Uma eternidade sem perdão

Sim, eu sei que parte dos meus amigos a conhecer os corredores da política e a atuar na justiça considera inexequível a prisão imediata desses depoentes que mentiram na CPI da Covid. Meus amigos creem que é preciso deixar o tempo correr e com isso facilitar o acesso dessa gente à tribuna da comissão, para que ela se enrole depois, quando o Ministério Público reunir as provas colhidas.

Ok, mas que “depois” será esse? Um desses depois vi hoje. Pesadelo, que há muito deveria se arrastar nas correntes, acaba de cair para o alto. O Exército o condena à reserva, esta a que teve direito após participar hoje do comício do Mussolini de subúrbio com mil motoqueiros da PM miliciana do Rio. Pesadelo foi, em suma, promovido.

Quanto mais tempo criminosos como ele ficarem soltos, mais a imagem da impunidade vai se cristalizar nesse nosso povo ignorante, desvalido de saberes, que habita tanto a camada dos acumuladores quanto a dos pobres.

Como se tivéssemos tempo de sobra pra perder nessa eternidade…

Pior que Idi Amin

Estava aqui comentando que no mundo inteiro se tem Bolsonaro por um novo Idi Amin Dada.

Não sei se sabem quem foi Dada (lê-se Dadá), um ditador populista e sanguinário de Uganda, desses capazes de jogar um súdito aos jacarés só por diversão.

Ao saber da comparação, meu marido nem parou pra pensar. Dada era um fascista nacionalista, desses que se divertiam em provocar os EUA nos anos 1970.

Então Bolsonaro, fascista entreguista, único exemplar de sua espécie, só poderia ser muito pior do que Idi Ami Dada foi, como o Mauricio argumentou.

E é isso por enquanto, meus amores.

Os olhos arrancados do Brasil, segundo Pasolini

Eu me sentia em dívida com vocês, uma vez que tanta leitura teve outro post deste blog sobre a produção poética de Pasolini, intitulado “Pasolini em Recife”. E agora creio que acalmo minha consciência ao lhes mostrar o outro grande, imenso poema que o cineasta fez sobre o Brasil.

Em 1970, durante sua viagem à América do Sul para participar de um festival em Mar del Plata, no qual apresentaria “Medeia, a feiticeira do amor” (1960), Pasolini visitou brevemente o País. Fez uma escala no Rio de Janeiro, foi obrigado a um pouso de emergência em Recife, na ida, e rumou a Salvador, por fim. O Rio de Janeiro inspirou-lhe a escrever “Hierarquia”, que segue aqui com tradução de Mariarosaria Fabris.

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“É assim, por mero acaso, que um brasileiro é fascista e outro subversivo; o que arranca os olhos pode ser confundido com o que tem os olhos arrancados”

HIERARQUIA

Pier Paolo Pasolini, 1971

Se chego a uma cidade
além do oceano
Muita vez chego a uma nova cidade, levado pela dúvida. Tornado de um dia para outro em peregrino
de uma fé na qual não creio;
representante de mercadoria faz tempo sem valia,
mas é grande, sempre, uma estranha esperança –
Desço do avião com o passo do culpado,
o rabo entre as pernas, e uma eterna vontade de mijar,
que me leva a andar meio dobrado, com um sorriso incerto – Livrar-se da aduana, e, muita vez, dos fotógrafos:
fato corriqueiro que cada um encara como se fosse exceção.

 

Depois o incógnito.

Quem passeia às quatro da tarde
por canteiros cheios de árvores
e alamedas de uma desesperada cidade onde europeus pobres vieram criar de novo um mundo à imagem e semelhança do seu, levados pela pobreza a fazer do exílio sua vida?
Com um olho em meus afazeres, minhas obrigações –
Depois, nas horas vagas,
começa minha busca, como se ela também fosse uma culpa –
A hierarquia, porém, está bem clara na cabeça.
Não há Oceano que aguente.
Desta hierarquia, os últimos são os velhos.
Sim, os velhos a cuja categoria começo a partencer

(não falo do fotógrafo Saderman que, com a mulher já amiga da morte, me acolhe sorrindo
no pequeno estúdio de toda uma vida)
Sim, há algum velho intelectual que na Hierarquia
está à altura dos mais belos michês
os primeiros que se encontram nos pontos logo achados e que, como Virgílios, conduzem com popular delicadeza algum velho

é digno do Empíreo,
é digno de ficar perto do primeiro garoto do povo
que se oferece por mil cruzeiros em Copacabana
os dois são meu guia
a segurar-me pela mão com delicadeza,
a delicadeza do intelectual e a do operário (quase sempre desempregado)
a descoberta da invariabilidade da vida
requer inteligência, requer amor.
Vista do hotel de Rua Resende, Rio –
a ascese exige sexo, exige caralho –
aquela janelinha do hotel onde se paga pelo quartinho – se olha dentro do Rio, num aspecto da eternidade,
a noite de chuva que não traz refrigério,
e molha as ruas miseráveis e os entulhos,
e os últimos beirais do art nouveau de portugueses pobres sublime milagre!
E assim Josué Correia é o Primeiro na Hierarquia,

e com ele Haroldo, veio menino da Bahia, e Joaquim.

A Favela feito Cafarnaum debaixo do sol –
Cortada pelas valetas do esgoto
um barraco em cima do outro, vinte mil famílias
(ele, na praia, pedindo-me um cigarro como se fosse um puto)

Não sabíamos que aos poucos iríamos nos revelar, prudentemente, uma palavra depois da outra,
dita quase distraidamente:
eu sou comunista, e: eu sou subversivo:
sou soldado de uma divisão expressamente treinada
para lutar contra os subversivos e torturá-los;
mas eles não sabem;
as pessoas não se dão conta de nada;
elas pensam em viver
(me fala do lumpemproletariado).
A Favela, fatalmente, nos aguardava
eu grande entendedor, ele guia –
seus pais nos acolheram, e o irmãozinho nu
que acabara de sair de trás da lona –
pois é, invariabilidade da vida,

a mãe
falou comigo como Maria Limardi, preparando a limonada sagrada para o hóspede; a mãe encanecida, mas de carnes firmes; envelhecida como envelhecem as pobres, e ainda garota; sua gentileza e a do companheiro,
fraternal com o filho que só por sua vontade
agora era um mensageiro da Cidade –
Ah, subversivos, busco o amor e encontro vocês.
Busco a perdição e encontro sede de justiça.
Brasil, minha terra,
terra de meus amigos à vera,
que não se interessam por nada
ou então se tornam subversivos e feito santos são cegados.
No círculo mais baixo da Hierarquia de uma cidade,
imagem do mundo que de velho se faz novo,
coloco os velhos, os velhos burgueses,
pois um velho da cidade, se é do povo, fica garoto
não tem nada a defender –
vestindo camiseta e calção surrado como Joaquim, o filho.

 

Os velhos, minha categoria,
quer queiram ou não queiram –
Não se pode fugir do destino de deter o Poder, ele se coloca por si
lenta e fatalmente nas mãos dos velhos, apesar de eles serem mãos-furadas
e sorrirem humildes feito mártires sátiros –

Acuso os velhos de terem vivido seja como for, acuso os velhos de terem aceitado a vida

(e não podiam não aceitá-la, mas não existem vítimas inocentes)
a vida, ao acumular-se, deu o que ela queria – acuso os velhos de terem feito a vontade da vida.

De volta à Favela onde não se pensa em nada
ou se almeja ser mensageiros da Cidade
lá onde os velhos são americanófilos –
Entre jovens que jogam, bravos, futebol
diante de cumes encantados sobre o frio Oceano,
quem quer algo e sabe, foi escolhido ao acaso –
inexperientes em imperialismo clássico
em delicadezas para com o velho Império a ser explorado.
Os americanos dividem entre si os irmãos supersticiosos
sempre aquecidos pelo próprio sexo como bandidos por uma fogueira –

É assim, por mero acaso, que um brasileiro é fascista e outro subversivo; o que arranca os olhos pode ser confundido com o que tem os olhos arrancados.
Joaquim nunca poderia ter sido diferente de um sicário.
Então, por que não amá-lo, se assim fosse?
O sicário também está no vértice da Hierarquia,
com seu traços simples, mal esboçados,
com seu olhar simples,
sem outra luz do que a da carne.
Assim, no topo da Hierarquia,
encontro a ambiguidade, o nó inextricável.
Oh, Brasil, minha desgraçada pátria,
voltada sem escolha à felicidade,
(de tudo são donos o dinheiro e a carne,
enquanto você é tão poético)

Em cada habitante seu, meu concidadão, há um anjo que não sabe de nada, sempre curvado sobre seu sexo,
e se agita, velho ou jovem, para pegar em armas e lutar,
pelo fascismo ou pela liberdade, é indiferente – Oh, Brasil, minha terra natal, onde
as velhas lutas – bem ou mal já vencidas –
para nós velhos tornam a fazer sentido – respondendo à graça de delinquentes ou soldados, à graça brutal.

 

Os goebbels imprescindíveis

Os fascistas não se lixam pra economia.

Pra governar.

Ganham a eleição apenas para motivar à destruição as multidões temporariamente iludidas por segurança e estabilidade.

Haja espetáculos, xingamentos e palavras de ordem para que o oprimido tudo aceite e impulsione.

Enquanto isto é feito eles concentram dinheiro e poder para a burguesia, os donos de terra, os bancos, a indústria de armas.

Num modelo fascista de origem, uma elite nacional era a receptora dos recursos.

Agora não somente.

No Brasil, caso inexista resistência, praticaremos a conhecida expansão territorial. E, detalhe, não para nosso usufruto, mas principalmente para que EUA e seu estado-terrorista satélite, Israel, possam acumular e controlar nossas riquezas naturais.

É preciso incutir na multidão ignorante a extrema necessidade de combate.

O fascista transforma a guerra, o litígio, em coisas imprescindíveis.

Por isso a publicidade constante não é uma opção, mas uma necessidade.

Antes, Hitler e Mussolini precisavam de grandes eventos militarizados ao ar livre pra exercer esse fascínio. E fortaleciam o rádio, seus jornais e o cinema pra transmitir tais ideias.

Durante o fascismo italiano, funcionava até mesmo uma revista de crítica de cinema pelo bem da indústria.

A revista, dirigida pelo filho do Duce, acolhia entre seus escritores um jovem Antonioni, por exemplo.

Só pra vocês terem uma ideia da importância do cinema então…

Mas no Brasil de hoje nada disso parece ser tão necessário.

Basta a tevê do bispo.

O Carlos Bolsonaro.

E os propagandistas-pastores-postosipiranga para as ideias do desmonte, ministros e primeira-dama eficazes na comunicação com velhos e potenciais fiéis.

A bobajada que sai de suas bocas sujas, sempre prontas ao ataque, existirá portanto cotidianamente e em grande quantidade.

Aposto que danares e bozóica ganham um dinheirinho específico pra aparições cor-de-rosa…

“Toma aí um trocado pra comprar na Animale do shopping” é a frase que me vem.

Onde fica Paris?

Não podia mais evitar a “academia” e pra lá fui hoje.

Nunca conversei sobre política naquele ambiente. Nas poucas vezes que tentei fazer isso, precisei lidar com a ignorância básica dos instrutores.

Uma dessas professoras, muito bonita, negra, de aspecto doce, e que apoia a ação da PM em qualquer circunstância, me perguntou onde ficava Paris.

São professores formados pela uninove, em sua maioria com pós-graduação/especialização. Sendo a uninove a única faculdade de cujo nome eu me recorde agora entre as cursadas pelos instrutores, em sua maioria pobres que puderam usar o Fies.

Então passei toda a eleição sem falar com ninguém lá a respeito do Brasil, da política. Me abstive de sofrer.

E também porque academia de ginástica, pra mim, nunca pareceu exatamente um lugar pra fazer amigos, embora eu tenha amizades do fundo do meu coração nascidas lá. Nos últimos tempos, academia é templo de fascismo, como o shopping. Não gosto de nenhum dos dois.

Exercício foi e será minha tediosa obrigação. Se não precisasse fortalecer os tendões, jamais pisaria em uma academia, como por anos não pisei.

E embora não converse com ninguém nesses ambientes, sou educada com as pessoas. Aprendi assim. Sorrio. E não sou nova. Então, por via das dúvidas, me tratam como anciã. Tudo bem com a senhora? A senhora não precisa de ajuda? Tem certeza, senhora?

Até aí ok. Qualquer velho é tratado como criança neste mundo. Somos tão fofos.

Mas hoje veio o instrutor de meu treino de musculação, brasileiro de origem negra, a me perguntar se eu estava animada depois da eleição.

– Claro que não – respondi.

– Mas que é isso, Rô! – retrucou. Você tem de ser otimista com o Brasil!

(Pra que usar “você” se vai me tratar feito coroca?)

– Até o último dia desse governo serei oposição.

– Ah, mas que é isso!?! (Paternal.) Nosso pensamento tem de ser positivo, de evolução!

– Concordo. Então por que o Brasil, pelo jeito você, elegeu à presidência a regressão? Não posso crer que um ser humano igual a mim tenha votado em um homofóbico machista, apologista do crime, armamentista, entreguista de nossas riquezas, que vai tentar passar uma reforma da previdência pra nos fazer trabalhar mais no mínimo 14 anos!

– Mas e a reforma da Dilma, como era?

– O quê?!

– É só uma pergunta.

– Não teve reforma da Dilma.

– Do Temer, que é a mesma coisa, não teve?

– O Temer traiu a Dilma e o Brasil. Não é a mesma coisa. Ele a golpeou. E ela não cometeu crime nenhum.

– Mas você queria que a gente virasse Cuba ou Venezuela?

– Me poupe.

– Sério, queria?

– O PT esteve alguns anos no poder e não tivemos Cuba ou Venezuela. Você sabe a história de Cuba?

– De Cuba?

– Sabe que os Estados Unidos mantiveram um ditador por anos lá, que Cuba era quintal de jogo e prostituição, que os Estados Unidos traíram Cuba, que tentaram invadir a ilha depois que o ditador caiu, que Cuba precisou da ajuda da União Soviética, que a União soviética acabou e que Cuba sofreu severo embargo econômico? E que apesar disso ninguém passa fome em Cuba, que há educação pra todos em Cuba e que a saúde é de excelência em Cuba?

– Bem, não sou professor de história.

– Não precisa ser professor de história pra saber dessas coisas.

– E Lula?

– Amigo, sinceramente, tá feio… Eu sou cliente aqui.

– Eu sei!

– Pois então. E só continuo aqui porque esta academia não financiou Bolsonaro, responsável pelo clima de ódio que vivemos nos últimos dias.

– Ele não é responsável por essas mortes, é?

– Ele incita ao ódio e não tem culpa? Os assassinos destes últimos dia mataram em seu nome.

– É… te faço novo treino semana que vem.

– Faça, por favor. E leia livros, porque eles faltam em sua vida.

– Tá bom.