Um dos maiores diretores da comédia à italiana, Mario Monicelli encenou pequenos anti-heróis incapazes de realizar as burlas em que se empenhavam

atento à busca pelo anti-herói
moderno sem lugar no mundo
Mario Monicelli dirigia para a frente sem largar o retrovisor. Atrás dele vinham velozes as farsas mudas de Harry Langdon, Charles Chaplin ou Buster Keaton, projetadas nos cinemas barulhentos da infância, e também as peças da commedia dell’arte que, renascidas com sucesso em teatros empoeirados de sua juventude, pintavam tipos cômicos universais. Roteirizado coletivamente de modo a compor uma espécie de sucessão de quadrinhos em página de jornal, este cinema pleno de gags e diálogos rápidos supunha um espectador do palco de variedades na sala de projeção. Sua cinematografia de amplos contextos, planos-sequência, raros closes e largos espaços ao ar livre, nos quais o fundo da ação multiplicava significados, apontava para o futuro neorrealista.
Ele que frequentemente reinventou a própria história ao dizer que nascera em Viareggio em lugar de Roma (além disso, às vezes falseando a idade em um ano, ao brincar ter aparecido no mundo em 15 de maio de 1916, não em 16 de maio de 1915) enxergava seu trabalho como uma contribuição ao neorrealismo, um gênero de grande importância que tivera público pequeno e durara pouco. Admirava o inventor de tudo, Roberto Rossellini, sua naturalidade ao conduzir as histórias entre o drama e o humor, como se elas seguissem, na tela, o fluxo da vida. Por meio de Rossellini buscou sua verve, uma linguagem de apelo comercial que pudesse fazer a comédia avançar como nunca antes, adicionando-lhe um tom crítico-dramático, às vezes trágico.
Monicelli começou na indústria manejando claquete, depois de ganhar um prêmio como realizador iniciante em Veneza, aos 20 anos. Passou a roteirista e começou a dirigir na companhia de Stefano Vanzina, o Steno, os filmes do maior cômico italiano, Totò. No final dos anos 1940, Monicelli já conduzia os próprios trabalhos, cujos roteiros elaborava durante longos encontros, às vezes em restaurantes romanos, com a amiga Suso Cecchi D’Amico e os companheiros saídos do jornal humorístico “Marc’Aurelio”, como Agenore Incrocci, o Age, Furio Scarpelli, Marcello Marchesi e Vittorio Metz.
Nascido de tal explosão coletiva, o fazer inovador de Monicelli era uma espécie de contradição, porque, ao acender as máscaras da comédia clássica, ele despia a sociedade contemporânea de seu respectivo mascaramento social, demolindo preconceitos e engodos, exatamente como se estivesse na metade do século 16, quando a commedia dell’arte apareceu na Itália. Rir para castigar os costumes era desejável, mas, em seu caso, servia também para reconstruir um país devastado pelo fascismo. Um pouco à moda de Pier Paolo Pasolini, o cineasta amigo com quem jogava futebol, Monicelli construiu a mitologia de um anti-herói moderno sem lugar no mundo. Este protagonista era um malandro iludido, um italiano médio sedento de arranjar-se durante o boom econômico do pós-guerra e frustrado ao constatar que o sistema tudo transformava em mercadoria, até ele próprio, com a mal disfarçada intenção de destruí-lo.

Marcello Mastroianni em “Os Eternos Desconhecidos”, de 1958: uma paródia que fundou o
movimento cinematográfico
commedia all’italiana
Exemplar entre as obras dessa corrente, “Os Eternos Desconhecidos” parodiava em 1958 o filme de assalto “Rififi”, um sucesso dirigido pelo estadunidense Jules Dassin três anos antes. A paródia de Monicelli não apenas inaugurava uma trajetória mundial de filmes sobre assaltantes trapalhões. Principalmente, fundava um gênero humorístico capaz de fazer algo jamais realizado pelo neorrealismo: uma crítica social duradoura e popular ao establishment antes que a televisão se impusesse no final dos anos 1970 e enfraquecesse todo o cinema do país.
“Os Eternos Desconhecidos” lançava assim a “comédia à italiana”, intitulada ironicamente deste modo, no início, pela imprensa que desejava depreciá-la, e depois assumida como designação por seus artífices, perfeita para caracterizar um enfrentamento cômico radical tão peculiar ao país. O fogo das catarses não era obrigatório nessa corrente. Em seu lugar, havia um humor frio que, ao contrário de esquentar a plateia, chiava ao ser jogado no lago gelado, segundo uma imagem construída décadas antes pelo dramaturgo Luigi Pirandello. Na comédia à italiana, portanto, buscava-se não a risada a qualquer custo, mas a reflexão humorística.
O humor frio nascido em Monicelli espalhou-se por obras de escritores, músicos, atores, diretores e fotógrafos empenhados em sofisticá-lo durante três décadas. Contudo, apesar desse sentido evolutivo, as leis da comédia à italiana já estavam descritas no filme inaugural. Em “Os Eternos Desconhecidos” inexiste o final feliz porque a competência dos personagens em abraçar a burla é menor do que aquela exigida para a conclusão bem-sucedida do empreendimento. A perseguição atrapalhada desse objetivo resultará em morte, encenada na história da comédia pela primeira vez. Com roteiro de Age e Scarpelli, “Os Eternos Desconhecidos” serve-se de comédia física, além de usar estereótipos dialetais para provocar uma reação no espectador. Importante notar que todas as situações vêm narradas sob a perspectiva realista. Nada do que acontece numa comédia à italiana parecerá estranho à vida.

descobriu o ator para a comédia neste filme
Vittorio Gassman interpreta aqui seu primeiro papel cômico, e a convite de Monicelli, que intuiu o potencial do ator dramático para o gênero. A caracterização de seu pugilista incapaz de ganhar uma luta incluiu um recurso de maquiagem que diminui a testa e dá os contornos faciais da estupidez. Ademais, o personagem reitera sua capacidade “científica” de planejar um assalto, o que provoca um contraste humorístico constante nas situações desenhadas, todas a provar o contrário do discernimento técnico que o pugilista acredita ter.
A relação de atores a cercá-lo é extraordinária. Marcello Mastroianni vive um fotógrafo fracassado, terno e mal-humorado, cuja mulher presa não pode cuidar do filho dos dois e lhe designa a tarefa, considerada imensamente difícil por ele. E de que modo quem não sabe cuidar de um bebê fará sua parte no assalto? Enquanto planeja o golpe, o personagem de Renato Salvatori, recém-saído do orfanato onde estão suas “três mães” funcionárias, tenta aproximar-se da siciliana vivida por Claudia Cardinale, em seu primeiro papel no cinema. Contudo, é impedido pelo irmão da jovem, interpretado por Tiberio Murgia, um garçom da Sardenha que Monicelli levou ao cinema para interpretar o siciliano patriarcal sem noção. Carlo Pisacane, esfomeado e velho, concretiza o ambiente miserável, subproletário. E Totò surge como o bandido “experiente” capaz de instruir o bando a arrombar “cientificamente” o cofre.
A periferia de Roma está diante de todos, como no neorrealismo, vista a partir da laje de um prédio onde Totò espalha seus ensinamentos impagáveis. É um filme de fotografia em preto e branco belíssima a cargo de Gianni di Venanzo, que depois deste filme fotografou, entre outros, “O Eclipse”, de Michelangelo Antonioni, e “Oito e Meio”, de Federico Fellini. O fracasso, sendo pobre, revela-se nobre nesta farsa que inclui o jazz instrumental de Piero Umiliani a evocar, de forma irônica, a atmosfera sofisticada do filme original de Dassin.

em “A grande guerra”, vencedor de
Veneza, 1959: heroísmo tardio e morte em
um filme humorístico boicotado
pelo Exército italiano
Não é diferente a revolução provocada por Monicelli quando faz avançar seu grupo cômico rumo ao grande conflito mundial iniciado em 1914. Em “A Grande Guerra”, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e vencedor do Leão de Ouro de Veneza em 1959, ao lado de “De Crápula a Herói”, de Rossellini, os precários soldados vividos por Gassman e Alberto Sordi querem se dar bem, mas estão em lugar e hora errados, jogados à má sorte e à falta de comida, igualmente incapazes de vencer o frio, como o empreendimento bélico lhes impõe. Desde o anúncio de sua feitura por um cineasta humorístico, o filme revoltou o Exército italiano e Monicelli mal pôde usar equipamento real durante as filmagens. Contudo, as máximas gags construídas pelos roteiristas Age e Scarpelli permaneceram, acompanhadas pelo heroísmo tardio dos soldados e pela morte.
Morrer foi também inevitável cinco anos depois, quando o cineasta construiu sob atmosfera documental e máxima dedicação de Marcello Mastroianni a epopéia do fracasso de liderança durante as primeiras greves do Piemonte, no final do século 19. A partir do cenário real de uma fábrica ainda existente daquele período, o fotógrafo Giuseppe Rotunno evoca em preto e branco as primeiras capturas das câmeras fotográficas. Era um dos filmes que Mastroianni mais amara fazer, injustamente excluído da competição em Veneza por seu diretor Luigi Chiarini, cineasta e crítico de origem fascista que, imiscuído nas hierarquias cinematográficas de Benito Mussolini, desentendeu-se com Monicelli ainda nos anos 1930.

A saga de Brancaleone, contudo, talvez seja a mais explícita entre estas ao encenar, por meio da farsa histórica, um mal-estar existencial vivido desde sempre na “península” (nos últimos anos de vida, Monicelli se divertia em dizer que o seu não era um país, mas um acidente geográfico, visto que não soubera operar revoluções). De todo modo, construída pelos mesmos Age e Scarpelli como paródia medieval, esse épico do fracasso surgiu em 1966 para acrescentar humorismo reflexivo às novelas de cavalaria. Não à toa o grupo britânico Monty Python parece proceder a uma paródia dessa paródia nove anos depois, no filme “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, criando gags a partir de situações semelhantes, como o atravessar de pontes, a caverna guardada por um animal feroz ou os assassinatos desenfreados até que o cavaleiro se surpreenda ao chegar onde a virgem se esconde.
Em “O Incrível Exército Brancaleone”, Monicelli novamente reencena um grupo de falidos diante de uma tarefa maior que seu tamanho. Os eternos desconhecidos da vez buscam a terra prometida espiritual enquanto mergulham na tentação de resgatar regalias terrenas. A fotografia de Carlo di Palma, exímia nos tons primários vivos, e o figurino de Piero Gherardi inspirado nos filmes de samurai de Akira Kurosawa contrastam com a falta de rumo dos personagens, aumentando assim o efeito cômico já tão bem encenado pelo cavaleiro bastardo de Gian Maria Volonté, o judeu sem posses de Carlo Pisacane e o burro brutamontes que Folco Lulli interpreta. A língua falada por eles é também uma construção. Monicelli a solicitou a seus roteiristas a partir de uma mistura de variações dialetais contidas nos versos de cavalaria dos anos 1000.
No início, ao perceber que não entendia direito o que diziam os falantes da nova língua, o produtor Mario Cecchi Gori supôs que o público também se confundiria e quis declinar das filmagens. Monicelli então propôs que o produtor não lhe pagasse cachê, apenas uma futura participação nos lucros de exibição, e continuasse produzindo o filme, o que Gori concordou em fazer. O acolhimento popular resultou no maior sucesso comercial da carreira de Monicelli. Um diretor olhava para a frente sem se esquecer do retrovisor.
Quatro anos depois de muita insistência, desta vez por parte do produtor, saía “Brancaleone nas cruzadas”, jogo melancólico no qual o cavaleiro interpretado por Gassman enfrenta a Morte. Não à toa, ali, ela aparece representada por Monicelli de maneira tão risível quanto desafiadora. Na infância, o futuro diretor fora o primeiro da família a presenciar o corpo inerte do pai Tomaso, jornalista, editor e escritor que se suicidara no banheiro, em 1946. Mas nos seus filmes os funerais possibilitaram deliciosas situações cômicas. Monicelli desdenhava da velhice, que dizia não conhecer, e das doenças, jurando jamais haver contraído um resfriado. Diretor de sete dezenas de filmes, escritor de mais de uma centena, atirou-se do quinto andar de um hospital romano em 29 de novembro de 2010, aos 95 anos, justamente quando iria dar início ao tratamento contra o câncer na próstata, sua primeira doença grave. Morreu quando chovia. Ou como diria um de seus netos à irmã mais nova, Monicelli abriu as asas para voar até o céu, para o futuro que ninguém mais, exceto ele, pudesse buscar.

















