A secretária do Gado e a lição que eu tive

Vocês talvez não tenham idade pra saber que a secretária do Gado, outrora atriz, rejeitou no passado o título de Namoradinha do Brasil.

Rejeitou-o violentamente por uma única razão. Porque não pegava bem. Ela havia sido formada por Antunes Filho no teatro. E, nos anos 1970, o prestígio de todo ator era o palco.

Depois de namorada, embora bem-sucedida na doçura televisiva, ela foi encenar O Santo Inquérito e outras barras pesadas, com grande carga de sexualidade, em plena ditadura. Queria que a vissem como Mulher mesmo antes da Malu.

Eu achava muito bonito esse seu percurso. E me lembro do ato generoso dela ao oferecer seu Troféu Imprensa de melhor atriz a Eva Wilma, que naquela época, em Mulheres de Areia, havia atuado bem melhor.

Uma vez, quando eu já estava na universidade, andávamos à noite pelas imediações do TBC quando ela apareceu. Tínhamos um amigo maluco que trazia consigo uma câmera de tevê de papelão para entrevistar os passantes. Ele não teve dúvida: partiu pra cima da Regina.

– Pô, você deve ganhar um dinheirão na Globo, né?

E ela sorrindo, sempre sorrindo, despida de maquiagem, mal vestida e de óculos, respondeu com calma:

– Pior que não, pior que não.

Uma única vez nessa época me veio uma ponta de dúvida sobre essa sua personalidade, partida de Betty Faria. Acho que ela era a antiga mulher de Daniel Filho, que agora esposara Regina, então creditei sua fala a uma rivalidade específica.

Perguntaram a Betty como via a nova opção artística da colega e ela não teve dúvida:

– A Regina é a única atriz que eu conheço que lutou pra se tornar objeto sexual.

A gente deve aprender a ouvir direito as pessoas.

É a lição que eu tiro.

Loucura

Eu tive um maior amigo
Que trabalhou ao meu lado
Pra redigir com ponto e vírgula
Nos lugares aclamados
As notícias que raramente cabiam
Na mesura miserável do papel.

Era jovem e não parecia,
Homem, e o sabia,
Figura relutantemente emotiva
Que usava o disfarce
Da esquizofrenia,
Da doença de ser muitos
(Uns contra os outros,
Outros em seu nome),
Para distanciar-se do conluio
Das alegres torpezas
De que são feitas
As redações de jornais.

Meu amigo me encheu
de consolo quando,
grávida, eu lhe disse temer
pela saúde mental do
meu filho que nasceria em
Capricórnio ou Sagitário,
uma vez filho meu,
e portanto da minha família,
estranho ajuntamento
de onde vez ou outra
saía ao mundo
a criatura de nove anos de idade
cujo encanto da fala
se perdia
após um grito na noite.

Meu amigo pausava e sorria
recordando-se dos velhos hospitais
onde fora escondido
com o consentimento dos pais
e de si mesmo,
“porque a ciência é necessária”.

Nascido louco,
tanto e a ponto de não reconhecer
a emoção alheia,
nem a minha,
ele no entanto viu
facilmente as claras fantasias
que Luiz Melodia
soltou num verso.

Meu amigo me disse
olhando-me de lado
desde a cadeira preta
com rodinhas
que ocupava,
diante de um computador
de letras verdes:

– Um louco tem fome e sede.
E pode ser feliz como eu,
que assim me fiz.

E eu inerte.
Os olhos presos.

Por Drucker

Mort Drucker, que morreu agora, era o responsável pelas paródias de filmes da Mad. Lá na minha adolescência, líamos a revista, mas nem sempre tínhamos dinheiro para os filmes. Então nós os conhecíamos primeiro pelas paródias do Drucker. Era um humor de mau humor. Ele apontava as incongruências de roteiro, as hipocrisias dos diálogos, a farsa em si dos blockbusters, com um desenho realista. E ansiávamos por uma nova versão de filme, todo mês.

Enfim, artista, vá em paz.

Randau, como não se pode mais ser

É uma pena que ele se tenha ido, considero eu, tão cedo. Um jornalista como não se vê mais, nem parece mais possível ser. Um rigor como pesquisador, um sabedor com forte comprometimento político.

Era sério demais enquanto escrevia. A redação em volta nem parecia existir. Repórter especial, tinha uma mesa só sua, em que as pastas de recortes se empilhavam feito no filme “Brazil” do Terry Gilliam. Sempre sabia o que escrever e como escrever. Ninguém o pautava, nem seria preciso.

A célebre mesa era perto da minha no JT. Então eu tinha esse prazer diário de vê-lo chegar, com sua camisa branca aberta pra fora da calça surrada, e vir brincar com o Renato Pompeu, o outro gênio, o redator que trabalhava ao meu lado e que havia sido seu companheiro em tantas jornadas pelo jornalismo brasileiro.

Na minha lembrança era um homem simples e grande.

Vá em paz.

Nenhum retrato melhor

Se eu sobreviver, uma coisa da quarentena restará em minha memória: a faxina virou lembrança.

Uma tia-avó dedurava minha mãe dizendo que ela havia me achado muito feia ao nascer, ao contrário do que aconteceria depois com meus irmãos. Mamãe nunca negou o que disse. E nela eu acreditei.

Me achei desengonçada a vida inteira. Às vezes, feia de doer. Especialmente quando me sentia de mal comigo, algo tão frequente na adolescência, quando era muito alta pros meninos e por isso (ou por qualquer outra razão) não me tiravam pra dançar. E eram eles quem mandavam no baile, sabem, meninas?

Com o tempo entendi que eu não era mesmo essa coisa extraordinária e que precisaria me virar com o que tinha. Uma força lá dentro, um prazer em observar o mundo – isso me bastaria. Haveria vida, sim, fora da sala dos apartamentos onde uns sortudos dançavam colados.

Até hoje procuro me divertir com a vida. Que uso melhor fazer dela? Me acho muito engraçada nesta montagem que era serviço fotográfico consagrado durante minha infância.

Na maioria das vezes, felizmente, ainda sou a Rosane do meio. Mas as Rosanes pensativas, desconfiadas e/ou irônicas acima dela tomam bastante meus dias. Essa desconfiança e esse pensamento me deram as rugas de agora. Eis por que jamais vou me esforçar em tirar qualquer sulco nascido em torno destes olhinhos. Não existe melhor retrato de mim que eu possa inventar, exceto esse que eu mesma, por décadas partícipe da vida, construí.

Na banheira de lixo da história

Talvez alguns de vocês conheçam este episódio. Mas vou recontá-lo, porque parece ser uma boa hora para isso. Que hora é mesmo agora? Sábado, já?


Não importa. Isolei-me. Vou tardar a dormir.


A história breve que vou lhes contar ou recontar gira em torno desta foto de David E. Scherman.


Na banheira, está Lee Miller.


Sim, Miller, linda mulher que aprendeu a posar criança, modelo de um problemático pai. Musa de Picasso, amiga de Steinberg, estampou a capa da Vogue várias vezes, uma delas em autorretrato que ela mesmo exigiu fazer – um fato memorável, quiçá jamais repetido na história da turma da Condé Nast.

Aprendeu a estar atrás das câmeras com um vaidoso Man Ray, com quem se relacionou amorosamente. Um dia, foi fotografar as dores do mundo, a Segunda Guerra, o estrago num campo de concentração, e convenceu a glamurosa Vogue a publicar o que reportava, algo também inédito até ali.


Tudo parecia maravilhosamente inusual na vida de Lee Miller, principalmente este retrato na banheira, embora seus últimos anos não tenham sido tão mágicos assim.


O retrato foi feito logo após a capitulação alemã, 1945, na casa à praça Prinzregentenplatz, em Munique. Tomada horas antes pelo exército dos Estados Unidos, a residência pertencia a Adolf Hitler.


“A casa se encontrava em perfeitas condições. Havia eletricidade, água quente e aquecimento disponíveis, além de um refrigerador elétrico”, escreveu Miller, gozadora, máxima.

Enquanto estiveram rapidamente por ali, ela fotografou seu retratista, Scherman, na mesma banheira, mas ninguém parece querer republicar esse retrato, vai saber por quê. Ele sorria.


Me lembrei da história (e são tantas envolvendo essa grande mulher) por uma razão trivial.


Quando a gente tomar a casa bozolina depois deste pesadelo, duvido que tenhamos idêntica coragem de mergulhar em sua banheira, suja com o sangue roubado de nós pela família infame – infâmia esta pela qual jamais imaginaríamos um dia passar, vencidos tantos anos desde a destruição sem precedentes promovida pelo bigodudo da foto a quem Miller dá as costas.


Nem por uma imagem histórica sentaríamos numa banheira de leite condensado, não é?


Eu, pelo menos, é que não.

Um presente de Crumb

Viver é isso.
Jantar com Gilbert Shelton, Lora Fountain, Aline Kominsky e Robert Crumb na casa de Leca e Rogério, em São Paulo.
E ainda ganhar este presente feito pelos convidados.
Achei a noite tão especial que escrevi um texto sobre ela.
Mas o Maurício ponderou que não se deve publicar intimidade.
Passados dez anos, ainda não sei.
O fato é que conversamos um tanto.
Aline, Lora e eu, especialmente.
Gavetas, suas lindas.

Quando Miranda morreu

De 25 de março de 2018

Às vezes, em noites caseiras e insones como esta, eu sabia que ele, entre outros amigos queridos igualmente idos, estaria por aqui, quase ao lado, observando com sentimento (com seu jeito bonito ou mesmo contrariado de olhar as coisas) uma foto que eu tivesse colocado, uns versos que houvesse exposto, uma alegria ou talvez uma angústia que me apertasse e que desapareceria pela manhã. (E ele nunca brigou com minha tristeza, nem me julgou esquisita ou estranha por isso, como seria de esperar, e talvez experimentasse, como escreveu, uma admiração de igual.)

Fazia sentido postar nessa abscência se eu intuísse que ele se situava perto para me ouvir. Às vezes estava acordado como eu naquela madrugada de morcegos e me dava sugestões, como a última, para que eu expusesse minhas fotos, especialmente as dos reflexos, e que meu marido desse um jeito com os vinhos para quem aceitasse vê-las numa noite de museu na minha casa.

Ele vivia acordado com seus sonhos, eu fugia dos meus.

Não tenho muitos amigos presentes, eles são circunstâncias, vivem em mim, eu converso com eles em imaginação todo o tempo, talvez a experimentar tardiamente as amizades invisíveis que nunca tive na infância.

Enquanto leio a insolência de Gógol e choro com as tragédias de sentimento sem final de Tchecov, enquanto converso em ondas com esses mares de Bergman, Buñuel e Murnau e busco meu retrato em Walker Evans ou Saul Leiter, prescindo de tudo e todos, de quem tenha sangue pra me ouvir.

Meu amigo à distância que não existe mais viverá.

Naquele dia de sua morte uma mariposa negra me atormentou no quarto, avantajada, inquilina, e eu me assustei a ponto de andar pelo cômodo de guarda-chuva aberto. Quando meu marido chegou em casa e soltou a persiana, ela saiu, mas o coração saltava.

Soube depois.

No momento em que a mariposa deixou nosso quarto, ele partiu também.

Desconfio contudo que ainda permaneça aqui em algum canto, desejando ficar e me ouvir seriamente, expondo um triste e familiar enredo de filme japonês, talvez inventado, no qual os filhos morrem por seus pais, numa transformação poética do esperado e conquistado.

Abro a janela.

Parta com paz, meu querido, para a terra das nuvens e do riso, mas ainda me traga desde o infinito seus brinquedos e perfumes.

Em 28 de fevereiro de 2018

vivo entre as britadeiras de são paulo.
quando não britam no andar de cima, britam aqui dentro.
para superar esses ruídos, que calam a calma, as pessoas acostumam-se a gritar.
gritam lá embaixo, agora, enquanto tento escrever.
não deve ser assalto desta vez.
minha rua tem muitos sem-teto, às vezes fixados nos bancos do calçadão.
falam consigo, com seus cães e com um ser que somente eles podem ver.
desta vez, a voz potente com aflição (creio que de um negro, rivalizando com os britos cheia de docilidade) agita-se.
grita, aparentemente, com alguém que eu poderia ver.
como se falasse comigo.
“ouve, porra, o que eu digo! ouve!”
ou falasse por mim.