David Drew Zingg para poucos

Em 1994, entrevistei o fotógrafo David Drew Zingg para as páginas vermelhas da revista IstoÉ. (leia o pdf David Drew Zingg (1).)

À época, não somente um dos grandes fotógrafos a atuar no Brasil, ele se tornava colunista de um grande jornal, depois de haver contribuído para ajustar a fotografia do diário “Notícias Populares”, de que gostava bem mais.

Drew Zingg, então integrante da banda Joelho de Porco, era o velho anarquista preferido por todos nós. Não sei se por todos nós da redação, na verdade. Provavelmente não por eles… Mas por mim, certamente. E por meus poucos-grandes-geniais-amigos de combate.

Contudo, quando o entrevistei em uma tarde de verão daquele ano tão distante, ele não se parecia de modo algum com um anarquista.

Conversava comigo apenas nos intervalos de uma longa sessão de entrevistas a candidatos a uma vaga na revista que dirigia. Seus papéis e recortes iam empilhados em ordem sobre a mesa limpa. Quem esperaria por isso? Talvez os fortes. E talvez eu fosse forte, sem saber.

Cheio de interdições, ranzinza, ele me recebia na sua pequena sala de trabalho a cada quinze minutos e interrompia a nossa conversa sempre que um novo candidato ao emprego aparecia.

Eu estava por lá mesmo. E decidira furar seu bloqueio de maneira simples. Rindo sem parar do que ele me dizia. Queria fazer florescer a comédia que ainda acreditava habitar nele. Me tornei seu público.

Com o tempo, a entrevista se tornou hilária e franca. E ele ainda me deu a dica de uma câmera fotográfica portátil, a Olympus Stylus, então sua preferida, que me acompanharia por muitos anos.

Publicada a entrevista, Zingg ligou ao então secretário de Redação da IstoÉ, Hélio Campos Mello, para agradecer a matéria e a louca jornalista que haviam enviado para lhe entrevistar. Em seguida, ligou pra mim.

Fui atender na mesa do chefe, trêmula.

“David, você entendeu o título que eu dei à entrevista, não?” – perguntei, sorridente.

E ele, para meu alívio:

“Claro que entendi, Rosane. Very smart…”

(E ainda me lembro de ter minha gargalhada retribuída.)

O lugar das menções

Uma aluna de Letras da USP que trabalha como vendedora em uma loja me mandou esta página do Guia do Estudante 2017, publicação da editora Abril preparatória ao exame de Português do Enem. Ela se dizia muito contente em ler ali um texto que escrevi em junho de 2015. Também me senti radiante ao testemunhar, pelo whatsapp, sua felicidade em encontrar publicado algo escrito por mim. Sempre achei difícil demais o que ela faz, trabalhar enquanto estuda seriamente e cuida sozinha de um filho… Que ela tivesse me visto como exemplar em qualquer sentido me deixava sem palavras.
 
Com alguma alegria, portanto, fui até a banca mais próxima percorrer o exemplar de 18,90 reais no qual meu texto se encontrava, antecipadamente agradecida que o tivessem mencionado em um material didático de tão amplo uso. Meu artigo fora bem duro de fazer, e pouco reconhecido à época, especialmente pela revista onde eu trabalhava. Mas a verificação da maneira como se viu reeditado pelo guia (malgrado eu soubesse se tratar especificamente de um guia) esmoreceu um pouco meu ânimo positivo.
 
Da maneira que o recorta, a publicação acaba por mencionar apenas um livro comentado por mim no texto, um clássico de Isaiah Berlin, As Raízes do Romantismo (Três Estrelas). O outro livro que descrevo, após entrevista com Michael Löwy, um dos autores de Revolta e Melancolia (Boitempo), fica assim esquecido nesse contexto em que procuro descrever historicamente a percepção romântica. A publicação entende que fiz uma resenha, enquanto meu texto, intitulado A dor revolucionária, misturou os gêneros jornalísticos. (Pude ouvir, em entrevista, o que Löwy tinha a nos dizer sobre sua concepção, a diferir respeitosamente, de algum modo, daquela de Berlin.) Igualmente estranhei a inclusão de um poema de Bandeira ao lado do excerto do artigo, de modo a tematizar o desejo de finitude e isolamento do período. Por mais que me esforce, não consigo ligar o maravilhoso, seco poeta irônico, que um crítico certa vez descrevera como um “parnasiano cinza”, àquele ideal romântico por mim descrito.
Como disse antes, compreendo que se trate de um guia com objetivos específicos, para o qual meu texto talvez caiba apenas aos pedaços, especialmente aqueles a ressaltar os comportamentos e os modos de pensar de um período, a cada dia mais estranhamente assemelhados ao nosso. E me sinto estimulada ao imaginar que o estudante do Ensino Médio possa ter contato com este assunto por meio de passagens de um texto meu. Expostas as ressalvas, agradeço aos editores do guia pela menção, esta que nos torna (e a nossas ideias) um pouco mais vivos. 
Por Rosane Pavam

Criancinha do século

 

praiagrande

Retratos do subsolo. Pega-luzes. Milésimas auroras. Intangível.

Foram tantos os títulos que imaginei para este blog. Mas descartei todos. Meu nome tão antigo seria o melhor batismo para minhas alucinações. Um nome a carregar a identidade de pobreza do meu avô. Seu Danielle virou Daniel poucos meses antes de morrer. Nascido no Vêneto, imigrado durante a infância, teimou em se tornar brasileiro, mas nunca aprendeu a ler. Eis por que seu sobrenome virou qualquer um. Pavam, Pavani, Pavão ou Pavan, que os escrivães registrassem seus oito filhos da maneira aceita. O importante era que as crianças aprendessem, como ele próprio, a resistir.

Meu avô transportava lixo em uma carroça. No início, não apenas a conduzia. Igualmente recolhia a carga nos ombros até colocá-la em sua caçamba puxada por cavalos, um cansaço dos infernos. Eis por que, muito esperto, um dia contratou um carregador que aliviasse seu maior peso.

Sempre me imaginei na pele de meu avô. Em trinta anos de jornalismo, transportei os resíduos dos outros. Contudo, ao contrário de seu Danielle, jamais consegui contratar um carregador enquanto dirigia a carroça. E um dia decidi deixar o lixo pra trás.

Não sei exatamente o que você encontrará neste blog.

Um resíduo, uma palavra.

Talvez a mim.

Bom encontro pra nós.

*(foto de Claude Lévi-Strauss em “Saudades de São Paulo”)