A gente luta pra dormir sem livro e não consegue. Então a gente pega um livro de histórias curtas pra ver se o sono embala rápido essa nossa cabeça culpada e doída, na velocidade da historieta.
Toda noite isso.
E nada acontece.
O tempo não existe na literatura. E as imagens são poderosas mesmo se longas ou pequenas. Não adianta usar a literatura pra nada, porque, usada, ela nos rejeita.
Mas isto de ler novelas de Proust na cama na hora de dormir funciona às vezes pra mim, sim. Assim como as novelas e os cachorrinhos nos contos de Tchecov. Bulgakov, que ousei comprar na feira do livro, vai ser interessante absorver no que tem de riso, tristeza e potencial sonífero.
Hoje foi a vez de Conceição Evaristo e seus Olhos d’Água. A passagem do tempo, a profundidade do rio, a cor dos olhos de minha mãe, o espelho que vem a ser nosso inconsciente, a fome, a mulher, quem é a mulher, quem são suas filhas.
Marcello Quintanilha sobre sua carreira e o novo romance em live da página “Viagem ao Fundo do Baú” em 31 de outubro de 2020
Convidada por Francisco Ucha e acompanhada por Ana Gisele França, Toni Rodrigues e Rui Brito, converso aqui com o quadrinhista Marcello Quintanilha sobre seu primeiro romance, “Deserama”, pela editora Veneta.
Uma conversa deliciosa, reflexiva, solta e risonha.
Uma vez o Renato Pompeu, jornalista e escritor brilhante, me disse isto que vou contar agora pra vocês. Ele não falava mal de livro ruim. Isto porque sentia o peso da responsabilidade. E se sua crítica fosse no futuro a última na Terra sobre um objeto extinto, o livro, justamente? A resenha deveria então servir para mais do que simplesmente classificar uma obra no presente como boa ou ruim. O texto deveria evocar a literatura, para que os leitores a reconstruíssem no futuro, por meio de novos livros. Bonito, não? Ontem tive de escrever sobre um filme que não julguei de todo bom. E o pensamento do meu amigo retornou. Mas e se meu texto fosse o último no futuro a restar sobre o cinema, este que teria se perdido? Então minha responsabilidade cresceria. Não que o filme que eu resenhasse fosse ruim. Mas tinha um problema (a meu ver). Embora ainda evocasse lindamente o cinema! Este que no presente dá a impressão de se perder… Então lutei pra aplicar ao cinema o princípio do Renato em relação à literatura. Nem todo filme é cinema, como nem todo livro, literatura. Porém, cinema e literatura precisam continuar a existir. A se refazer. Espero que minha crítica tenha dito isto. Hoje e no futuro, se algum futuro houver… Mais importante que tudo isto, como sou feliz por ter usufruído da amizade com o Renatão! Uma riqueza amorosa de pensamento, como muitos livros não conseguem conter.
“Fotospoéticas”, de Zuleika de Souza e Antônio Paulo Barêa Coutinho, propõe um mergulho nos vestígios do tempo
A MORTA SOMBRA A sombra homem à sua volta a flor que some e já vem torta um vulto sem nome/ quem se importa? fará insone a natureza morta
De que serve um livro sem imagens? Ou, pior que isso, sem poemas? Mas este não é só um livro.
As páginas memoriais de “Fotospoéticas” descrevem o decorrer do tempo. Zuleika de Souza, a autora das fotos, faz poesia a partir de vestígios. Antônio Paulo Barêa Coutinho, o escritor, propõe narrativas expressivas a essas criações visuais que sussurram múltiplos sentidos, por vezes saturadas e contrastadas.
E o que estes dois autores fazem juntos é desmontar o processo conciso em que se dá um poema. A vida é um jogo, como diz Coutinho, e não um sonho. E lá se vão os dois jogar, desfazendo os códigos da visão.
“Fotospoéticas” joga para evocar Cortázar. Leia apenas os poemas e narrativas e você sairá feliz dele. Veja apenas as fotos, na ordem em que for, e a alegria será igual. Tudo se multiplicará quando você ler os dois.
Cada imagem do belo volume remete a uma pequena descrição de Coutinho para além da foto de Zuleika. Ou, melhor dizendo, para dentro dela. Cartier-Bresson dizia que fotografar não é identificar, mas penetrar. Claudio Versiani, que assina o prefácio, sugere que enxergar é identificar, e ver, penetrar – e que a verdadeira fotografia deveria ver.
MEMORIÁGUA Depois da chuva a memória da água escorreu no vidro de lembrar permitiu um tempo que não vivi
Sim, Zuleika tem uma visão penetrante, como se descascasse não só as paredes, mas as nuvens e as sombras, em busca do objeto que elas escondem. Ela vê o jumento na rua, mal amarrado: à espera de quem? As caixas de correio, não se sabe por que permanecem ali, tão bem pintadas. A sombra do vaso com flores evoca um torso.
Suas cenas são pinturas questionadoras com um traçado áureo. Dá pra entender por que Coutinho, economista e doutor em Ciências Sociais, sempre procura o homem quando descreve as fotos. O homem, sua imanência, sua memória, encaixam-se nessa sofisticada geometria das coisas, embora o poeta não deixe de lembrar: “As palavras não se atrevem com certas paredes.”
NO FUNDO VARANDA O fundo da casa, a frente da casa. A casa que, no fundo, é uma luz que entra coada, uma saudade avarandada vaga.
A inspiração barroca de Coutinho contrasta com o classicismo de Zuleika. Sua verve intensa de escritor diz paradoxos aparentes, descreve de forma deslocada, rebusca-se com concisão. As águas são tontas, os prazeres, firmes, a esperança, calma, a luz, coada… E, enquanto isso, as linhas das fotografias buscam a eternidade.
Eis a maravilha desta obra, ter sido composta entre eles a partir um drible constante, de um jogo que nos faz mergulhar.
Quando Moser lançou sua biografia de Clarice Lispector, eu a li e não compreendi o relevo que dava a específicas interpretações crítico-filosóficas, estas que pareciam se sobrepor sem sentido à história de vida da escritora, já tão bem contada antes pela professora Nádia Battella Gotlib.
Pareceu-me que a vida de Clarice lhe fazia sugerir uma questão sobre o desenraizamento judaico, que muito antes já o preocupava pessoalmente, por conta de uma ascendência familiar. E que ele usava a oportunidade de uma biografia de Clarice pra veicular suas próprias ideias. Porque nada do que dizia no livro parecia encaixar-se no que Clarice foi.
Marquei uma entrevista com o autor na sede da editora do livro, a Cosacnaify. Então um jovem educado e gentil, Moser me recebeu muito bem. Mas, de novo, não me convenceu da tese do livro (se havia propriamente uma) com suas respostas a minhas perguntas. Eu fazia uma reportagem, não uma crítica, porque não sou especialista acadêmica em Clarice. Ainda assim, eu intuía uma roubada.
Pareceu-me então que, fascinado (não sem razão) pela escrita de Clarice, ele teve uma iluminação pra iniciar o trabalho, que incluía Spinoza, e dela não arredou pé no transcorrer da pesquisa, mesmo que os fatos andassem em outra direção. Ou talvez quisesse discorrer sobre Spinoza e usou Clarice para isso, sem devidamente pesquisar os fatos da vida da biografada que o contradissesse.
Por fim, e mais terrível, me parecia que ele tivesse um plano. Depois de sua biografia, as obras da escritora estourariam no mercado americano, e ele seria o responsável por tal fenômeno… Triste dizer, mas me senti assim: usada como brasileira. Mais um gringo esperto achava ser o primeiro a descobrir nossa riqueza “selvagem”, com o objetivo enviezado de crescer a partir dela.
Como sempre, nessas horas, minha avaliação é raramente compartilhada por nossa crítica local, que nem existe, a rigor. Indulgente, deslumbrada… Naquele caso, também orgulhosa da amizade com um estrangeiro de projeção…
E parece finalmente que agora Moser fez um caminho parecido em relação a Susan Sontag, pior ainda, de modo a incriminá-la por alguma coisa. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/10/cultura/1568114545_419957.html Não deve gostar da Sontag como talvez gostasse de Clarice… Ele culpa Susan, por exemplo, de trair a causa de sua homossexualidade… Mas ela era bissexual. Mas ela achava que discussão particular de gênero não definia sua escrita.
O interessante (e demolidor) é que agora Moser não fala para brasileiros passivos, antes para um público de intelectuais e jornalistas do mundo com voz alta para rebatê-lo.
Não tenho mesmo como saber se o crítico do El País, tradutor da obra de Sontag para o espanhol, está sendo justo com o biógrafo. Não lerei este texto de Moser, quase certamente. (Livros são caros e tenho tanto ainda, a vida que me resta, pra experimentar…) Mas, pelas razões que exponho aqui, acredito que o crítico infelizmente não esteja muito longe de ter analisado o trabalho com acerto.
Aos 134 anos do nascimento do grande escritor, o retrato até hoje supreendente que dele fez o biógrafo Max Brod: “Nós, os amigos, morremos de rir quando ele nos fez conhecer o primeiro capítulo de O Processo. E ele mesmo ria tanto que por momentos não podia continuar lendo. Bastante assombroso, se se pensa na terrível seriedade desse capítulo. Mas acontecia assim.”
“Assinalo o que se esquece facilmente quando se contempla a obra de Kafka: sua dobra de alegria do mundo e da vida”, escreveu Max Brod
Um sorriso na contramão.
Franz Kafka tinha grande senso de humor, escreveu o amigo e biógrafo Max Brod.
A seguir, na tradução que fiz de alguns dos trechos da edição em espanhol de Kafka, pela Emecé Editores de Buenos Aires, 1951, Brod explora este aspecto usualmente negado na personalidade e na obra do grande escritor.
Sobre conviver com seu humorismo:
Com renovada experiência adverti que os cultores de Kafka, aqueles que somente o conhecem por seus livros, têm uma imagem totalmente falsa dele. Creem que também no trato fosse triste, desesperado. Pelo contrário. Era bom estar com ele. A plenitude de seus pensamentos, que expunha quase sempre em tom festivo, o convertia pelo menos (e me refiro unicamente ao grau mais baixo) em uma das pessoas mais interessantes que conheci, apesar de sua modéstia e sua calma. Falava pouco; em reuniões grandes se calava frequentemente durante horas inteiras. Mas, quando dizia algo, prestava-se imensa atenção nele. Porque era transcendental, dava em que pensar. E na conversação íntima soltava às vezes assombrosamente a língua, chegando a entusiasmar-se, a se tornar encantador. As piadas e as risadas não tinham fim. Ria à vontade e cordialmente, e fazia rir os amigos. E mais: em situações difíceis era possível confiar sem reparos em sua experiência do mundo, em seu tato, seu conselho, porque bem poucas vezes errava. Era um amigo maravilhosamente útil. Só se sentia desorientado e desvalido consigo mesmo, impressão esta que, por conta de seu autodomínio, dava muito poucas vezes em seu trato pessoal, embora se aprofundasse nela indubitavelmente por meio de seus Diários. Um dos motivos que me impulsionam a escrever estas recordações é o seguinte: da leitura de seus livros e, sobretudo, dos Diários, pode-se chegar a ter uma imagem totalmente distinta dele, muito mais lúgubre do que aquela cotidiana. A biografia de Kafka que nosso círculo conserva na memória deve ser adicionada a seus escritos e reclama sua inclusão no julgamento total.
Sobre o sentido de humor em Kafka:
Que um ser puro não possa tocar o impuro é tanto sua força quanto sua debilidade. Força, porque significa sentir a distância entre ele e o absoluto, senti-la até o fim. Mas esta mesma distância é algo negativo, é debilidade. De modo que a força do ser puro só se pode manifestar enquanto o ser puro persiste em não querer escamotear sua distância do absoluto, em extremar sua debilidade através de lentes de mil aumentos. Porém, enquanto quer manter sua posição, não pode nem deve admitir que sua força é precisamente essa. Se origina assim um duplo fundo, e onde há duplo fundo há humorismo. Sim, ainda que em meio ao horror de tal perseverança, de tal persistência na mais perigosa de todas as atitudes (pois se trata de vida ou morte), brota um sorriso amável. E um sorriso novo, que caracteriza a obra de Kafka, um sorriso próximo às questões últimas, quase, diríamos, um sorriso metafísico; e às vezes quando ele lia alguns contos àqueles de nós que éramos seus amigos, crescia esse sorriso e lançávamos uma sonora gargalhada. Mas logo nos calávamos. Não era um sorriso destinado a seres humanos. Somente aos anjos é lícito rir dessa maneira (anjos que não se deve imaginar os anjinhos, angelotes, de Rafael; não, anjos, serafins masculinos com três gigantescos pares de asas, seres demoníacos entre o homem e Deus).
Agora, bem, qual é a razão para que o homem não chegue ao verdadeiro em si, por que, não obstante animado de ótima vontade, equivoca seu caminho, como aquele médico rural que seguiu os “sons enganosos da campainha noturna”? Kafka não se via inclinado por seu caráter a fazer promessas ou concessões à vida feliz. Admirava quem era capaz de fazê-lo; ele mesmo permanecia em suspense. Mas em suspense seria vazio e deserto, como se ele não houvesse sentido o absoluto como algo indescritível em si. Em meio a sua insegurança se pressente uma distante segurança, a única que pode fazer possível, a de sustentar a insegurança. Já disse que esse rasgo positivo se percebe acaso com menos firmeza em seus escritos (razão pela qual muitos os acham deprimentes) que em sua serenidade pessoal, no suave, discreto, nunca precipitado, de seu caráter. Mas quem lê sua obra com atenção também vislumbra repetidamente, através de zonas sombrias, o núcleo luminoso, ou melhor, suavemente radiante. Na superfície, no que se relata há desgarramento e desespero; mas a serenidade e a extensão com que se expõe o argumento, a acidez enamorada do detalhe, quer dizer, da vida real e da descrição fiel, o humorismo resultante da construção das orações comprimidas por tantos giros estilísticos que seu efeito é muitas vezes análogo ao curto-circuito (os devedores “se voltaram pródigos e dão uma festa no jardim de uma osteria, enquanto outros interrompem um momento seu voo à América e assistem à festa”), tudo alude já por sua forma ao “indestrutível” em Kafka, à natureza humana comum que ele conheceu.
Tal humorismo se fazia particularmente claro quando era Kafka mesmo quem lia suas obras. Por exemplo, nós, os amigos, morremos de rir quando ele nos fez conhecer o primeiro capítulo de O Processo. E ele mesmo ria tanto que por momentos não podia continuar lendo. Bastante assombroso, se se pensa na terrível seriedade desse capítulo. Mas acontecia assim.
Claro, não era uma risada boa e prazerosa. Contudo, havia a partícula de um riso bom, junto às cem partículas de desassossego que não pretendo negar. Só quero assinalar o que se esquece facilmente quando se contempla a obra de Kafka: sua dobra de alegria do mundo e da vida.
Uma raiz para seu peculiar humorismo:
As exigências que Kafka impunha a si mesmo eram as mais rigorosas. Quase nunca acreditava satisfazê-las. Não era, contudo, nenhum “crítico cultural” no sentido corrente. Pois muito do que ocorria ao seu redor, muitas pessoas bem medíocres com quem travava conhecimento, lhe pareciam realizadas, dignas de admiração por sua efetividade e força, e até agraciadas por Deus. A única certeza nele era a de não haver ninguém com uma consciência mais ardentemente firme que ele acerca da “distância de Deus”. Porém, nesse estar consciente de tal distância, Kafka, de puramente piedoso, não via virtude, senão unicamente insegurança, quer dizer, debilidade. No entanto, como a condição prévia de toda a vida era para ele a faculdade de sentir claramente e sem rituais nem dissimulações místicas a distância de Deus (a distância da perfeição da conduta reta), seu elogio e sua admiração pelo homem corrente (pelo homem “pedestre”, como disse Kierkegaard) tinham em si frequentemente algo de ironia suave, não premeditada, brincalhona e ao mesmo tempo comovente. Sua bondade, por assim dizer, caridosa, cedia de forma fictícia a dianteira aos vencedores cotidianos. Conhecem o abismo como eu e, no entanto, se balançam felizes sobre ele. Deveras o conheciam? A cômica hipótese da premissa iluminava a tragédia pessoal em sua vida, era uma das raízes de seu peculiar humorismo.
Uma aluna de Letras da USP que trabalha como vendedora em uma loja me mandou esta página do Guia do Estudante 2017, publicação da editora Abril preparatória ao exame de Português do Enem. Ela se dizia muito contente em ler ali um texto que escrevi em junho de 2015. Também me senti radiante ao testemunhar, pelo whatsapp, sua felicidade em encontrar publicado algo escrito por mim. Sempre achei difícil demais o que ela faz, trabalhar enquanto estuda seriamente e cuida sozinha de um filho… Que ela tivesse me visto como exemplar em qualquer sentido me deixava sem palavras.
Com alguma alegria, portanto, fui até a banca mais próxima percorrer o exemplar de 18,90 reais no qual meu texto se encontrava, antecipadamente agradecida que o tivessem mencionado em um material didático de tão amplo uso. Meu artigo fora bem duro de fazer, e pouco reconhecido à época, especialmente pela revista onde eu trabalhava. Mas a verificação da maneira como se viu reeditado pelo guia (malgrado eu soubesse se tratar especificamente de um guia) esmoreceu um pouco meu ânimo positivo.
Da maneira que o recorta, a publicação acaba por mencionar apenas um livro comentado por mim no texto, um clássico de Isaiah Berlin, As Raízes do Romantismo (Três Estrelas). O outro livro que descrevo, após entrevista com Michael Löwy, um dos autores de Revolta e Melancolia (Boitempo), fica assim esquecido nesse contexto em que procuro descrever historicamente a percepção romântica. A publicação entende que fiz uma resenha, enquanto meu texto, intitulado A dor revolucionária, misturou os gêneros jornalísticos. (Pude ouvir, em entrevista, o que Löwy tinha a nos dizer sobre sua concepção, a diferir respeitosamente, de algum modo, daquela de Berlin.) Igualmente estranhei a inclusão de um poema de Bandeira ao lado do excerto do artigo, de modo a tematizar o desejo de finitude e isolamento do período. Por mais que me esforce, não consigo ligar o maravilhoso, seco poeta irônico, que um crítico certa vez descrevera como um “parnasiano cinza”, àquele ideal romântico por mim descrito.
Como disse antes, compreendo que se trate de um guia com objetivos específicos, para o qual meu texto talvez caiba apenas aos pedaços, especialmente aqueles a ressaltar os comportamentos e os modos de pensar de um período, a cada dia mais estranhamente assemelhados ao nosso. E me sinto estimulada ao imaginar que o estudante do Ensino Médio possa ter contato com este assunto por meio de passagens de um texto meu. Expostas as ressalvas, agradeço aos editores do guia pela menção, esta que nos torna (e a nossas ideias) um pouco mais vivos.
Um clássico de Robert Paxton procura distingui-lo de outros totalitarismos e, entre tantos aspectos, aponta a negligência administrativa de Hitler. Quão fascista será o governo brasileiro atual?
Hitler fala baixo com o comandante Mannerheim (dir.) em vagão de trem na Finlândia. A conversa foi gravada sem seu consentimento em 1942. Sua voz, longe dos discursos, é grave e pausada. O historiador Hans Mommsen o considerava um “ditador fraco”.
Nesta semana, circulou por meu facebook um link em que é possível ouvir a voz de Adolf Hitler proferida numa situação particular. Feita a sua revelia no vagão de um trem, em 1942, por um técnico de emissora de rádio da Finlândia, país onde o ditador se encontrava secretamente, a gravação foi interrompida tão logo a SS se deu conta de que era realizada. Possivelmente de modo a evitar hostilidade em relação ao país que desejava aliado, Hitler não exigiu sua destruição, apenas que fosse recolhida. Isto porque o ditador jamais deixava sua voz ser transmitida em situações caseiras, especialmente sem que, para isso, houvesse um ensaio anterior. A gravação, de onze minutos, voltou para a emissora finlandesa apenas em 1957.
Trata-se do único registro conhecido em que Hitler fala baixo, desinteressado de atiçar a multidão. Durante esta conversa com o então comandante militar Carl Gustaf Emil Mannerheim, posteriormente presidente finlandês, Hitler mais falou do que ouviu. Ele precisava convencer seu interlocutor de que estava certo. E aparentemente desejava demonstrar que a Finlândia tinha toda a razão ao se voltar contra a União Soviética mais uma vez, depois de tê-la enfrentado em um avanço sobre seu território entre 1939 e 1940. Hitler admitia a Mannerheim ter errado o cálculo sobre o poderio militar de Stalin. Sentia-se inconformado com o fato de a URSS fabricar tanques em quantidade e velocidade inimagináveis, enquanto os habitantes soviéticos, fazia questão de ressaltar, viviam um cotidiano precário.
Hitler não somente fala baixo e pausadamente durante a gravação (sua voz, ao contrário do que se poderia imaginar, não era aguda). Parecia ponderar com equilíbrio a situação negativa. E aparentava um conhecimento de causa, a enumerar estratégias militares e a explicitar motivos para suas decisões que, ao fim, resultaram em fracasso. A gravação não deixa de ser insidiosa, contudo, a desejar a adesão de seu interlocutor, que na fita, aliás, surge mais exaltado que o próprio Hitler. Admitir um erro de cálculo colocava o nazista em frágil situação confessional, mas também apontava para a cooperação entre os países (não explicitada, contudo, durante a gravação). Hitler se vitimizava, desejoso de vilanizar o inimigo. Entre 1941 e 1944, Mannerheim comandou o exército durante a Segunda Guerra Russo-Finlandesa, contra as pretensões soviéticas em seu território. Embora o país tenha aderido à Alemanha em situações pontuais, não pertenceu ao Eixo durante a Segunda Guerra. Suas Forças Armadas, por exemplo, receberam milhares de judeus de países ocupados.
Um clássico escrito após estudo revolucionário sobre o colaboracionismo de Vichy
A gravação me levou de volta a um grande livro lançado em 2004, A Anatomia do Fascismo, que recebeu tradução brasileira (de Patricia Zimbres e Paula Zimbres) pela editora Paz e Terra três anos depois. Um livro que, a considerar o estado da política mundial, continua urgente. Seu autor, o cientista político e historiador Robert Paxton, nasceu em 1932 e foi professor da Columbia University de 1969 até sua aposentadoria, em 1997. Hoje professor emérito da universidade, tornou-se célebre ao estudar o colaboracionismo francês em Vichy France: Old Guard and New Order, 1940-1944. Este livro de 1972 desmistificou o entendimento de que os franceses cederam ao nazismo apenas para evitar o conflito, por passividade.
A Anatomia do Fascismo nasceu, diz Paxton, depois de ele constatar que seus alunos desconheciam as origens e as reais características desse movimento, intitulando “fascista” todo governo orientado pelo totalitarismo. Embora o ditador italiano Benito Mussolini se declarasse totalitarista, por exemplo, ele o fazia em um sentido catalisador, explica Paxton. Dizia-se “totalitário” para que pudesse condensar sobre sua pessoa política as aspirações de uma grande parcela social. Mussolini deveria ser tudo, significar tudo. Mas os totalitarismos não redundam necessariamente em fascismo, ele precisa explicar. Se comparados, não necessariamente se equivalem. O exercício de poder por Mussolini difere daquele de Francisco Franco, na Espanha, ou de Juan Domingo Perón, na Argentina. Quando a imprensa americana, por exemplo, intitulou Perón de fascista, em verdade desejou derrubar no americano médio o fascínio que lhe causavam as leis argentinas a favorecer o trabalhador.
O fascismo tem características essenciais. É um movimento, não uma ideologia, esta que prontamente se pode alterar conforme o gosto do ditador no poder. O líder fascista não se obriga a obedecer o próprio programa de governo, aliás nem mesmo tem um: seus eventuais princípios e promessas de campanha (quando a eleição existe) podem ser alterados sem necessidade de mais explicações. O que importa é a submissão do indivíduo aos interesses do Estado (no caso de Hitler, do partido) e à figura de seu condutor máximo. Quem adere ao fascismo não necessariamente pertence a um grupo dominante. O fascismo é um fenômeno horizontal, ao contrário do socialismo, que implica o fortalecimento de uma classe, a trabalhadora. Pobres e ricos são fascistas unidos desde sempre. A potencialidade do movimento depende da ação de uma imprensa manipuladora, rendida aos interesses de grupos conservadores, os verdadeiros beneficiados pela adesão a esse sistema. Os conservadores utilizam os fascistas quando lhes convém e se desapegam deles quando não mais lhes servem. O desejo generalizado que o fascismo manipula é o de “mudança” e engrandecimento nacional, percebido por seus seguidores em todas as classes.
O historiador americano Robert Paxton
O fascismo existe para atiçar a multidão, motivá-la a uma ação constante e dirigida. É basicamente uma manipulação da consciência de massas em uma sociedade que acolhe o show. Precisa de violência, de poucas palavras, de anti-intelectualidade, da degradação cultural, do não-pensamento para florescer. No início do século XX, a centralidade de poder e o culto pessoal ao governante foram exercidos inovadoramente pelos fascistas, com som e fúria, diante das câmeras do cinema e dos microfones do rádio. Não se tratava mais de expor argumentos à população, mas simplesmente instigá-la à força, em eventos festivos e militares, com ampla cobertura midiática. Os embates parlamentares das ideias burguesas foram substituídos por discursos em praça pública assegurados pelo quebra-quebra das milícias nas ruas. Antes de fortalecer a igualdade, buscou-se a desconfiança em relação ao voto. O sacrifício individual foi exigido para que se construísse uma ideia de grandeza nacional. O fascismo, em suas manifestações iniciais, genuínas, detestava o burguês, o rico acumulador, uma situação transformada conforme o poder se consolidava em torno de um homem só. Mas uma de suas características nunca mudou. O inimigo número um do fascista é genericamente o socialista. E, particularmente, o homossexual, a mulher e as etnias responsabilizadas por uma instabilidade econômica do país.
A manipulação precisa ser corroborada pela justiça e pela polícia, explica Paxton, esta que passa a constituir autoridade inquestionável e duradoura, celebrada por promoções salariais. O fascismo deve ser anticomunista, mas não necessariamente anticlerical, embora o fosse, por exemplo, o programa inicial de Mussolini, que depois exaltou o fervor religioso dos italianos. A Igreja passa a interessar como aliada por conta de seu poderio econômico. Os fascistas, sempre e necessariamente, precisam extrapolar seus limites territoriais. As guerras de conquista são combustíveis para a crença no governo “engrandecido”. O ódio a determinada etnia, como aquele ao judeu, varia a depender do país. Na Itália, explica Paxton, os judeus ricos acreditaram nas promessas de recuperação econômica de Mussolini e o financiaram até o início da guerra, no final dos anos 1930, quando leis raciais passaram a restringi-los.
Tela do futurista Giacomo Balla falseia a participação de Benito Mussolini na Marcha Sobre Roma, que alçou o movimento ao poder na Itália em 1922
Tudo o que um fascista escreve não deve ser lido, como tão bem explica um filme que Robert Paxton não cita, mas parece fundamental a este entendimento, especialmente na Itália. A Marcha sobre Roma, realizado por Dino Risi em 1962, mostra, por meio da figura de dois desprovidos enganados, interpretados por Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman, como o fascismo nasceu anticlerical e antiburguês, a pregar terra para todos e direitos iguais, e como, aos poucos, abandonou suas antigas promessas. É um filme a explicitar o engodo da marcha até Roma pelos fascistas “liderados” por Mussolini (ele não participou da marcha, mas uma iconografia posterior, como a tela concebida pelo futurista Giacomo Balla, coloca-o à frente da manifestação). Em verdade, os camisas-negras que participaram da marcha foram barrados na entrada da cidade. Seu acesso se tornou permitido posteriormente porque o rei decidiu, convencido por seu governo, ceder a quem prometia extinguir à força a ameaça comunista e, de quebra, arrumar a economia.
Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman em A Marcha sobre Roma, de Dino Risi
O nacionalismo fascista nega o socialismo justamente, entre outros, por seu aspecto internacionalista. Conforme a economia declina em países como a Alemanha e a Itália, as ofertas de trabalho diminuem internamente e os camponeses se veem desprotegidos, o fascismo cresce, atribuindo a pequenos grupos migrantes, antes bem-vindos, a responsabilidade pela crise. A promessa do fascismo é ser nacionalista ao extremo, expulsando a “ameaça” externa dentro do país. Um corpo ideológico, uma farsa sobre as origens da nação ditará o que é nacional ou não – o mito da nacionalidade estabelecerá o que é autóctone, portanto legal, e o que é estrangeiro e não se deve tolerar. Na Alemanha fascista, a legalidade era ambígua. O governo desrespeitava as próprias instituições, incentivando o poder paralelo do partido e das milícias, que se tornavam autoridades. Segundo Paxton, existia no país um “Estado dual”, normativo enquanto prerrogativo. O Estado normativo, constituído pelas autoridades legalmente constituídas e pelo serviço público tradicional, disputava o poder com o Estado prerrogativo, formado pelas organizações paralelas ligadas ao partido único. Hitler se serviu dos dois.
O livro de Paxton compreende o fascismo com particularidade. Em seu texto escrito com muita clareza, o Brasil vem citado nas ocasiões ditatoriais até então mais recentes, o Estado Novo e a ditadura. Não há, nos dois casos, situações de guerras de conquistas territoriais que possam estabelecer a chancela fascista, ele conclui. Getúlio Vargas não aderiu ao nazismo como prometia, especialmente durante a Segunda Guerra, embora atacar o comunismo estivesse em seu ideário. E a ditadura brasileira dos anos 1960 tampouco elegeu a mística em torno de um único ditador, genericamente financiada, que era, pelo governo americano. Nos Estados Unidos e na França, houve sempre grupos a favorecer e incentivar o racismo e as milícias de exclusão. Mas, novamente, não se constituíram países onde o fascismo vingou com as tintas a ele aplicadas por Hitler ou Mussolini.
O historiador busca esclarecer as origens e as características do movimento de modo a discriminá-lo de outros autoritarismos. É possível supor que Paxton não ligasse o atual governo golpista inteiramente ao fascismo. Michel Temer tem apoio da oligarquia política, dos setores conservadores, da imprensa, mas carisma não é seu forte. As falas de Temer mais constrangem do que instigam o brasileiro à defesa de suas ações. A justiça e a polícia são suas aliadas e ele enaltece a submissão da própria mulher, como manda o fascismo, mas ainda não empreendeu uma luta por conquistas territoriais. Tampouco soube ser populista na medida exigida, à moda de Mussolini ou Hitler. Extirpa direitos sociais em lugar de os acrescentar seletivamente ou de os maquiar (inicialmente, o nazismo soube arrumar internamente a casa alemã; cuidou muito bem, por exemplo, da saúde de quem considerava cidadão). Talvez, então, segundo o entendimento de Paxton, o homem que ocupa o máximo cargo executivo no Brasil atual fosse visto apenas como um autoritário apoiado em grupos de interesse conservador, com privilégios assegurados pela corrupção, pela justiça e pela polícia violenta. Nem mesmo fascista Temer conseguiria ser?
Volto à gravação da voz de Hitler, feita na Finlândia, porque ela me parece esclarecedora de um ponto ressaltado pelo instigante livro do professor da Columbia University. Hitler não agia conforme o esperado. Sua performance publicamente eletrizante não correspondia a uma grande energia pessoal para conduzir suas políticas. Tudo o que fez, ele o fez gastando pouco. Nem mesmo exercia um pragmatismo motivador à frente da administração de seu país, embora fosse assertivo na propaganda. Paxton descreve um momento durante a guerra em que todo governante, em lugar de usar as verbas recebidas pelo Estado para vitalizar a força produtiva de sua comunidade, sentia que seu dever era aplicá-la em políticas de extermínio, incentivadas largamente pelo ditador. Hitler não quebrava a cabeça para resolver os problemas da economia, embora ela parecesse ajeitada por algum tempo. Enquanto Mussolini mourejava por longas horas em sua mesa de trabalho, Hitler continuava a se permitir o diletantismo indolente e boêmio de seus tempos de estudante de arte.
Narra Paxton: “Quando os auxiliares tentavam atrair sua atenção para assuntos urgentes, Hitler frequentemente mostrava-se inacessível. Passava muito tempo em seu refúgio na Bavária e, mesmo quando em Berlim, negligenciava questões de maior urgência. Submetia seus convidados com monólogos que iam até a meia-noite, acordava ao meio-dia e dedicava suas tardes a paixões pessoais, como fazer, com seu jovem protegido Albert Speer, planos para a reconstrução de sua cidade natal de Linz e do centro de Berlim num estilo monumental compatível com o Reich de Mil Anos. Após fevereiro de 1938, o gabinete deixou de se reunir. Alguns ministros jamais conseguiam ver o Führer. Hans Mommsen chegou ao ponto de escrever que Hitler era um ‘ditador fraco’. Mommsen nunca teve a intenção de negar a natureza ilimitada do mal definido e aleatório exercício pelo poder de Hitler, mas observou que o regime nazista não era organizado segundo princípios racionais de eficiência burocrática, e que sua surpreendente explosão de energia assassina não foi produzida pela diligência de Hitler.”