O épico humorístico dos vinténs

 

Um dos maiores diretores da comédia à italiana, Mario Monicelli encenou pequenos anti-heróis incapazes de realizar as burlas em que se empenhavam

 

O diretor italiano Mario Monicelli,
atento à busca pelo anti-herói
moderno sem lugar no mundo

 

Mario Monicelli dirigia para a frente sem largar o retrovisor. Atrás dele vinham velozes as farsas mudas de Harry Langdon, Charles Chaplin ou Buster Keaton, projetadas nos cinemas barulhentos da infância, e também as peças da commedia dell’arte que, renascidas com sucesso em teatros empoeirados de sua juventude, pintavam tipos cômicos universais. Roteirizado coletivamente de modo a compor uma espécie de sucessão de quadrinhos em página de jornal, este cinema pleno de gags e diálogos rápidos supunha um espectador do palco de variedades na sala de projeção. Sua cinematografia de amplos contextos, planos-sequência, raros closes e largos espaços ao ar livre, nos quais o fundo da ação multiplicava significados, apontava para o futuro neorrealista.

 

Ele que frequentemente reinventou a própria história ao dizer que nascera em Viareggio em lugar de Roma (além disso, às vezes falseando a idade em um ano, ao brincar ter aparecido no mundo em 15 de maio de 1916, não em 16 de maio de 1915) enxergava seu trabalho como uma contribuição ao neorrealismo, um gênero de grande importância que tivera público pequeno e durara pouco. Admirava o inventor de tudo, Roberto Rossellini, sua naturalidade ao conduzir as histórias entre o drama e o humor, como se elas seguissem, na tela, o fluxo da vida. Por meio de Rossellini buscou sua verve, uma linguagem de apelo comercial que pudesse fazer a comédia avançar como nunca antes, adicionando-lhe um tom crítico-dramático, às vezes trágico.

 

Monicelli começou na indústria manejando claquete, depois de ganhar um prêmio como realizador iniciante em Veneza, aos 20 anos. Passou a roteirista e começou a dirigir na companhia de Stefano Vanzina, o Steno, os filmes do maior cômico italiano, Totò. No final dos anos 1940, Monicelli já conduzia os próprios trabalhos, cujos roteiros elaborava durante longos encontros, às vezes em restaurantes romanos, com a amiga Suso Cecchi D’Amico e os companheiros saídos do jornal humorístico “Marc’Aurelio”, como Agenore Incrocci, o Age, Furio Scarpelli, Marcello Marchesi e Vittorio Metz.

 

Nascido de tal explosão coletiva, o fazer inovador de Monicelli era uma espécie de contradição, porque, ao acender as máscaras da comédia clássica, ele despia a sociedade contemporânea de seu respectivo mascaramento social, demolindo preconceitos e engodos, exatamente como se estivesse na metade do século 16, quando a commedia dell’arte apareceu na Itália. Rir para castigar os costumes era desejável, mas, em seu caso, servia também para reconstruir um país devastado pelo fascismo. Um pouco à moda de Pier Paolo Pasolini, o cineasta amigo com quem jogava futebol, Monicelli construiu a mitologia de um anti-herói moderno sem lugar no mundo. Este protagonista era um malandro iludido, um italiano médio sedento de arranjar-se durante o boom econômico do pós-guerra e frustrado ao constatar que o sistema tudo transformava em mercadoria, até ele próprio, com a mal disfarçada intenção de destruí-lo.

 

Vittorio Gassman, Tiberio Murgia e
Marcello Mastroianni em “Os Eternos Desconhecidos”, de 1958: uma paródia que fundou o
movimento cinematográfico
commedia all’italiana

Exemplar entre as obras dessa corrente, “Os Eternos Desconhecidos” parodiava em 1958 o filme de assalto “Rififi”, um sucesso dirigido pelo estadunidense Jules Dassin três anos antes. A paródia de Monicelli não apenas inaugurava uma trajetória mundial de filmes sobre assaltantes trapalhões. Principalmente, fundava um gênero humorístico capaz de fazer algo jamais realizado pelo neorrealismo: uma crítica social duradoura e popular ao establishment antes que a televisão se impusesse no final dos anos 1970 e enfraquecesse todo o cinema do país.

 

“Os Eternos Desconhecidos” lançava assim a “comédia à italiana”, intitulada ironicamente deste modo, no início, pela imprensa que desejava depreciá-la, e depois assumida como designação por seus artífices, perfeita para caracterizar um enfrentamento cômico radical tão peculiar ao país. O fogo das catarses não era obrigatório nessa corrente. Em seu lugar, havia um humor frio que, ao contrário de esquentar a plateia, chiava ao ser jogado no lago gelado, segundo uma imagem construída décadas antes pelo dramaturgo Luigi Pirandello. Na comédia à italiana, portanto, buscava-se não a risada a qualquer custo, mas a reflexão humorística.

 

O humor frio nascido em Monicelli espalhou-se por obras de escritores, músicos, atores, diretores e fotógrafos empenhados em sofisticá-lo durante três décadas. Contudo, apesar desse sentido evolutivo, as leis da comédia à italiana já estavam descritas no filme inaugural. Em “Os Eternos Desconhecidos” inexiste o final feliz porque a competência dos personagens em abraçar a burla é menor do que aquela exigida para a conclusão bem-sucedida do empreendimento. A perseguição atrapalhada desse objetivo resultará em morte, encenada na história da comédia pela primeira vez. Com roteiro de Age e Scarpelli, “Os Eternos Desconhecidos” serve-se de comédia física, além de usar estereótipos dialetais para provocar uma reação no espectador. Importante notar que todas as situações vêm narradas sob a perspectiva realista. Nada do que acontece numa comédia à italiana parecerá estranho à vida.

 

Gassman (centro), entre Mastroianni e Carla Gravina em “Os Eternos Desconhecidos”: Monicelli
descobriu o ator para a comédia neste filme

Vittorio Gassman interpreta aqui seu primeiro papel cômico, e a convite de Monicelli, que intuiu o potencial do ator dramático para o gênero. A caracterização de seu pugilista incapaz de ganhar uma luta incluiu um recurso de maquiagem que diminui a testa e dá os contornos faciais da estupidez. Ademais, o personagem reitera sua capacidade “científica” de planejar um assalto, o que provoca um contraste humorístico constante nas situações desenhadas, todas a provar o contrário do discernimento técnico que o pugilista acredita ter.

 

A relação de atores a cercá-lo é extraordinária. Marcello Mastroianni vive um fotógrafo fracassado, terno e mal-humorado, cuja mulher presa não pode cuidar do filho dos dois e lhe designa a tarefa, considerada imensamente difícil por ele. E de que modo quem não sabe cuidar de um bebê fará sua parte no assalto? Enquanto planeja o golpe, o personagem de Renato Salvatori, recém-saído do orfanato onde estão suas “três mães” funcionárias, tenta aproximar-se da siciliana vivida por Claudia Cardinale, em seu primeiro papel no cinema. Contudo, é impedido pelo irmão da jovem, interpretado por Tiberio Murgia, um garçom da Sardenha que Monicelli levou ao cinema para interpretar o siciliano patriarcal sem noção. Carlo Pisacane, esfomeado e velho, concretiza o ambiente miserável, subproletário. E Totò surge como o bandido “experiente” capaz de instruir o bando a arrombar “cientificamente” o cofre.

 

A periferia de Roma está diante de todos, como no neorrealismo, vista a partir da laje de um prédio onde Totò espalha seus ensinamentos impagáveis. É um filme de fotografia em preto e branco belíssima a cargo de Gianni di Venanzo, que depois deste filme fotografou, entre outros, “O Eclipse”, de Michelangelo Antonioni, e “Oito e Meio”, de Federico Fellini. O fracasso, sendo pobre, revela-se nobre nesta farsa que inclui o jazz instrumental de Piero Umiliani a evocar, de forma irônica, a atmosfera sofisticada do filme original de Dassin.

 

Alberto Sordi e Vittorio Gassman
em “A grande guerra”, vencedor de
Veneza, 1959: heroísmo tardio e morte em
um filme humorístico boicotado
pelo Exército italiano

Não é diferente a revolução provocada por Monicelli quando faz avançar seu grupo cômico rumo ao grande conflito mundial iniciado em 1914. Em “A Grande Guerra”, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e vencedor do Leão de Ouro de Veneza em 1959, ao lado de “De Crápula a Herói”, de Rossellini, os precários soldados vividos por Gassman e Alberto Sordi querem se dar bem, mas estão em lugar e hora errados, jogados à má sorte e à falta de comida, igualmente incapazes de vencer o frio, como o empreendimento bélico lhes impõe. Desde o anúncio de sua feitura por um cineasta humorístico, o filme revoltou o Exército italiano e Monicelli mal pôde usar equipamento real durante as filmagens. Contudo, as máximas gags construídas pelos roteiristas Age e Scarpelli permaneceram, acompanhadas pelo heroísmo tardio dos soldados e pela morte.

 

Morrer foi também inevitável cinco anos depois, quando o cineasta construiu sob atmosfera documental e máxima dedicação de Marcello Mastroianni a epopéia do fracasso de liderança durante as primeiras greves do Piemonte, no final do século 19. A partir do cenário real de uma fábrica ainda existente daquele período, o fotógrafo Giuseppe Rotunno evoca em preto e branco as primeiras capturas das câmeras fotográficas. Era um dos filmes que Mastroianni mais amara fazer, injustamente excluído da competição em Veneza por seu diretor Luigi Chiarini, cineasta e crítico de origem fascista que, imiscuído nas hierarquias cinematográficas de Benito Mussolini, desentendeu-se com Monicelli ainda nos anos 1930.

“O Incrível Exército Brancaleone”, o maior sucesso comercial de Monicelli, lançado em 1966: uma farsa histórica que o grupo Monty Python parodiou

 

A saga de Brancaleone, contudo, talvez seja a mais explícita entre estas ao encenar, por meio da farsa histórica, um mal-estar existencial vivido desde sempre na “península” (nos últimos anos de vida, Monicelli se divertia em dizer que o seu não era um país, mas um acidente geográfico, visto que não soubera operar revoluções). De todo modo, construída pelos mesmos Age e Scarpelli como paródia medieval, esse épico do fracasso surgiu em 1966 para acrescentar humorismo reflexivo às novelas de cavalaria. Não à toa o grupo britânico Monty Python parece proceder a uma paródia dessa paródia nove anos depois, no filme “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, criando gags a partir de situações semelhantes, como o atravessar de pontes, a caverna guardada por um animal feroz ou os assassinatos desenfreados até que o cavaleiro se surpreenda ao chegar onde a virgem se esconde.  

 

Em “O Incrível Exército Brancaleone”, Monicelli novamente reencena um grupo de falidos diante de uma tarefa maior que seu tamanho. Os eternos desconhecidos da vez buscam a terra prometida espiritual enquanto mergulham na tentação de resgatar regalias terrenas. A fotografia de Carlo di Palma, exímia nos tons primários vivos, e o figurino de Piero Gherardi inspirado nos filmes de samurai de Akira Kurosawa contrastam com a falta de rumo dos personagens, aumentando assim o efeito cômico já tão bem encenado pelo cavaleiro bastardo de Gian Maria Volonté, o judeu sem posses de Carlo Pisacane e o burro brutamontes que Folco Lulli interpreta. A língua falada por eles é também uma construção. Monicelli a solicitou a seus roteiristas a partir de uma mistura de variações dialetais contidas nos versos de cavalaria dos anos 1000.

 

No início, ao perceber que não entendia direito o que diziam os falantes da nova língua, o produtor Mario Cecchi Gori supôs que o público também se confundiria e quis declinar das filmagens. Monicelli então propôs que o produtor não lhe pagasse cachê, apenas uma futura participação nos lucros de exibição, e continuasse produzindo o filme, o que Gori concordou em fazer. O acolhimento popular resultou no maior sucesso comercial da carreira de Monicelli. Um diretor olhava para a frente sem se esquecer do retrovisor.

 

Quatro anos depois de muita insistência, desta vez por parte do produtor, saía “Brancaleone nas cruzadas”, jogo melancólico no qual o cavaleiro interpretado por Gassman enfrenta a Morte. Não à toa, ali, ela aparece representada por Monicelli de maneira tão risível quanto desafiadora. Na infância, o futuro diretor fora o primeiro da família a presenciar o corpo inerte do pai Tomaso, jornalista, editor e escritor que se suicidara no banheiro, em 1946. Mas nos seus filmes os funerais possibilitaram deliciosas situações cômicas. Monicelli desdenhava da velhice, que dizia não conhecer, e das doenças, jurando jamais haver contraído um resfriado. Diretor de sete dezenas de filmes, escritor de mais de uma centena, atirou-se do quinto andar de um hospital romano em 29 de novembro de 2010, aos 95 anos, justamente quando iria dar início ao tratamento contra o câncer na próstata, sua primeira doença grave. Morreu quando chovia. Ou como diria um de seus netos à irmã mais nova, Monicelli abriu as asas para voar até o céu, para o futuro que ninguém mais, exceto ele, pudesse buscar.

Para que o riso nos console

Séries sul-coreanas e japonesas encaram a tragédia humana com humor, às vezes involuntário

Park Eun-bin, um show de atriz para representar a profissional autista de “Uma Advogada Extraordinária”, série em primeira temporada pela Netflix

Há um bom lugar na Netflix para as séries japonesas e sul-coreanas. São comédias românticas, na maioria das vezes. Um gênero muito interessante de acompanhar, desde o cinema mudo. Culminam com o beijo, que foi uma das primeiras emoções encenadas pelo cinema, e podem crescer com a dança, um jeito de representar sexo para além da nudez e dos jogos de palavras. Os desencontros têm um grande papel na construção do efeito humorístico, são sua essência.

Amo as comédias românticas, desde as mudas, ou principalmente estas. Mas quando penso nos anos 1930 dos Estados Unidos, nos 1940 da Itália, que festa! E que pena para a representação da condição feminina dentro delas. Só o casamento poderia dar a qualquer mulher o direito de ser feliz nessas tramas vigiadas.

As comédias românticas orientais presentes na Netflix hoje, em sua maioria, não significam cinema. São tevê bem feita, programas ficcionais cujo público-alvo é um setor da sociedade apontado como consumidor potencial. Gosto muito de um dos procedimentos dentro delas, que me remete aos filmes do diretor japonês Mikio Naruse (1905-1969). Os personagens raciocinam conversando, enquanto andam. Muito do bom cinema para mim é isso, movimentar-se. O ator italiano Marcello Mastroianni dizia à filha Chiara que, para atuar, ela precisaria apenas saber andar sobre os trilhos olhando para a câmera, não para os pés.

No reality show “Crescidinhos”,
o primeiro passo para a vida em sociedade é dado ao caminhar

Até os reality shows orientais precisam fazer rir. É o caso da série pensada para que os pais de crianças pequenas aprendam a soltá-los. “Crescidinhos” envolve meninas e meninos a partir dos dois ou três anos de idade em tarefas solitárias, monitoradas bem de perto pela direção do programa. Eles precisam ir e voltar sozinhos de um ponto a outro de sua cidade, fazer compras ou entregar coisas. Como se estivesse implícito que caminhar é acordar para o mundo, é viver.

Há uma oferta séria para ambientalistas nesse rol. A ficção científica japonesa “Japão submerso: A esperança” aponta a fúria da mãe Terra diante dos maus hábitos que desenvolvemos em relação a ela. O humor aqui é involuntário, tantas vezes. A partir de um mangá de Sakyo Komatsu também disponível como anime na Netflix, e com roteiro de Toshio Yoshitaka, trata-se de uma história aflitiva, sem o consolo de apresentar um futuro certo a seus personagens, na direção oposta dos casos das crianças muito pequenas, soltas numa rua controlada, do reality show “Crescidinhos”. 

Os orientais são tão refletidos, conscientes, engraçados, puros e caricaturais em “Japão Submerso”, mesmo enfrentando o apocalipse! As ações ambientais marinhas do governo interferem no movimento das placas tectônicas e, como consequência, o país inteiro vai sofrer abalos e sumir. Como assim, desaparecer uma nação tradicional dessas, com 120 milhões de habitantes? O governo nem tem tempo para pensar, mas ainda que pondere os efeitos da catástrofe em sua economia, quer proporcionar um futuro aos japoneses, o que faz pensar…

“Japão submerso: A esperança”, ficção científica ambientalista que começou como anime: um show capilar

A trilha sonora da série é péssima, nunca se coloca na hora certa, e as cortinas aparecem imensas, revelando insistente contraluz. Uma fotografia pouco inspirada, talvez. Os cabelos dos atores, trabalhados exageradamente, diferenciam os personagens: espessos, majestosos, desarrumados, escassos, lambidos. Tenho vontade de abraçar a personagem jornalista naquele Japão surreal que nem mais existirá, a menos que o capitalismo o salve, que as empresas japonesas coordenem a migração em massa e que os cientistas, ainda por cima, combatam um vírus mutante oportunista, parecido com uma barata marinha. Vontade de roer as unhas. E rir.

Para o povo jurídico millenial, a série coreana “Uma Advogada Extraordinária” é espetacular. Vai lhes apontar um lugar na sociedade e, principalmente, discutir a ética e as leis num país distante, para o qual sopram os ventos da modernidade. Dirigida por Yu In-sik, a comédia dramática k-pop é em essência um show de mulheres em posição de comando, ainda assim, mal resolvidas social ou emocionalmente. Quem me falou sobre ela foi minha linda amiga de tantos anos, a escritora Betty Priesmag. Creio que desejou me confortar no meu novo retiro, imposto por mais um ligamento do tornozelo, desta vez totalmente rompido nas calçadas de São Paulo. Por pouco não precisei operar, e sinto insegurança sobre como vou andar pela rua de novo… Mas, bem, Betsy tem esse poder sobre mim, ela me animou: na hora do estresse, contou-me, a protagonista coreana ouve o grito das baleias e o frescor de uma epifania lhe surge. Conferi e “Uma Advogada Extraordinária” é isto, exatamente. Mas isto com humor, drama, romance, consciência social.

Vi todos os capítulos apresentados até agora, e faltam apenas dois para a primeira temporada se encerrar. A advogada extraordinária, que na verdade é autista, anda como um Chaplin de pernas abertas, tem mãos, rosto e pele lisos e ágeis de juventude, um olhar que investiga e se perde. Um show de atriz, a bela Park Eun-bin, que atua desde a infância. E os atores secundários são cômicos de igual estatura. Na série, a jovem advogada é amada pelo galã de tevê Kang Tae-oh, que interpreta um investigador. Ao que parece, a protagonista não terá sua história de amor resolvida tão cedo. A estrutura narrativa é assemelhada àquela que orienta as séries médicas: constrói-se o episódio a partir da tentativa de resolução de casos defendidos por um grande escritório de advocacia da Coreia do Sul.

Sigo firme em busca de novas opções dentro da barafunda desesperançada que é a Netflix, e se as tiverem, me falem delas. Amo os orientais de qualquer jeito, seja por sua modernidade anterior aos modernos, pela beleza, seja por sua tipicidade cômica fixa, a ousadia de nos confrontar caricaturalmente com assuntos extremos. Só eles para nos fazer rir quando em realidade deveríamos já ter arrancado todos os cabelos distópicos, à espera de o mundo encontrar seu fim.

Muito de Lucy

Nicole Kidman como Lucille Ball em “Apresentando os Ricardos”,
de Aaron Sorkin

Fiquei animada quando o querido Sergio Gonzalez Santosh me contou sobre “Apresentando os Ricardos” e me disse que Nicole Kidman funcionava bem como Lucille Ball (1911-1989). Eis um personagem complicado de fazer, pensei, uma bela coadjuvante que, recusada como estrela à maneira de Crawford ou Hayworth, foi parar (não sem uma frustração inicial) no seu lugar de direito, a comédia, para ser uma das maiores.

O belo que, diziam, não combinava com a vocação de fazer rir. O belo que, sabia-se, funcionava mais à frente da câmera do que atrás. O belo que, para a mulher, era um destino rapidamente findo, visto que os 30 anos não perdoavam ninguém. Foi preciso que a série “I Love Lucy” enterrasse toda essa futurologia hollywoodiana de uma vez.

Comediante física herdeira do cinema mudo, cuja máscara falava por si, e perfeccionista da gag, além de atriz, Lucille era também humorista, no sentido de que produzia, escrevia, reescrevia e dirigia o próprio humor. No mundo da tevê dos anos 1950, nada a impediu de estraçalhar o palco à maneira de um Harpo Marx, com quem aliás contracenou em um episódio da série, perfeita até para os gostos conservadores da perseguição macarthista, embora, é claro, se tenha tentado destruí-la por sua antiga filiação ao Partido Comunista, episódio que este filme de Aaron Sorkin aborda.

“Bossy” com Bardem

Sim, Aaron Sorkin, o mesmo Sorkin de “Os Sete de Chicago” cuja marca como escritor é o encadeamento fluido de situações que se resolvem com diálogos no mais das vezes curtos. O que me impressionou bastante, além das atuações de Kidman e de Javier Bardem (Desi Arnaz), J K Simmons (Fred) e Nina Arianda (Ethel), foi a capacidade do autor de desvelar o mito da alegria, segundo o qual, por ser humorista, o sujeito é feliz.

E não é. A melancolia regeu do Barão de Itararé a Chico Anysio e Judy Holiday (comediante vencedora do Oscar que, diz este filme, Lucille detestava com todo o coração), e até parece ser uma condição para provocar o riso. Só o verdadeiro humorista (não aquele que humilha o fraco, pois isso não é humor, é só coronelismo) sabe do grande trabalho envolvido em sair da própria posição anímica para alcançar o sublime, um estado de libertação das correntes opressivas que nos sustentam, mesmo que por alguns minutos.

Lucille Ball era “bossy”, ensina-nos este filme, mal-humorada e durona de verdade, algo que se entrevê nas entrevistas de época durante as quais não ri. E não era possível dirigi-la – algo que parece acontecer comumente com os artistas da comédia física. Com ela, só funcionava a sugestão, enquanto os produtores, diretores e roteiristas (havia uma roteirista em sua equipe, Madelyn Pug) reivindicavam autoria para o próprio trabalho, sem conhecer a máxima de Billy Wilder segundo a qual fazer um roteiro é preparar a cama para o diretor pular em cima.

Nicole Kidman, que nunca me animou demais como atriz, está mesmo excelente aqui. Sorkin não quis que ela se maquiasse ou ganhasse enchimentos para se parecer com Lucy – e não haveria mesmo como se parecer, exceto se a buscasse fundo. Na gestualidade. Na voz. É impressionante a sua interpretação vocal. E muito surpreendente seu desenrolar físico. Na gag do barril de uvas no qual ela pisa para achar um brinco, estamos realmente diante de Lucy.

É claro que toda a dificuldade de Lucille em se impor na carreira, segundo este filme, equipara-se àquela de manter a seu lado o marido, o Desi “Desiderio” mulherengo inferiorizado que, em Bardem, ganha sua porção de doçura e deslumbre. E ainda por cima, no fim, um twist nos trai… Mas por que exigir tudo de uma cinebiografia que se pode ver em casa, no streaming da Amazon Prime ou no download maneiro pelo computador? O que importa é que a rara oportunidade de contar a história de Lucy tenha sido bem aproveitada, como foi.

“Não olhe pra cima”, uma catarse para combater os negacionistas

Cate Blanchett e Tyler Perry no telejornal diurno de “Não olhe para cima”, de Adam McKay, na Netflix

Entendi “Não olhe para cima” como um entretenimento de Netflix, uma comédia na medida das minisséries, que comenta nossos tempos terraplanistas justamente para que nos aliviemos deles.

Os atores são experimentados e lidam bem com o gênero cômico. O roteiro amalucado não chega a mimetizar aqueles dos irmãos Zucker, sempre a se espelhar em outros filmes, mas segue as leis da paródia social, botando no chão (não pra cima, justamente) os tipos da atualidade política, da ciência, do jornalismo, dos super ricos, das celebridades, da branquitude estadunidense, dos negacionistas.

Demorei pra reconhecer a Cate Blanchett com aquela dentadura e a maquiagem que mimetiza as superbotocadas da televisão… Como sempre, uma atriz e tanto.

Só não entendi por que bater tanta boca por este filme.

É pra ser catártico, não pra nos fazer sofrer, ou me engano?

Carnaval é preciso

Doris Day, cabelos hipnóticos, e Thelma Ritter, a incrível, em “Pillow Talk”, de 1959: embriagai-vos de comédia

Hoje só consegui suportar o dia com muita comédia nas veias.

Até revi “Pillow Talk” (1959), que continua gracioso por conta do Rock Hudson, da Doris Day, do Tony Randall e, principalmente, da sábia popular Thelma Ritter de sempre, desta vez embriagadíssima, que atriz incrível!

Amei o filme como o amava desde as Sessões da Tarde, apesar de hoje constatar ali mais uma repetição do destino urdido à mulher desde os anos 1930 e do furibundo código Hays. O casamento como único caminho para a felicidade feminina! O casamento como fim, o fim!

Apesar disso tudo, aprecio no filme outras coisas, os efeitos cômicos de surpresa, a intensa preparação corporal dos atores, seus olhos que crescem, os cabelos hipnóticos, suas máscaras que nos movimentam até um éden momentâneo.

Doris e Rock Hudson: o casamento como fim, o fim!

Meu caçula, um feminista, riu comigo de muitas passagens picantes-inocentes que furavam a censura pelos diálogos dúbios.

A comédia é uma pulsão de cura. Comediantes, a quem sempre se atribui menos, são natos, e eu os louvo em sua eternidade.

E preciso de mais!

John Cleese, participação especialíssima em “Will and Grace”

Na linha de “Pillow Talk”, vou esgotando os episódios da já tão anacrônica série de tevê “Will and Grace” (1998-2006), com sua mistura de Doris e Rock, Lucille Ball e Desi Arnaz, de Thelma Ritter e Mary Tyler Moore, de Jerry Seinfeld e o escambau.

Preciso de humor, de festa da carne, de carnaval. E “Will and Grace” já me tirou de poços profundos…

Carnaval ou Morte! – digo então ao apontar para esta senhora que atualmente é a mais deselegante representação do Brasil.

Ninguém derruba a história

“Fantasmas em Roma”, clássico de Antonio Pietrangeli, ronda o YouTube em versão original

As assombrações se divertem, capitaneadas por Mastroianni

“Fantasmas em Roma” é um filme divertido, crítico e bonito de Antonio Pietrangeli (como, de resto, todos os que ele fez), além disso bem-sucedido nos cinemas paulistanos à época de seu lançamento, em 1961, quando todo o bom cinema merecia um circuito comercial na cidade. Redescubro-o no YouTube em sua versão original sem legendas (“Fantasmi a Roma”), com música de Nino Rota.

O diretor Antonio Pietrangeli

Pietrangeli começou como roteirista e auxiliar de direção de Luchino Visconti em “Ossessione”, versão italiana de 1943 para o clássico noir de James M. Cain. Este romano escreveu para muitos outros máximos diretores de seu país, como Pietro Germi (Gioventù Perduta, 1948) ou Roberto Rossellini (Dov’è lá Libertà, de 1954, com Totò). E foi crítico dos bons.

Morreu de maneira trágica, como tragicômica era a maioria de suas histórias, à moda da mais famosa, “Io la conoscevo bene”, de 1965, na qual Stefania Sandrelli vive uma jovem impedida de realização social pelo preconceito que então rondava a mulher. Pietrangeli morreu afogado quatro anos depois de realizar este clássico, enquanto filmava a sequência final de “História de um Adultério”. Aos 49 anos, caiu de um penhasco onde se colocara para orientar seus atores.

Duas almas contra um especulador

Este “Fantasmas em Roma”, excelente representante da aguda commedia all’italiana, escrito por ele, Ettore Scola, Ruggero Maccari, Ennio Flaiano e Sergio Amidei, heróis do roteiro cômico em duas gerações, é atípico de uma carreira dedicada a compreender a complexidade feminina. Mas, sempre um ácido crítico do consumismo especulador, Pietrangeli mostra aqui a farsa embutida na tentativa de derrubar a história (personalizada por um velho casarão) para nela construir um supermercado.

E o papagaio do príncipe não recitava Lampedusa…

No palazzo em que se passa a trama, mora um príncipe decadente (o grande ator e dramaturgo napolitano Eduardo De Filippo), que fala sem sucesso com seu papagaio morto, incapaz de declamar Lampedusa, como haviam lhe prometido. Don Annibale di Roviano vive entre os fantasmas de sua família, embora não possa vê-los, nem saber que eles o protegem. Os Roviani são a ruína (“rovina” em italiano) que persiste com seu respaldo. O fato de ser um príncipe que não trabalha ainda lhe dá uma posição em sociedade.

Marcello Mastroianni interpreta Reginaldo di Roviano, o fantasma de uma espécie de Casanova, e mais dois outros papéis – o de um de seus tortos descendentes e o de um terceiro debiloide que ele não suspeitava pertencer a sua linhagem. Vittorio Gassman é o fantasma irascível de Caparra, pintor rival de Caravaggio, chamado pelos outros na batalha contra os novos ocupantes.

Vittorio Gassman é o pintor
diante de uma Sandra Milo que se
suicidou por amor

À parte a vistosa aparição de Valentina Cortese, vivente enlouquecida pela traição do marido, a esmolar nos restaurantes sob o apelido de Rainha, uma doce Sandra Milo representa o fantasma de jovem que se suicidou de paixão. Um menino (Claudio Catania), irmão mais velho de Don Annibale, morto criança, ronda rindo os espaços do casarão, da escola (onde ajuda uma protegida) e da rua, para onde Sandra Milo vai todas as noites atirar-se novamente ao rio. Enquanto isto, o Frei Bartolomeu (Tino Buazzelli), morto pela boca, que ardia por um polpetonne, ainda fareja o melhor prato de comida entre os vivos.

Com eles ninguém pode

Estas assombrações são molecas, felizes, vestem as roupas prateadas das estrelas invisíveis, riem-se, enfurecem-se, erram os costumes. (Mastroianni se interessa por uma cantora que descobre ser um cantor…) Mas que ninguém ouse ocupar o retiro dos fantasmas. Se depender dos Rovianni, não vai ser desta vez que a história será destruída por uns maços de dinheiro da velha corrupção.

Covideiros paneleiros

É verdade que só comecei a assistir a esta série zúmbica do Cláudio Torres, cineasta da Conspiração e filho da Fernanda Montenegro, porque o Mauricio Tagliari fez a trilha original. Mas vai daí que estou me divertindo à beça e gostaria de recomendá-la aos da quarentena eterna.

Os zumbis podem ser qualquer coisa em Reality Z – paneleiros, covideiros -, porque toda a ameaça que o Torres encena no Rio ou na Globo se encaixa em nossa desgraça brasileira.

Divirtam-se, vocês que tanto gostaram de Bacurau!

Arma dos impotentes

Sou estranha mesmo.
Difícil.
Lenta.
Sorrio.
Acho que a comédia liberta.
Que o riso é a arma dos impotentes.
Busco o cinema silencioso mais do que o falado.
E procuro o silêncio nos filmes que falam.
Seria mais feliz se tivesse amigos que me compreendessem, amassem os filmes que amo e juntos conversássemos sobre eles a noite inteira?
Mas eu sou feliz.
Eu os tenho.

I love Lily

Não sei o que me faz amar Lily Tomlin tanto assim.
Desde Nashville, de Nine to Five a All of Me…
Que estrela!
Mal chega uma temporada de “Grace and Frankie” e eu a devoro inteira por causa dela…
Em primeiro lugar, uma comediante que sorri!
E que parece feliz.
Que sabe o seu lugar.
E que jamais desistiu de lutar com elegância por ele.
Que se recusou a sair do armário numa capa pra Time.
E que acabou capa da Time do mesmo jeito anos depois, em 1977, celebrada como “Rainha da Comédia”.
Uma comediante, mulher comediante, é sempre uma heroína.
Vocês sabem que Lily é o nome da mãe dela?
Que seu verdadeiro nome é Mary Jean, quase uma Norma Jean?
Que ela estudou medicina, como Graham Chapman, o Brian de Monty Python?
Que sua esposa se chama Jane? Que são uma dupla de trabalho também? Que ela cria e escreve papeis pra Lily?
E que sua preferência como atriz é atuar diante da plateia, improvisando e trocando energias com ela?
Pois então.
Sinto falta de chamar os amigos pra falar sobre Lily Tomlin.
Não que eu tenha muitos, mas…
Pelo menos tentaria reuni-los, não fosse a tristeza atual.
Mas Lily não é triste.
Não vou ser.
💜