colo esta narrativa de traduzida por Modesto Carone e incluída no primeiro livro do grande escritor, “Contemplação”, de 1912. Com vocês, “Para a Meditação de Grão-Cavaleiros”:

Franz Kafka aos 22 anos, em 1905

Para a Meditação de Grão-Cavaleiros

Nada, pensando bem, pode induzir alguém a querer ser o primeiro numa corrida.

A glória de ser reconhecido como o melhor cavaleiro de um país é um prazer forte demais — no momento em que a orquestra dispara — para que na manhã seguinte seja possível evitar o remorso.

A inveja dos adversários, gente mais astuta, bem mais influente, tem de nos doer na estreita ala através da qual agora cavalgamos depois daquela planície que pouco antes estava vazia à nossa frente, com exceção de alguns cavaleiros arredondados que faziam carga, pequenos, contra a fímbria do horizonte.

Muitos dos nossos amigos correm para retirar o prêmio e só por cima dos ombros é que nos gritam dos guichês distantes o seu hurra!; mas os melhores amigos não apostaram em nosso cavalo, temendo que, em caso de perda, tivessem de ficar zangados conosco; agora porém que o nosso cavalo foi o primeiro e eles não ganharam nada, dão-nos as costas quando passamos e preferem olhar ao longo das tribunas.

Firmes nas selas, os concorrentes atrás de nós procuram avaliar a desgraça que os atingiu e a injustiça que de algum modo lhes foi infligida; assumem um ar bem-disposto como se fosse preciso iniciar uma nova corrida, agora séria, depois desta brincadeira de criança.

Para muitas damas o vencedor parece ridículo, porque ele se enfatua e no entanto não sabe o que fazer com os eternos apertos de mão, continências, mesuras e cumprimentos à distância, enquanto os vencidos mantêm a boca fechada e, absortos, dão palmadas nos pescoços dos seus cavalos, que na maioria relincham.

Finalmente do céu que ficou turvo começa a chover.