Naquele 1994, eu trabalhava como editora-assistente do “Divirta-se”, a seção diária de cultura do “Jornal da Tarde”, quando a ocasião de entrevistar Fernando Sabino (1923-2004) se apresentou. O escritor que eu admirava tanto, mas do qual ninguém queria mais saber, descido aos infernos depois de narrar de próprio punho a vida da então ministra Zélia Cardoso de Mello, lançava um livro novo. Até que enfim, pensei. Fui até ele como o sedento corre atrás do primeiro copo d’água. Mas que decepção! Era como se o escritor, por meio do livro, narrasse a vida de Cristo com o objetivo de ser perdoado, e justamente perto do Natal. Uma história fraca, semelhante àquelas que os evangelizadores propagam em edições infanto-juvenis facilitadas, ou pelo menos, àquela altura, me parecia deste modo (jamais reli o livro). Matutei e decidi que ainda assim valeria a pena entrevistar o escritor. Por sua importância, até pelo imbróglio com Zélia, a ministra de aura corrompida que tinha a história impressa tardiamente, como sempre, nos nossos jornais.
Eu conhecera Fernando Sabino, cujo centenário de nascimento se recorda agora, nos bastidores dos shows do Nouvelle Cuisine, banda de jazz que, surgida no final dos anos 1980, tinha a participação de meu marido, o guitarrista Mauricio Tagliari. Lembro-me de uma noite em que, sentado ao lado da esposa, a bela Lígia, Fernando Sabino nos divertira ao espinafrar o amigo Vinicius de Moraes: “Só danço samba, só danço samba, vai vai vai? Isso é letra de música? Não dá”.
Pensei que, ao entrevistá-lo em sua casa, conseguiria frases divertidas assim. Vendi a pauta em reunião, o editor aceitou a ideia e peguei o voo para o Rio. Mas, ao visitar o escritor em seu apartamento simplório de Copacabana (cheguei a lamentar sua situação financeira, mas um editor de lá me garantiu que a pobreza de Fernando Sabino era só pão-durice), vi um homem diferente. Triste. Talvez porque Lígia não o quisesse mais.
Não me reconheceu daqueles tempos. E serviu café feito por ele mesmo na hora, obtido pelo filtro de pano que ia dar em um bule esmaltado branco. Sabino não queria falar sobre Zélia, nem eu, sobre o escrito novo. De minha parte, jovem, não sabia o que dizer sobre sua novela sem magoá-lo. Foi tudo difícil entre nós, um verdadeiro embate. “Quando vamos falar sobre o meu livro?”, ele me questionava, elétrico, e com razão. Mas eu o enrolei enquanto pude. E até consegui que comentasse sobre a vizinhança empobrecida, em uma narrativa direta, tão sua, a única que restou na minha memória daquele dia, embora eu não tivesse conseguido encaixá-la no tempo curto de edição e no espaço menor ainda da seção cultural:
Certo dia, em uma rua de Copacabana, Fernando Sabino ouviu um sem-teto bradar à mulher, sentada sobre a esteira de papelão: “Mas quando foi que lhe faltei?”
O escritor em 1994, na foto de Carlos Chicarino
Os pássaros bicam as flores de Fernando Sabino a cada 30 ou 60 segundos. Mas o escritor nunca está à janela para vê-los. É agitado esse homem de 71 anos e cabelos, em parte, muito negros. Fala a sua interlocutora enquanto aumenta o volume do som, prepara o café, mostra cadernos antigos e livros e exibe fotografias. Um beija-flor que pousa num pote de água açucarada parece mais sereno. Sabino não o vê. De costas para a janela, sentado na poltrona de seu apartamento em Copacabana, o autor de “O Grande Mentecapto” espia um enorme espelho. Eis o truque: Sabino observa os passarinhos, sim. Mas refletidos. São reflexos do mundo, o que ele vê. Heróis de grande plateia, que gosta de apelidar “literários”. Heróis com o nome de Zélia Cardoso de Mello. Ou Jesus Cristo.
Sim. O novo livro de Fernando Sabino, “Com a graça de Deus”, conta a história do Salvador. “Uma leitura fiel do Evangelho inspirada no humor de Jesus”, conforme ele nos relata no subtítulo. O escritor se declara um homem de fé. “Muito pequeno, eu olhava para o céu e me perguntava: ‘Onde isso começa? Onde acaba?’ Aos 11 anos, decidi que havia uma coisa misteriosa chamada Deus. E não pensei mais no assunto.” Sabino gosta de dizer que sua fé é irracional. “O problema não é eu acreditar em Deus. É ele acreditar em mim.” São tantos os livros sobre Cristo editados atualmente – 50 por dia, segundo seus cálculos – que o autor não considera possível lê-los todos. Ele não conhece os escritos de Claude Tresmontant, que enumeram, entre os erros de tradução dos evangelhos, aquele relacionado à palavra fé. Para o senhor Tresmontant, a fé deve ser entendida como no original hebraico: é um “estar certo da verdade”.
Fernando Sabino não se permitiu exagerado tempo para as pesquisas. Iniciou-as em agosto de 1993 e apresenta seu livro nesta semana de 1994. É uma história de Cristo em seu estilo: palavras simples e estudadas, narrativa clara. O humor é aquele contido em “The Humour of Christ”, título de um livro do teólogo Elton Trueblood que o inspirou a escrever. O escritor mineiro insiste que Jesus às vezes ri. Exatamente como o Cristo das lojas Piter. “Cristo era um convite à valsa. Comia e bebia. Mandava a festa continuar enquanto o noivo estivesse presente. E o noivo era ele”, diz. Precavido, avisa que, em sua obra, humor não significa escracho. É mais o que se poderia traduzir por um “jeito” do Senhor.
“Cristo tinha um cacoete”, crê. “Ninguém era bom para ele. Gostava de simular a impaciência”. Impaciência que também é a do ousado autor desta espécie de Novo Testamento facilitado. Em trechos de seu livro, ele repreende o estilo do Filho de Deus. Dá a impressão de querer que Cristo fale como ele, Sabino, escreve – fácil, sem um traço de rebuscamento, sem imagens intrincadas: “Por que Jesus teria de usar com homens tão simplórios, de alma tão cândida, uma linguagem assim requintada, cheia de metáforas, metonímias, palavras de duplo sentido? Ele próprio não dizia que se servia de parábolas para confundir os ímpios, mas as explicava para o bom entendimento dos discípulos?”, indigna-se à página 117. Talvez o Senhor risse, imaginando se ele sabe o que diz.
Certamente, Sabino sabe o que faz. “O escritor corrige a verdade”, argumenta. Foi assim com a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, que lhe forneceu material para o livro “Zélia, uma paixão”, de oito edições vendidas, quase todas elas nos primeiros meses subsequentes ao lançamento, em 1991. “Aparei os regionalismos de Zélia. Quando ela afirmava que havia uma ‘puta’ diferença entre isso e aquilo, eu tirava. Paulista usa ‘puto, puta’ pra tudo. Fiz o mesmo quando ela me disse que, em criança, sua relação com a mãe era ‘péssima’. Perguntei: ‘Zélia, você quer desgraçar a sua mãe?’ Tirei a expressão.”
Esse copidesque de intenções tem uma relação ainda carinhosa com a mulher hoje acusada de envolvimento com o esquema de PC Farias. Não entende a reação irada dos leitores ao texto. “Resolveram acabar comigo depois que escrevi esse livro”, ele diz, apontando um complô contra a brochura com a participação de empresários e do SNI, temerosos por revelações. Sabino atribuiu ao livro o mérito de lhe ter proporcionado uma grande experiência literária. Sentiu-se como um Tolstoi escrevendo sobre as ceroulas de Napoleão. Da paixão de Zélia à de Cristo, o pulo foi de três anos. Mas ele não quer que confundam seu sentido de oportunidade com oportunismo. Diz que não recebeu 2 milhões de dólares pelo livro sobre a ex-ministra, conforme parte da imprensa alardeou. Se ganhou a quantia, ele certamente não a distribuiu por seu aconchegante apartamento de Copacabana, no qual há muitos livros, um kit de bateria Pinguim e luxo nenhum.
“Ao contrário do escritor Ernest Hemingway, que olhava tudo no mundo pela última vez, eu olho tudo no mundo como se fosse a primeira”, ele diz. Sabino acha que está pagando um preço alto por ser Forrest Gump, o ingênuo interpretado por Tom Hanks no filme de Robert Zemeckis. Que não o culpem por agora estar cruzando o limiar da esperança, juntamente com o papa João Paulo II. O autor que criou um Cristo caricato em “O Grande Mentecapto” achou que era hora de construir um Cristo respeitoso. Se tudo se revelar um engano, será apenas mais um. “Sou um bobo. Um deslumbrado. Faço besteira o tempo todo. Nasci homem, vou morrer menino.”
O presidente da Fundação Bienal comemora legado e se emociona ao falar sobre a morte do artista indígena Jaider Esbell, estrela da edição anterior do evento, também sob sua direção
José Olympio da Veiga Pereira, neto do livreiro carioca José Olympio, banqueiro, colecionador de arte e presidente da Fundação Bienal de São Paulo até dezembro de 2023, em foto de Giovanna Querido
Foi um desses episódios que eu nem imaginaria presenciar, que dizer de provocar, como acabei fazendo…
Durante a pré-abertura da 35ªBienal de São Paulo, minha editora na revista Robb Report, Gisele Vitória, sugeriu que entrevistássemos o presidente da Fundação Bienal, que se encontrava algo disponível diante das rampas do prédio. Fomos até lá, então, para conversar sobre o evento que ele, na coletiva anterior, dissera considerar histórico. A entrevista andava quando decidi lhe perguntar algo que muito me intrigava: como havia encarado a morte do artista indígena Jaider Esbell, em plena bienal anterior, que ele também dirigia? Insisti para que me falasse de sua relação com o artista e me surpreendi ao ver seus olhos se encherem de lágrimas ao mencionar a convivência com ele. Trata-se de um banqueiro, mas também de um colecionador de arte, neto daquele José Olympio que fundou a editora de mesmo nome, no Rio. Isto talvez lhe tenha proporcionado uma sensibilidade que não parece caber no terno e gravata dos que tanto possuem, sem o dividir.
O artista Jaider Esbell, em registro fotográfico da Agência Ophelia/Itaú Cultural
Colecionador de arte contemporânea brasileira e presidente do J. Safra Investment Bank, José Olympio da Veiga Pereira deixa a presidência da Fundação Bienal de São Paulo em dezembro, após o segundo mandato. Nascido em 1962, ele foi batizado em homenagem ao avô, o livreiro carioca fundador da editora José Olympio, atualmente integrada ao Grupo Editorial Record. Seu pai, Geraldo Jordão Pereira, fundou as editoras Salamandra e Sextante hoje administradas por seus irmãos, Marcos e Tomás Pereira.
Abaixo, em entrevista concedida na pré-abertura do evento, em 4 de setembro, Veiga Pereira se emocionou quando lhe perguntei sobre a morte em 2021 do artista indígena Jaider Esbell, estrela da 34ª edição. De olhos marejados e voz embargada, o banqueiro disse ter prezado demais a convivência com este artista de elevada auto-estima, que não mostrava qualquer reverência às instâncias do poder branco. “Eu estou sempre com ele”, disse o presidente.
Por que esta é uma bienal histórica?
Porque parte de um movimento radical e altamente arriscado, que foi a escolha desse grupo curatorial né? Pedimos propostas, recebemos… O grupo se formou a partir das propostas que a gente pediu. Apresentou-se como um grupo, mas como os curadores mesmo disseram, eram quatro pessoas que nunca tinham trabalhado juntas, que não se conheciam. Apostar que isso iria dar certo, eu acho que foi o primeiro movimento, digamos radical. Claro que em última instância, embora a diretoria tivesse participado disto, a responsabilidade é minha como presidente. Fico muito feliz que isso tenha dado tão certo, porque, embora sendo profissionais de confiança, juntar quatro deles sem liderança, sem chefe, num grupo horizontal, e fazer com que esse trabalho resultasse em uma bienal tão especial, foi realmente uma grande realização.
A ideia de não haver um chefe partiu de quem?
Deles. Então demos um crédito de confiança a essa proposta e esse grupo enorme, enorme. Ao longo do percurso tive frios na barriga, como é normal, mas hoje estou comemorando que tudo tenha saído tão bem. É uma bienal histórica por ter um aspecto de inclusão e de dar oportunidade a um número grande de artistas que nunca sonharam em estar numa bienal de São Paulo, tanto no Brasil, quanto no exterior.
Ela também cumpre o papel, que é sempre da bienal, de resgatar artistas históricos não tão divulgados ou conhecidos, como o Heitor dos Prazeres ou a Carmézia Emiliano, cuja produção fantástica nunca tinha sido mostrada numa bienal. A meu ver esta é uma bienal que suscita questões, mais perguntas do que apresenta respostas. Vale ser visitada várias vezes. É importante que se diga, em nosso time do educativo há mediadores para auxiliar o espectador a entrar no espírito da Bienal, para se relacionar com as obras.
O sr. mencionou a dificuldade particular em ser a última palavra emquestões complicadas. Uma questão complicada pode ter sido o fechamento do vão. Seria uma maneira de romper um pouco o entendimento modernista do projeto original?
Desde o projeto original de expografia eu o achei muito interessante, por subverter o trajeto normal do percurso. Mas ao mesmo tempo ele transforma as curvas lineares em volumes de curvas, e as curvas estão presentes na expografia inteira. Se você olhar todas as salas se apresentam em sístole, diástole, elas estão no andar pra fora e no outro andar pra dentro, mas também acompanham todas as curvas. Então, toda a organicidade da arquitetura do Oscar Niemeyer, a meu ver, está exacerbada com essa intervenção que foi feita no prédio.
Não houve dificuldades de ordens funcionais para executar isso. Trata-se de uma intervenção temporária no prédio, e cada edição da bienal apresenta a sua. Em algumas as janelas são fechadas, as salas são colocadas contra as janelas, você não vê os vidros.
A expografia atual ficou muito interessante, instigante, esses volumes que nós estamos vendo aqui no vão deixou tudo lindo, o que casa muito bem com o resto, com a arquitetura das salas. Existe uma complementaridade, uma valorização da ideia modernista, uma exacerbação, porque se você olhar esses volumes, eles ficaram muito poderosos, essas curvas todas com esses volumes e com a rampa ao fundo. Ficou linda a conversa dos volumes com as rampas.
Como avalia o seu legado como presidente da Bienal?
Olha, eu termino o meu segundo mandato com forte sensação de dever cumprido. Estamos realizando uma segunda bienal, enfrentamos uma pandemia, realizamos uma bienal espetacular, a 34ª, ainda num contexto de pandemia. Tomamos o risco de fazer uma coisa muito diferente na 35ª que deu certo, então é sempre uma coisa maravilhosa tomar risco, e o risco valer ter valido a pena.
Do ponto de vista institucional a Bienal está muito, muito bem. Do ponto de vista financeiro, do ponto de vista de sua equipe de gestão, da equipe de gestão do dia a dia, da Superintendência Geral, das equipes de produção, de comunicação, temos gente da melhor categoria trabalhando. Então, fico muito feliz de entregar ao meu sucessor uma Fundação Bienal de São Paulo absolutamente arrumada.
Especialmente eu fico pensando que o sr. teve de superar algo ocorrido durante a bienal anterior, que foi o suicídio do artista indígena Jaider Esbell. Gostaria de saber como conseguiu realizar seu trabalho após esse episódio tão difícil.
Olha, o suicídio do Jaider foi uma coisa… muito difícil pra mim, entendeu? Era uma pessoa com quem eu estabelecia uma relação pessoal e perdê-lo foi uma dor imensa que eu sinto até hoje. Então, enfim, mas a gente tem de tocar a vida. Mas não foi nada, nada fácil. Eu estou sempre com ele. E feliz de ver que aquilo que ele começou, a bienal dos indígenas, como ele chamava a 34ª, e toda a importância que a arte indígena contemporânea tomou a partir dele tenham sobrevivido. Acho que de onde ele estiver vai estar muito feliz com o que está acontecendo, o Denilson Baniwa e o grupo Mahku tão bem representados nesta edição, e o legado dele estar tão presente, o ativismo e a questão indígena colocados através da arte.
O sr. conversava muito com ele?
Eu tive muito contato com ele.
E alguma coisa que ele tenha dito lhe marcou especialmente?
O Jaider era uma pessoa extraordinária, porque ele era de uma coragem, apesar de ser um indígena, apesar de ser… Ele não tinha nenhuma intimidação com qualquer fonte do poder, ele conversava assim de igual pra igual, fazia críticas, colocava questões e eu achava aquilo lindo, entendeu? Porque ele se colocava de uma forma como deve ser, como tem de ser, mas que infelizmente nem sempre é. Mas o Jaider tinha essa autoestima, esse senso de missão maravilhoso.
Que trabalhos da bienal o sr. aconselharia o espectador a ver nesta bienal?
Citaria o Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes do boliviano Melchor María Mercado, feito no século XIX e exibido pela primeira vez fora de seu país.
Acima, obras do século XIX contidas no “Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes”, de Melchor María Mercado, exibidas pela primeira vez fora da Bolívia
O escritor baiano Itamar Vieira Júnior no Museu das Favelas, em São Paulo, a nos olhar a partir de cima: “A USP, coitada, não me fez mal nenhum”
Novo escritor brasileiro com maior número de leitores, o baiano Itamar Vieira Júnior fala aqui, com suavidade, sobre a porção recusada do Brasil que descortina em seus best sellers premiados. Com suavidade, baianidade, igualmente com certeza, a nossa foi uma entrevista muito batalhada. Eu a havia sugerido à editora-chefe da revista Robb Report, a incansável amiga Gisele Vitória, e ela topou. Mas não consegui que ele me atendesse. A Todavia, casa publicadora de seus livros no Brasil, descartou-me essa possibilidade de cara, alegando que o autor estaria inteiramente ocupado com outras coisas (mais importantes, eu sei) no período. Mas Gisele não é jornalista de aceitar um não desses. Soube de sua presença em São Paulo, para uma edição da Flipelô, a Feira Literária do Pelourinho, e acionou os promotores do evento. No dia 14 de julho de 2023, então, igualdade, fraternidade e liberdade à lembrança, que nos virássemos em meia hora para entrevistar o escritor, excetuados os minutos gastos nos trâmites de apresentação: a escolha difícil de uma sala do museu para conversar (“Vamos entrar no prédio, senão esse povo todo vai nos cercar”, aconselhou-nos ele no pátio de entrada) e a sessão das fotos de Marcelo Navarro para a revista, imagens que não coloco aqui porque fiz as minhas próprias pelo celular. No fim, com o açúcar da vontade derramado sobre o amargor das interferências, conseguimos uma boa conversa. Ele falou de algo que eu aguardava muito conhecer, a sua formação para alcançar a literatura. Me surpreendi em descobrir que este escritor ainda não sabe, de fato, se continuará sendo um… Itamar tem a compleição física forte e os pés no chão. Com eles, na adolescência, andou até a casa de Jorge Amado para receber seu autógrafo e acabou brindado com um conselho de Zélia Gattai. O menino não dispunha de livros em casa, mas tinha sede. E uma porção importante de sua musicalidade com as palavras veio das vozes do rádio, dos grandes compositores amados pelo pai. Viu muito seriado na tevê, o que faz sentido quando pensamos nos seus dois romances, espécies de roteiros indicativos de espaços, personagens, diálogos e ganchos para o próximo capítulo. Li “Torto Arado” e “Salvar o Fogo” apenas para fazer esta entrevista. Posso afirmar que não entendo o autor como uma espécie de Paulo Coelho destes tempos, como se tem sugerido, visto que os assim ditos romances do mago brasileiro de letras são desprovidos da organização literária que Itamar tem de sobra. Como eu a vejo, a estrutura emotiva de seus livros evoca aquela da britânica J K Rowling: em sua saga baiana de formação, espécies negras de Harry Potters desfilam pela Hogwarts do Jarê para colocar à prova a intensa mentalidade infantil contra o mundo adulto ruim. De resto, adorei ter-lhe perguntado qual seu problema com a USP, uma vez que no passado se disse desinteressado da opinião da universidade paulista sobre o que escrevia, e ele ter respondido: “A USP, coitada, não me fez mal nenhum”. Este baiano nos olha de cima de um pedestal. E como é bom que um baiano nos olhe assim.
POR ROSANE PAVAM E GISELE VITÓRIA
(Fotos de Rosane Pavam)
Aos 44 anos, o baiano Itamar Vieira Júnior tem a consciência afiada feito a faca que sangra os destinos em “Torto Arado”, o primeiro romance de sua trilogia da terra. Com 700 mil leitores em todo o mundo (e a cada minuto que passa, desde a realização desta entrevista, em 14 julho último, quem sabe eles sejam bem mais), o livro traduzido para 23 línguas e protagonizado por uma família semi-escravizada, sem direitos sobre o chão em que trabalha, nasceu do contato do autor, geógrafo, com os quilombolas da Chapada Diamantina. Neste ano, a trilogia ganhou o segundo volume, “Salvar o fogo”, que se passa no Recôncavo Baiano, e logo o terceiro volume prosseguirá o mágico percurso do rio até a Bahia de Todos os Santos, segundo insinua o autor.
Suave para dizer as asperezas de um Brasil recusado, Itamar Vieira recebeu-nos em meio à edição paulistana da feira literária Flipelô, ocorrida em julho último no Museu das Favelas. Recordou com doce baianidade sua infância em batalha pelos livros, a poesia sorvida por meio da música popular e o encontro com o escritor Jorge Amado. Explicou por que considera realismo o que faz e garantiu, apesar de vencedor dos prêmios LeYa, Jabuti e Oceanos, não estar de todo certo sobre seu futuro como escritor. Antes de tudo um forte, ele tem uma certeza, contudo. O Brasil precisa abrir-se à sua cultura múltipla para ser o Brasil de todos.
Quando a literatura começou para você?
Aprendi a ler com 5 anos e meio em Salvador, onde nasci, e já nessa idade lia e escrevia, sem saber muito bem o que estava escrevendo. A literatura não era objeto de interesse na minha família. Venho de uma geração de trabalhadores da cidade, mas meu pai foi criado até os 15 anos na área rural, no Recôncavo Baiano, que fazia parte de suas memórias. E o lado materno estava na cidade havia muitas gerações. Minha família, creio, era igual a muitas outras que adoravam contar histórias. Cresci nesse ambiente de muita memória. Embora a família jamais houvesse cultivado o hábito da leitura, por não ter escolaridade suficiente ou porque sua vida exigisse atenção para coisas mais urgentes, tive contato com a arte desde sempre, principalmente com a música. Meu pai era um grande apreciador de música popular brasileira, e por meio dela tive o primeiro contato com a poesia, as palavras, a melodia, a harmonia, com as coisas que terminam por refletir naquilo que eu escrevo. Eu ouvia o cancioneiro popular brasileiro, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento. O rádio vivia ligado, principalmente de manhã.
“Eu não tinha livros em casa. Meu vizinho pegava da biblioteca escolar e me emprestava. O primeiro que li, de 7 para 8 anos, foi ‘O caso da borboleta Atíria’, fabuloso. Terminei a leitura e fui escrever uma história”
Se não havia livros em casa, onde você fazia suas leituras?
Minha escola não tinha biblioteca, mas meu vizinho Raimundo estudava em um lugar melhor, onde havia uma. Ele me emprestava os livros de lá. Eu pegava um volume e no outro dia já tinha de devolver. Lembro-me especialmente da Coleção Vagalume, uma série de literatura infanto-juvenil editada pela Ática. Um desses volumes, creio, foi o primeiro livro que li, ou o primeiro que me impactou, “O Caso da Borboleta Atíria”, uma história fabulosa da Lúcia Machado de Almeida. Os personagens eram os mesmos insetos que eu via à minha volta, nas brincadeiras de rua. Como podiam ter uma vida tão rica? Era só no que eu pensava depois de ler a história.
A literatura é essa varinha de condão que torna tudo mágico. Quando li esse livro eu disse: “Quero fazer a mesma coisa.” Eu deveria ter de 7 para 8 anos. E foi um encanto essa história em particular, porque enriqueceu o universo dos animais que eu conhecia pelas brincadeiras de rua, o besouro, a borboleta, as formigas. A Lúcia fez todos esses seres viverem uma história de mistério com tanta qualidade que fiquei impactado. Logo que terminei a leitura, comecei a escrever uma história, também com animais, com insetos. Eu me senti muito inspirado por ela.
Você guardava o que escrevia?
Eu escrevia e ia para o guarda-roupa, porque uma vez minha mãe, dona Teresa, achou meus papéis e se sentiu preocupada. Lembro de sua decepção ao descobrir que eu escrevia. Ela era dona de casa, achava isso uma bobagem. “Você deveria estar estudando, mas está escrevendo essas coisas!” E essas coisas não eram exatamente narrativas. Era tudo muito teatral, às vezes. Tinha muito diálogo, imagem, representação, talvez como influência dos seriados de televisão aos quais a gente assistia quando criança, como “O Sítio do Picapau Amarelo” e outros dos Estados Unidos, como “A Ilha da Fantasia” “MacGyver – Profissão Perigo”, “O Incrível Hulk”.
Você lia Monteiro Lobato?
Só tive contato com Monteiro Lobato mais tarde e não me capturou, talvez por eu já ter acompanhado a série de televisão.
Seus livros parecem ter sido feitos para a encenação. Sua narrativa é direta, ativa, dialogada. E os personagens têm universos incríveis para mostrar, como o do jarê em “Torto Arado”, que mistura ritos católicos e afroindígenas. Você experimentou essa religiosidade na infância?
Cresci em Salvador, onde a religião está impregnada em todos os cantos. O catolicismo, o neopentecostalismo e a maneira profunda do candomblé estão por lá. Se são 365 igrejas em Salvador, os terreiros existem em número três vezes maior. Morei 20 anos em uma casa no bairro de Mussurunga onde, nos fundos, havia um terreiro de candomblé, então eu escutava todas as cerimônias. Minha família é cristã, mas, claro, na Bahia a religiosidade nunca é absolutamente pura. Se as rezas e as ladainhas não dessem certo, todos iriam procurar outro tipo de ajuda. Meu contato com essa religiosidade veio do cotidiano, mas o jarê em particular eu conheci mesmo por conta do trabalho, viajando pelo campo, pela Chapada Diamantina, trabalhando com comunidades negras rurais.
Quando você começou a trabalhar no Incra?
Há 17 anos, no Maranhão, onde passei três anos. Voltei para trabalhar na Bahia e depois de um ano, mais ou menos, comecei a atuar em comunidades quilombolas. Passei um bom tempo na Chapada Diamantina, onde tive contato com o jarê, que só existe lá, típica prática religiosa sincrética na qual se encontram referências das regiões brasileiras, de práticas xamânicas de matriz africana, mas também do catolicismo rural.
“Na minha pós em estudos étnicos estudei Antropologia, que ensina a se colocar no lugar de escuta das pessoas, sem emitir julgamentos. Aprendemos a ver como as pessoas olham a vida a partir de suas cosmovisões. Isto me levou para mais perto da literatura, onde se faz o mesmo”
Ali você também começou a pensar em desenvolver sua literatura?
Eu não venho da literatura, sou geógrafo de formação. Fiz pós-graduação no programa de Estudos Étnicos da Universidade Federal da Bahia, quando comecei a estudar Antropologia, que ensina a se colocar no lugar de escuta das pessoas, sem emitir julgamentos sobre aquilo que a gente escuta. Aprendemos a ver como as pessoas olham a vida a partir de suas cosmovisões. Exercitei isso com o tempo, o que me levou para mais perto da literatura, onde se faz o mesmo. A gente se envolve, se apaixona pelos personagens, mas não emite julgamento sobre eles. Deixa que vivam livres para praticar o bem e o mal, vamos dizer assim.
Esse contato com a antropologia chegou à pele, tanto que às vezes as pessoas veem em “Torto Arado” referências ao realismo mágico praticado por escritores como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Eu não gosto muito dessa ideia, porque no caso de minha literatura represento aquilo em que as pessoas de fato acreditam, sua maneira muito própria de ver o mundo. E quando a gente chama algo de “mágico” a gente fala a partir da nossa própria perspectiva, razão pela qual usa esse adjetivo.
A magia parece ser sentida, vivida por seus personagens. E talvez nem os realistas mágicos gostassem da expressão “realismo mágico”…
O García Márquez dizia: “Eu escrevo só realismo!” E embora ele não tenha me impulsionado a escrever de imediato, tornou-se uma grande referência. Creio que foi o García Márquez quem disse: “O Caribe começa na Bahia”.
Minha editora em Portugal recentemente mencionou a proximidade que sente entre minha literatura e a do Vargas Llosa. E aí eu digo que gosto da literatura dele – não dele em si, porque se tornou uma pessoa difícil politicamente para mim -, mas me sinto mais próximo do García Márquez, talvez por morar em um lugar onde essa experiência religiosa é vivida em profundidade.
Ler García Márquez a partir de “Cem Anos de Solidão”, por volta dos 19 anos, fez todo o sentido para mim. Suas possibilidades literárias não são exatamente aquelas racionais, eurocêntricas, ocidentais, que sacramentamos como verdadeiras. Ele pensa nas referências múltiplas de quem se viu afastado dos grandes centros e não foi escolarizado no tempo certo, mas que guarda essa experiência, essa profundidade de vida e sentidos. Depois, ao estudar também etnografias principalmente indígenas, deparei com sua cosmovisão, que guarda relação profunda com crenças populares tanto no interior do Brasil quanto em outras partes da América Latina. É impressionante. A gente nem se dá conta de haver relação entre uma coisa e outra, mas há sim, e profunda.
Seu contato com a obra de Jorge Amado veio depois?
Veio antes. E não por meio da escola. Eu morei um tempo em Pernambuco e lá, em uma biblioteca, encontrei uma não-ficção do Jorge intitulada “Bahia de Todos os Santos”. Levei para ler e fiquei pensando: “Nossa, é sobre Salvador, sobre a Bahia onde nasci, mas não conheço esse lugar em profundidade como ele está mostrando aqui, que coisa maravilhosa!” E aí comecei a ler a obra do Jorge Amado pelas bibliotecas.
Eu cheguei a encontrar o Jorge uns anos antes de ele morrer, em 1996. Adquiri uma edição popular de “Capitães da Areia” em uma banca de revistas, por cinco reais, e pensei: “Vou à casa do Jorge Amado pedir para ele autografar.” Mas eu tinha tanta vergonha! Queria que alguém pegasse o livro na porta da casa, desse para ele assinar e o devolvesse, porque eu não queria incomodar. E quando eu estive lá uma pessoa atendeu a porta: “Eu vou ver se ele pode assinar.” E um pouquinho depois: “Dona Zélia está lhe chamando.” Foi quando eu entrei e o conheci.
Ele já não enxergava direito, estava idoso. Mas quando lhe dei o livro para assinar ele viu que tinham grafado o título errado na capa, “Capitães de Areia” em lugar de “da Areia”. Ficou chateado, não comigo, com a editora, mas assinou o livro. Dona Zélia Gattai, sua esposa, foi quem conversou mais. Ela perguntou: “Você já leu algum livro meu?” E eu disse: “Não.” Então ela tirou da estante “Anarquistas, graças a Deus” e me deu. A gente começou a conversar: “Você gosta de ler?”, ela perguntou. E eu disse: “Gosto, e gosto de escrever também. Quero ser escritor!” Ao que ela retrucou: “Não tenha pressa, escreva no seu tempo, continue lendo bastante.” Estes foram seus conselhos.
Àquela época, o Jorge já estava um pouco deprimido, segundo me contou sua filha, a Paloma Amado. Ele mais escutou que conversou, acenando com a cabeça. Não existia celular, senão a gente tinha feito uma selfie. Não fiquei com nenhuma foto, porque nem sabia que iria à casa dele naquele dia. Eu brinco que foi meu batismo. Os dois me batizaram naquele momento. E depois desse dia fui ler tudo da Zélia também, porque ela tem uma obra memorialística muito importante sobre sua vida com Jorge, relata o exílio dele depois de seu mandato de deputado ter sido cassado, e suas viagens pelo mundo.
Você seguiu o conselho da Zélia? Esperou quanto tempo para começar a escrever?
Muito tempo. Eu nem sei se me considero pronto. A cada livro que escrevo vou aprendendo coisas novas, aprimorando. Mas eu demorei muito tempo para publicar. Primeiro eu fui estudar, trabalhar, cuidar das coisas urgentes da vida. Eu fiz uma publicação antes que nem considero, de próprio punho. Só publiquei de fato em 2012, o livro de contos “Dias”, que venceu o XI Prêmio Projeto de Arte e Cultura da Bahia. Cinco anos depois eu publiquei outro livro, “A oração do carrasco”, finalista do Prêmio Jabuti na categoria Conto, depois editado como “Doramar ou a Odisseia”. Em 2018 saiu “Torto Arado” em Portugal.
Por que Portugal?
Eu não tinha uma editora no Brasil. Havia publicado os dois primeiros trabalhos por editoras pequenas da Bahia, numa situação em que o livro não circulava, não chegava às livrarias. Quando terminei o romance, decidi: “Vou publicar”. Mas eu não mandei para nenhuma editora porque eu sabia que o livro iria parar na gaveta. Então resolvi mandar para um concurso literário. Procurei o prêmio Sesc, mas ele havia encerrado as inscrições um mês antes. Então descobri um edital do prêmio LeYa em Portugal destinado para literatura em língua portuguesa de qualquer parte do mundo. Seis meses depois soube que o livro tinha vencido o prêmio LeYa e o publiquei em Portugal.
Eu sou muito cético, tenho os pés no chão e fiz um envio protocolar, para tirar o manuscrito da minha gaveta. Mas depois pensei: “Será que Portugal vai ler?” Embora houvesse um brasileiro no júri, eu não tinha muita esperança que lesse. Mas quando o livro venceu, comecei a ser convidado para eventos, veio a publicação no Brasil e outros prêmios importantes chegaram. Isto foi me tornando um autor profissional nesse sentido de ser convidado para o espaço de eventos. Neste ano já me licenciei do serviço público e tenho vivido de literatura. Em verdade, tenho experimentado para ver se me agrada mesmo viver disso.
“Torto Arado” já nasceu como o primeiro volume de uma trilogia?
Antes de começar, não, mas durante a escrita me veio a certeza de haver mais a ser escrito. É um tema tão vital. Durante muitos anos eu percorri lugares e encontrei pessoas ameaçadas de perder aquilo que talvez seja a coisa mais elementar, depois do nosso corpo, que é o primeiro território para a gente existir, um chão para pisar, trabalhar. E isto não vale só para as pessoas do campo, vale para nós da cidade também. A gente tem a nossa casa, o chão que a gente pisa, a rua em que a gente trafega. E essas pessoas estavam ameaçadas, muitas ainda estão, em diversas partes do mundo, de perder isso. Este foi o ponto de partida de “Torto Arado”. Achei que ia me resolver com aquela história, mas no meio da escrita do livro eu já sabia que ela se prolongaria. E foi assim que eu cheguei ao segundo volume, é assim que eu tenho trabalhado para o próximo também, com o qual espero fechar, pelo menos em um primeiro momento, este ciclo.
Em “Torto arado” e “Salvar o fogo”, as figuras femininas são as protagonistas. Por quê?
Eu cresci em um ambiente em que as mulheres eram essas personagens fortes. Sempre digo que os homens, perto delas, eram figuras pálidas mesmo, não tinham metade da força delas. Eu fui criado em um ambiente machista. Os homens trabalhavam e as mulheres cuidavam da casa e da educação dos filhos. Eram mulheres atravessadas pela violência de gênero, em todas as suas forças, e acho que isso criou uma atenção para mim do que ocorria nesse lugar de vulnerabilidade. Elas não aceitavam isso, reagiam da maneira que podiam, mas sempre reagiam. E acho que isso criou em mim uma capacidade de observar, de compreender esse universo que depois reverberou no campo.
Ao trabalhar no campo, eu encontrei mulheres muito parecidas com elas, que enfrentavam as mesmas coisas e tinham de reagir. Testemunhei muitas mulheres em posição de liderança, dirigindo sindicatos, movimentos sociais, presidindo a associação de agricultores, o que é algo paradoxal. Se a gente pensar, no Brasil, seja nos tribunais superiores, seja no Congresso Nacional, a participação das mulheres ainda está aquém do que deveria ser. Mas, no meio do povo, isso mudou faz tempo. Nas periferias urbanas e no campo as mulheres conduzem muitas políticas. Então, essa compreensão me fez entender que era preciso contar essa história a partir de um outro olhar que não o meu, mas um olhar literário, vindo dessas personagens historicamente subalternizadas. É a mulher negra, a mulher indígena, a mulher mestiça, nesses lugares de profunda violência, mas é também onde a vida tem a capacidade de recomeçar sempre.
“É comum que o arcabouço teórico e metodológico do crítico seja eurocêntrico, venha de lugares historicamente de dominação. Mas há outras ontologias legítimas que merecem ser lidas atentamente. O que se dizia da literatura da Carolina Maria de Jesus? Que nem era literatura. E aí no ano passado Annie Ernaux ganha o Nobel de Literatura fazendo a mesma coisa, alta ficção sobre si. Mas ela é uma mulher francesa, e uma francesa pode…”
Quando “Torto Arado” chegou, em fevereiro de 2019, o Brasil temia a violência contra esses grupos. E, para além das qualidades literárias do romance, sua história encantou quem se preocupava com os rumos do país. Você se tornou popular, mas a crítica literária brasileira nem sempre pareceu aceitar isso, como aconteceu em relação a seu segundo romance. Você reagiu com força, por meio de sua coluna no jornal “Folha de S. Paulo”, à crítica que condenou “Salvar o fogo”. Por quê?
Parece que historicamente esta hierarquia sobre o que é arte se origina em espaços e lugares ainda empenhados nas estruturas coloniais. É muito comum que todo o arcabouço teórico e metodológico do crítico seja eurocêntrico, venha de lugares historicamente de dominação. E há outras ontologias legítimas que merecem ser lidas atentamente. O que se dizia da literatura da Carolina Maria de Jesus? Diziam que nem era literatura. E aí no ano passado a francesa Annie Ernaux ganhou o Nobel de Literatura fazendo exatamente a mesma coisa, alta ficção escrevendo sobre si. Mas ela é uma mulher francesa, e uma francesa pode…
O Brasil vive um momento muito interessante agora. Novas vozes têm chegado a esse lugar da alta literatura. Então é importante promover esse debate com a crítica, para mover as estruturas, para que não aconteça o que aconteceu com a Carolina e grandes escritores negros, como Lima Barreto e tantos outros que vieram e tiveram sua arte diminuída. Não é falar só por mim, é falar por todos os que estão fazendo isso nesse momento, como Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz, a indígena Julie Dorrico, o Ailton Krenak, que não é ficcionista mas tem escrito ensaios muito interessantes. Já passou da hora de o Brasil acolher sua sociedade, sua classe artística, a partir do parâmetro da multiplicidade. Somos muitos. E as universidades, espaços profundamente coloniais.
Você chegou a dizer que a opinião da Universidade de São Paulo não lhe interessava.
A USP, coitada, nunca me fez mal nenhum. Citei-a por ser um espaço simbólico do pensamento eurocêntrico colonial. Mas acho importante provocar o debate para que se possa desconstruir essa colonialidade muito presente.
Qual a seu ver é o ponto desse debate que precisa ser tocado com mais força?
Primeiro, reconhecer que a gente não rompeu com essas estruturas desde o passado. Este não é somente o caso do Brasil, estou pensando no continente americano, na África e na Ásia também. Criou-se uma forma predatória de habitar o mundo. A colonialidade foi a morte da autoridade, porque nesse momento as sociedades distintas desaprenderam a coexistir. O genocídio indígena foi matar quem era diferente. E a diáspora africana, subalternizar o diferente, desumanizá-lo. Criou-se um ranking de vida e valor que nunca foi desconstruído. Basta observar o mundo à nossa volta para saber quem ocupa os espaços de subalternidade, quem está vulnerável, quem sofre com preconceitos e de que maneira.
Ao compreender a história a gente vai entender o que acontece e projetar um futuro diferente. É preciso agir no presente para não reproduzir essas estruturas de nenhuma forma no futuro. Trata-se de um projeto de longo prazo que vai exigir muito investimento em educação, em cultura. E quando eu falo em cultura me refiro à extensão do projeto educacional. Não há educação desprovida de cultura, do conhecimento de nossas expressões intelectuais e artísticas. É urgente falar sobre isso para desconstruir esse estado de coisas. O Brasil só vai ser democrático se for para todos, não apenas para alguns.
Ao mesmo tempo, no Brasil, a elite não lê.
No Congresso Nacional, quantas pessoas serão leitoras? Acho que às vezes não sabem nem o que votam, a depender do assunto. Ninguém lê as matérias pautadas. Como alguém me disse nestes dias, não dá para esperar que a elite brasileira se ponha a ler.
“No Congresso Nacional, quantas pessoas serão leitoras? Acho que às vezes não sabem nem o que votam, a depender do assunto. Ninguém lê as matérias pautadas. Como alguém me disse nestes dias, não dá para esperar que a elite brasileira se ponha a ler”
Pensando em como você foi tocado por aquele livro aos 8 anos, como acha ser possível proporcionar o mesmo para uma escala maior de pessoas?
O Brasil ainda é profundamente desigual. Poucas pessoas têm acesso a livros, a bibliotecas. Então é necessário investimento, uma política pública muito abrangente que envolva as escolas, a aquisição de livros, a mediação de leitura para fortalecer as bibliotecas comunitárias, a promoção de atividades culturais. Nenhum ser humano pode prescindir da literatura, um direito, segundo escreveu o crítico Antonio Candido. Para ele, o conceito de literatura abre-se às lendas indígenas, às histórias familiares transmitidas de geração a geração. Essa dimensão subjetiva da vida existe em qualquer cultura, em qualquer meio, e a gente não pode sabotá-la. A gente precisa estimular para que elas floresçam e nos apontem para um novo caminho, um novo lugar.
O fotógrafo carioca Walter Firmo, de 85 anos, deu luz e dignidade aos grandes personagens da cultura do Brasil e também aos invisíveis, glorificados em sua negritude por meio de uma trajetória profissional premiada de sete décadas. Aqui, a entrevista que fiz com ele em dezembro de 2022, a pedido da revista Robb Report.
Walter Firmo, fotografado por mim com as cores de sua alegria, em um restaurante do centro paulistano
POR ROSANE PAVAM
Repare no céu da bandeira brasileira, suas estrelas intangíveis e o lema de sonho. Walter Firmo é o sol vermelho que mora ali e a gente mal vê. O artista de 85 anos, olhos fixos no interior de seus personagens, amplifica o país num contexto de paredes coloridas, folhagens e janelas, a realçar sua dignidade. Com luz, porque é o sol, Walter Firmo contribui há sete décadas para construir quem somos, a nossa realidade inteira.
Foi em condição solar que o carioca, “chocolatezinho do Irajá”, conforme diz com ironia, encontrou esta repórter em outubro, num restaurante do centro paulistano, região por ele frequentada muito antes da miséria atual vista no entorno. Veio com o boné encarnado e o sorriso matreiro, às vezes com as lágrimas que ele temia chegarem em “jorro”. E narrou histórias de uma vida feita de arte, esta que o Instituto Moreira Salles, de São Paulo, mostrou em “No Verbo do Silêncio, a Síntese do Grito”, a melhor exposição fotográfica a ter início em 2022.
Pixinguinha em plenitude, na foto de 1967
Ele nasceu de Maria de Lourdes, linda menina branca de 15 anos caída de amores pelo ribeirinho amazônico bom de briga, o negro José, de 25. O prenome veio de Walter Pidgeon, ator canadense que a mãe amava pela elegância. Firmo referiu-se a São Firmino, o santo do dia de seu nascimento, 1o de junho. Um tio sugeriu que abreviassem para Firmo o segundo nome, e isto talvez tenha se colado à criança como um destino. Pois trata-se de alguém firme desde a letra manuscrita com a qual dedica o catálogo da exposição à repórter.
Temperados pela paixão, Lourdes e José deixaram o filho à criação da avó Teresa até os 5 anos, numa casa cujo quintal era ao mesmo tempo sua prisão de segurança máxima e as portas para o imaginar. Vó Teresa era como as zelosas senhoras antigas, prenhe de histórias, e lhe interpretava canções. “Lábios que beijei, mãos que eu afaguei”, canta ele com voz bonita e clara, ao se lembrar dessa influência familiar que lhe deu o ritmo e o compasso das palavras poéticas.
Na festa de São Benedito, Espírito Santo, 1989
Ele também leu Machado de Assis e Lima Barreto pela vida, embora tenha parado de estudar ao fim do Científico e feito da fotografia, sua universidade. “Trabalho fisicamente com os entornos, com os desenhos. Vou guardando o que vejo, como fazia Machado, que me parece um fotógrafo enrustido. Sabe quando ele descreve a luz que entra pela janela e pousa com sensualidade no espaldar da cadeira? Eu queria escrever assim, mas pelo menos eu tenho ouvidos bons e adjetivo bem.” Ama escrever, mas não é apaixonado por ler: “Como nasce uma pessoa assim?” Um dia pretendeu ser cantor. E até padre, depois de assistir aos salesianos rezarem a missa em latim.
Ele tem 1,60m, mas sua perspectiva é a de um gigante. Um homem para o palco, dada a verve em dirigir o espetáculo, algo que a fotografia lhe permite fazer sozinho. Ele só se entendeu vítima de racismo em 1967, quando, em Nova York, um colega de trabalho se pronunciou contra a presença de um “negro analfabeto” na sucursal da revista Manchete. Daí para o cabelo black power, de protesto, foi um pulo. Começou no fotojornalismo porque aos 14 anos, quando se interessou pela Rolleiflex, folheava revistas como a “Life” na banca e via por ali florescer o poder imagético de um estadunidense negro como Gordon Parks ou de um europeu como Ernst Haas. Na revista “O Cruzeiro”, a estrela absoluta vinha do Piauí, de onde aliás partiu sua atual mulher, a doce Lili, 54 anos, que o emociona há quinze, desde o instante zero em que se conheceram para um trabalho a ser feito no estado.
O Bumba-meu-boi em São Luís, 1994, para destacar as festas populares
Em “O Cruzeiro”, o fotógrafo piauiense a causar imensa admiração em Firmo era José Medeiros. À sua maneira, Firmo queria, como ele, desbravar, conhecer. Fotografou em preto e branco desde a entrada na imprensa, aos 18, no jornal “Última Hora”, até conhecer a obra do estadunidense radicado no Brasil David Drew Zingg, a quem chamava de “mestre” e dele ouvia, em resposta, a mesma qualificação. Zingg era a cor. E em revistas como “Realidade”, “Manchete”, “Veja” e “IstoÉ”, além de atuar por conta própria, Firmo fez da fotografia colorida sua marca sensível, dos retratos às celebrações populares. Muitos prêmios, o primeiro deles em 1964, o Esso pela série de reportagens “100 Dias na Amazônia de Ninguém”, que pautou, escreveu e fotografou para o “Jornal do Brasil”, e um cargo como diretor do Instituto Nacional de Fotografia, da Funarte, entre 1986 e 1991, que lhe deu extensa compreensão artística, tudo isto e mais o fizeram brilhar pela brasilidade. “Já estou pronto para virar enredo de escola de samba. Vai, Firmo!”
Vendedor de sonhos na praia de Piatã, em Salvador, durante a década de 1980
Em 1967, a seguir o repórter Muniz Sodré, fotografou Pixinguinha para a revista “Manchete”. Terminada a entrevista no interior da casa de Ramos, Firmo perguntou se poderia levar a cadeira de balanço do músico para o quintal. Colocou-a sob a árvore, deixou um retrato seu ao lado e fotografou o mestre na cadeira, primeiro de perfil, carregando o saxofone nas mãos, depois de costas, pose original de que ele gosta mais, a exalar a plenitude do santo. Ele santifica seus personagens, negros em sua maioria, com os quais passou à convivência, caso da cantora Clementina de Jesus, de quem nunca perdeu um sorriso.
Integrante da festa de São João, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, em 1975
De vez em quando, ele que se entende com “alma ternurinha” dá “o coice” e se impõe. É preciso saber ser duro como foi com o poeta João Cabral de Melo Neto, que não gostava de ser fotografado. Firmo esperou acabar a entrevista que ele dava a José Castello para colocá-lo à janela. E para que o poeta fosse até lá, disse firme, elevando a voz: “Embaixador!” João Cabral concordou prontamente, assim como fizera o artista Arthur Bispo do Rosário, que tampouco queria ser retratado. Em 1985, ele obedeceu a todas as instruções de Firmo sem dizer palavra, até posar diante de um agave que evocava suas chagas emocionais. Firmo também simulou a saída de Madame Satã, figura célebre que deixara a prisão em 1976, por uma abertura na porta de ferro de uma loja do Rio. Os pretos brasileiros foram glorificados em sua fotografia, que surgiu de uma cumplicidade além das palavras. Não importa em que inverno vivessem, Walter Firmo descobriu dentro deles um verão invencível.
A glorificação da negritude na Festa de Bom Jesus da Lapa, na Bahia de 2001
Em outubro de 2015, aproveitei a rara chance que a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo me dava e, tremendo nas pernas, entrevistei a atriz Geraldine Chaplin, hoje com 78 anos. Me avisaram de um dia para o outro que eu teria dez minutos apenas para conversar com ela no saguão do hotel Renaissance da alameda Santos, em São Paulo. Cheguei lá antes, fui a primeira e abusei da sorte – de dez passei para vinte minutos de conversa, e ela não reclamou. Pessoa rara, raríssima, não recusou responder qualquer questão, riu comigo e me deixou fotografá-la com o celular, imagem que posto aqui. Todos os grandes são simples! Alguns dias depois, tentei entrevistar Wolfgang Becker (de “Adeus, Lenin”), diretor do filme no qual ela atuava, e ele foi tão diferente, um porco comigo, com perdão aos porcos. Quis que eu pagasse a cerveja que tomava no Maksoud Plaza e reclamou de só haver Heineken no bar. Paguei foi nada! Mas o filme com Geraldine era razoável, até muito bom quando ela aparecia nele. Na entrevista a seguir, a atriz atribui sua carreira à sorte. Diz que seu pai jamais quis lhe ensinar atuação, embora ela muito solicitasse. Chaplin, ela conta, demonstrava muito menos bom humor que sua mãe, Oona. Ele não sabia quem era Ingmar Bergman e só se interessava pelos próprios filmes. Cinéfila, Geraldine amou ter conhecido “Limite” e toda a fatalidade a envolver Mário Peixoto, seu diretor.
Com a camiseta das Tartarugas Ninja e o crachá da Mostra, posando para meu celular: os grandes são simples
Um mar de tranquilidade cerca Geraldine Chaplin. Aos 71 anos, sem jamais impacientar-se, a atriz enfrenta o burburinho em direção à mesa do saguão do hotel paulistano onde conversará sobre sua vida e seus filmes. A presidente do júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo tem os cabelos pintados de preto e sua franja se vê encimada por um par de óculos de sol de cor laranja, que ela usa como uma tiara. Veste calça, tênis e uma camiseta com a estampa do desenho animado Tartarugas Ninjas. Uma estrela em “Kaminsky e eu”, o primeiro filme dirigido por Wolfgang Becker depois de “Adeus, Lênin”, de 2003, ela sorri sempre e fala rápido. “Humor é a única maneira pela qual você pode lidar com a tragédia da vida”, acredita, disposta a enfrentar qualquer pergunta, mesmo as inevitáveis a envolver Charles Chaplin, seu pai.
A filha maior em “Luzes da Ribalta”, dirigida por seu pai
Diz-se que o diretor mal viu os filmes em que ela atuou, mas a atriz assegura o contrário. Por exemplo, Chaplin assistiu a “Doutor Jivago”, no qual ela interpreta Tonya, em 1965. Era sua segunda participação em um longa-metragem depois de ter sido escalada, no mesmo ano, para estrear ao lado de Jean-Paul Belmondo em “Par um beau matin d’été”, de Jacques Deray. Ela havia seguido a carreira de bailarina depois de uma breve aparição, aos 8 anos, em “Luzes da Ribalta”, dirigida por seu pai. Mas o balé, que exercera com brilho até mesmo no circo, não lhe dera compensação financeira. “Não podia voltar para casa assim sem nada, não teria como encarar meus pais. E então pensei: ‘Talvez possa me tornar uma atriz.’ Eu tinha um bom sobrenome, não é? Aquele que me abriria portas. E saí atrás de empresário, simples assim.”
Em “Doutor Jivago”, seu segundo longa: o diretor David Lean a escalou porque ela se parecia com uma russa
“Doutor Jivago” surgiu de um acaso. “O diretor David Lean me viu na capa de alguma estúpida revista feminina e, ao saber que eu era uma Chaplin, disse a sua produtora: ‘Ela parece russa, vamos testá-la’.” O longa correu animado, como sua carreira em mais de uma centena de filmes. “Toda a minha vida foi sorte, sorte, sorte”, diz, sem ironia. “Mas o sobrenome Chaplin não tem a magia de antes. Minha filha Oona, uma atriz maravilhosa, bem o sabe.” O fato é que depois de não se entender estupenda em “Doutor Jivago” pediu ao pai as orientações que auxiliariam seus futuros desempenhos. “Oh, você é a melhor coisa do filme”, respondeu-lhe aquele cujo nome, à época, talvez estivesse próximo de significar todo o cinema. “Queria seus conselhos e ele não me dava. Nem ligava para o que eu fazia ou apenas agia como meu pai.” De todo modo, ela desejou ser atriz, apaixonar-se pela profissão. “Mas não é uma carreira fácil, sabe? O estudo dos seres humanos que fazemos. Os deserdados que representamos. Como chegar até eles?”
No filme “Peppermint Frappé”, do então marido Carlos Saura: Chaplin amou
Talvez tenha se sentido atriz pela primeira vez ao lado do diretor espanhol Carlos Saura, com quem esteve casada por doze anos, e para quem atuou em clássicos como “Cria Cuervos”, de 1976. Quando partiu para viver com ele sob a ditadura franquista, seu pai arregalou os olhos: “Você enlouqueceu?” E ela sentiu então de perto a diferença entre lutar contra o totalitarismo imersa no regime ou a milhas distante dele. “Todos na Espanha odiávamos o dramaturgo Fernando Arrabal, porque ele atacava a ditadura acomodado em Paris”, recorda-se. “Percebi, naqueles anos com Saura, que os filmes poderiam ser mais, quem sabe mudar o mundo. Hoje é preciso reconhecer que provavelmente os filmes não mudem o mundo. Se assim fosse, vários deles, como os de meu pai, talvez tivessem transformado alguma coisa.”
Chaplin, que esteve na Suécia para receber um prêmio, viu um filme de Bergman, gostou, mas não tinha ideia de quem fosse o diretor
Ao contrário do que sugerem relatos de época que informam o apreço de muitos diretores, como Vittorio de Sica, às avaliações positivas do criador de Carlitos sobre suas obras, Chaplin não assistia a muitos filmes. “Só os via quando estava escrevendo os seus, porque tinha de escolher com quem trabalhar. Caso contrário, nada de filmes, exceto os que ele fazia.” Uma vez foi à Suécia receber algum prêmio e, quando voltou, perguntou à esposa: “Vimos esse filme, tão bonito, tão incrível, daquele, como é o nome mesmo?” E Geraldine: “Ingmar Bergman?” Para que Chaplin respondesse: “Acho que é esse mesmo”. Ele não tinha a mínima ideia de quem fosse quem no cinema. Seu marido, Saura, Chaplin conheceu por necessidade, e gostou muito de “Peppermint Frappé”, de 1967, em que ela atuou.
Como uma documentarista em “Nashville”: a única orientação do diretor Robert Altman foi que ela o seguisse e imitasse
Um pouco à moda do pai, Geraldine buscou a originalidade, e suas interpretações mesclaram graça, profundidade e estranheza. Muitas vezes, um papel inesquecível representado por ela nasceu de uma orientação inesperada. Em “Nashville”, por exemplo, ela surpreendeu ao interpretar uma documentarista que sai atrás dos nomes da cena country estadunidense. “Eu não conhecia o trabalho do diretor quando aceitei o papel. Uma amiga que trabalhava com ele sugeriu meu nome”, conta. “Ao me aceitar para o filme, Robert Altman deu apenas esta indicação: ‘Siga-me e me imite.’ Fiz como ele pediu. Alguns dos filmes de que participei são muito bons, e eu fiquei tão feliz por ter atuado neste. Ninguém imaginou que virasse o que virou. Uma obra-prima, ao contrário de ‘Mash’, do mesmo diretor, que envelheceu.”
Na direção oposta à do pai, Geraldine tem muito a dizer sobre o cinema, novo ou antigo. Sentiu-se maravilhada, por exemplo, ao descobrir “Limite”, realizado por Mário Peixoto em 1931, restaurado e exibido durante a mostra. “Foi um choque completo para mim. Os planos são mágicos nesse filme melancólico, tão poético. E de pensar que, velho, o diretor ainda tentasse explicar essa magia jamais retornada, como se fosse um Arthur Rimbaud retirado da poesia, mas aos 21 anos.” Apesar de tão observadora, nem sempre deu sorte com os filmes de que participou, especialmente os dirigidos pelos novos. Ela destaca um raro caso de felicidade ao aderir a uma obra de estreia. Em 2007, interpretou uma médium em “El Orfanato”, um sucesso de crítica e público na Espanha. O diretor Juan Antonio García Bayona a quis para “A Monster Calls”, com lançamento então previsto para 2016, por sentir que ela lhe dava sorte. Contudo, de início, não tinha o que lhe oferecer. “O papel disponível era o de uma professora chinesa de 25 anos. E então Bayona decidiu que deveríamos esquecer que ela era chinesa e tinha 25 anos.”
Em 1952, entre Chaplin e Oona, além da irmã Jacqueline: a engraçada da família era a mãe
A atriz aderiu alegremente a “Kaminsky e eu”. Adorava o filme anterior de Wolfgang Becker, um diretor que lhe garantiu ter feito muito dinheiro no cinema e não ter pressa. “Ele me perguntou se eu aprenderia alemão para atuar, respondi que não. E no filme falo a língua apenas foneticamente. Mas Wolfgang se entusiasmou com a performance a ponto de me pedir para adicionar uma pronúncia francesa a meu alemão. Fiquei incrédula.” Seu personagem neste filme é um entre tantos que interpretou à margem da vida. “Tentei atuar como um computador que deu errado. Tudo estava lá, mas algum botão… Bem, não entendo nada de computadores. Vejo meu marido, o diretor Patricio Castilla, reclamar dizendo que perdeu tudo dentro deles, e eu penso como isso se dá. Então sou como um computador neste papel. Estou lá, mas não estou.”
Por não saber cantar, nunca enfrentou uma carreira na Broadway, como fizera seu irmão Sydney, embora tenha atuado ao lado de Anne Bancroft na bem-sucedida peça “The little foxes”, de Lilian Hellmann, dirigida por Mike Nichols. “O teatro é diferente demais, exige outra técnica. Cinema é o que sei fazer.” Uma arte naturalmente equilibrada entre o riso e a melancolia, como ela a entende. “Sempre vi o humor correr pelo sangue da família, mas jamais fui ensinada a desenvolvê-lo. Muito mais que meu pai, minha mãe nos divertia com seu senso de humor extraordinário. E somente Oona conseguiria rir das situações mais trágicas, como os funerais.”
Nesta entrevista que realizei com Lygia Fagundes Telles há 22 anos, em abril de 2000, para o caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil, a escritora reclama do pouco valor dado aos escritores, lembra de Clarice Lispector, ironiza Caetano Veloso, fala de sua relação com Paulo Emílio Salles Gomes e narra o encontro que teve com Simone de Beauvoir
A página em que a entrevista foi publicada, com foto de Juan Esteves feita na Academia Paulista de Letras
Lygia Fagundes Telles banha-se de uma certeza de Santo Agostinho, a de que o importante é a arte de viver num tempo de catástrofe, quando esta entrevista se inicia. Está impaciente, a autora de “As horas nuas”. No dia 1, Nélida Piñon e Lya Luft, conceituadas escritoras, vão homenageá-la com discursos na Bienal Internacional do Livro de São Paulo e, no próximo dia 24, sai o livro “Invenção e Memória”, com 15 contos que apresentam seu imaginário admirado de crueldades, mistério e um ensejo de esperança final. Ela tem tantos compromissos, tantos, e agora mais este. Àquela que pretende entrevistá-la, lança uma consideração de arrefecer. “Não importa nada do que eu diga. Meus livros é que importam. Leia estes papéis.”
Sobre as mãos da interlocutora, ela vai depositando impressos que contêm o resumo de sua ascensão literária e as breves considerações dos críticos, todos esbanjadores de enormidade – Otto Maria Carpeaux, José Paulo Paes, Sergio Milliet – sobre sua importância livro-a-livro. O que fazer? Lygia, 76 anos incompletos, está mesmo impaciente e, supõe-se, não apenas com jornalistas. Há os homenageadores que teimam em lhe dar mais idade do que tem. Os governadores. Os corruptores que revelam suas vocações a céu aberto. Os ricos compositores de música popular. Os estudantes que um dia lhe roubaram a obra de Jorge Luis Borges, autografada, da estante de retratos.
É preciso cobrir Lygia de razão. Sua impaciência cresceu a partir de um ato assinado há três anos pelo governo do Estado de São Paulo, extinguindo a verba honorária a que ela, procuradora autárquica do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, o Ipesp, teria direito. Seus vencimentos foram reduzidos a menos da metade do que eram. Lygia Fagundes Telles, escritora máxima brasileira, 17 livros publicados, dezenas de prêmios, ficções traduzidas em oito línguas, ficou sem dinheiro.
“Quando me ligam aqui dizendo que podem me pagar uma quantia simbólica por meus textos – e por simbólico entenda 300, 500 reais – minha orelha já levanta, meu cabelo já levanta”, diz Lygia com reiteração, com drama, numa pontuação em que sempre cabem muitos travessões e alguns recursos de estilo, como os itálicos. “Você veja. Os cantores, os compositores. Eles têm, um, apartamento em Paris, outro, em Nova York. Convidam Caetano Veloso para cantar e ele vai porque é um bom perfil – não exatamente um Rodolfo Valentino, como quer ser, com aquele turbante, não é um sheik -, muito bom cantor, compositor. Mas, para um escritor, não se paga o que se paga a ele.”
Há quatro anos, quando mudou de editora, da Nova Fronteira à Rocco, Lygia imaginou que poderia viver no Rio e lá, mesmo timidamente, montar o que ela intitula “uma nova frente de trabalho”. Mas o que ela desejava como moradia – “não uma cobertura, veja bem, um apartamento no Leblon” – não lhe foi acessível. Lygia, de elegância proverbial, lenços no pescoço, cabelos cortados em eterno chanel, e mocassins, quis viver com o conforto presumido de sua condição de dama das letras. Como não conseguiu, voltou a seu apartamento paulistano da rua da Consolação, aconchegante e digno, num prédio cercado por raras palmeiras imperiais.
“Seria preciso haver, para os escritores, as marquesas antigas, e duquesas, que convidavam e instalavam os artistas naqueles castelos, alas norte e sul, com empregados, por seis meses, para que escrevessem. Ninguém mais nos convida!” E mais travessões, e mais ênfase, porque agora a indignação quer saltar. “Eu devia – eu devia – me informar mais e falar com o Yunes [Jorge Yunes, o empresário com quem o prefeito de São Paulo, Celso Pitta, está envolvido em um escândalo de corrupção]. Parece que ele empresta.”
É nesses instantes em que ironiza as dores de sua particularidade e de seu país que Lygia está mais distante da mulher que escreve seus livros. Porque Lygia, autora – ao contrário da mulher que está na vida, relativamente indefesa, capturada pelas malhas dos executivos e das leis -, é segura, terrível soberana de todos os destinos. Uma escritora que explora as crueldades, e as expõe, que aponta os assombros de seus personagens, endinheirados ou pobres, e os derrete nas imagens literárias mais sintéticas e poderosas de que as décadas recentes têm notícia.
Lygia é rápida, de destreza exemplar. Neste novo livro, sua carpintaria de contista continua afiada. Em uma das histórias, um menino é acolhido por um velho, e a relação dos dois vai crescendo diariamente sob os olhos de um determinado comensal; um dia, um dos dois desaparece, por obra de seu par. Para quem a conhece, não há novidade desde o início: aquela história não acabará mesmo bem. A diferença, talvez, resida no fato de este conto não exalar, ao final, aquela ponta de crença de um desfecho feliz. Por onde a olhemos, é uma história de crueldade, num livro de crueldades e mistérios.
“Esperança, esperança, esperança, esperança”, brada Lygia, em novos itálicos, em sua residência na rua da Consolação. Sua esperança é a de ter inventado um novo gênero. O título do livro já diz: “Invenção e Memória”. Foi-lhe sugerido por uma frase anotada em algum lugar por seu marido, o crítico de cinema e escritor Paulo Emílio Salles Gomes, morto há 23 anos: “Invento, mas invento sempre com a secreta esperança de estar inventando certo.” Pois Lygia quer ter inventado isto neste livro: um gênero diferente dentro de seu próprio trabalho (não usa a palavra obra, por parecer grande demais), um gênero que asseguraria à ambiguidade uma avenida por onde passear. “Muitas coisas ali são inventadas, outras são memórias. Eu lá sei, não posso separar uma coisa da outra.”
É verdade que nunca pôde. Em seus livros, há, sim, crueldades, mas compartilhadas. Maniqueísmo e qualquer outra palavra que evoque contrastes evidentes entre o que é errado e certo não se aplicam a seus livros (ela prepara um romance, mas não adianta sobre o que tratará). “É impossível você separar, como num laboratório de física, o bem do mal”. Lygia se lembra de um padre de infância que lhe disse: “Miolo Mole – ele me chamava assim -, existe o bem e existe o mal. Quem escolhe o mal vai para o Inferno, quem escolhe o bem vai para o Céu.” E então ela via o clube da cidade, para onde se dirigiam as pessoas do bem. Mas seu pai ia lá também, jogar, e entristecia sua mãe. “Eu percebia esse lado no clube, uma porção do mal, você entende?”
Para Lygia, Santo Agostinho teria sido perfeito se houvesse levado, à vida de santidade, sua vivência anterior do pecado. A perfeição para ela, em se tratando dessas situações, foi personificada por Jesus. Não há quem tenha compartilhado sua glória, a de aceitar o mal como viesse. Nem mesmo seus próprios homens. Houve dois na vida de Lygia, o primeiro deles, um advogado, Goffredo da Silva Telles, que lhe deu seu único filho (também Goffredo, cineasta). Ela se lembra de ouvir o grande advogado dizer: “Não se adiante no tempo, Lygia.” Seu segundo homem, Paulo Emílio Salles Gomes, a escritora admirava e observava: “Ele arrebentava em ideias. Tinha essa coisa de certeza.” Ela o via como o filósofo Sócrates, praticando a “obstetrícia intelectual” em seus alunos, arrancando os fetos de seu pensamento, tamanha a sua lucidez, tudo num sentido diverso daquele em que ela caminhava. “Eu nunca tive essa carga tamanha de vontade.”
Lygia e Paulo viveram uma existência de 15 anos compartilhados, entre 1962 e 1977, sem filhos, mas com “o jovem”, como ele carinhosamente chamava o pequeno Goffredo, tido como seu próprio filho. “Resolvemos que levaríamos uma vida tranquila, nós e nossos gatos. Já tínhamos o jovem. Resolvemos que chega de filho. Chega de atormentação.” Ela o fazia ver coisas, o obstetra. Fazia-lhe ver que um dia os roteiristas de cinema respeitariam a profundidade de seus livros imagéticos. Se Lygia ainda não conheceu esses profissionais especialíssimos, a explicação foi mesmo dada por Paulo Emílio: os textos de Lygia provocariam uma sensação de intimidade tão grande em quem se aproxima deles que a oportunidade de invadi-la estaria aberta.
Nos anos 1930, quando Lygia vivia a meninice, aceitava-se que fosse estranha. Era uma mulher e, como mulher, dada à percepção, numa intensidade, ela crê, muito maior do que a encontrada nos homens. Para ela e para sua companheira, a escritora Clarice Lispector (1925-1977), Lygia até imaginou um qualificativo: bichos da sombra. “Nós nos desenvolvemos na sombra, mudas.” Esse é um assunto delicado, sua semelhança ou diferença em relação a Clarice – “desconfiada, esperta, ótima” -, aceita como a grande escritora brasileira do século, a inventora, justamente, de uma nova linguagem de percepção. Mas Lygia vê com tranquilidade os pontos que as tocam. “Éramos confessionais, perceptivas, mas éramos diferentes. E a diferença talvez residisse nas doses de mistério. O mistério, sal da ficção, acompanha o escritor.”
Não que Lygia deseje dizer com isso que o mistério, ponto de união com Clarice, deva afastá-la do leitor. Ela e a autora de “Perto do Coração Selvagem” conversavam muito sobre a mania que tinham os professores, nos anos 1960, de tornar seus livros mais complexos do que a necessidade, e, com isso, afastar os interessados possíveis naquelas tramas. “A gente seduzia os leitores, dizíamos coisas interessantíssimas, e os professores daquele tempo – isso estava na moda – vinham e destruíam tudo.”
Foi como bicho da sombra que Lygia, certa vez, recebeu um convite da escritora francesa Simone de Beauvoir para um chá, quando a escritora esteve aqui com o filósofo Jean-Paul Sartre, nos anos 1960. “Eu falava mal o francês, embora lesse e apreciasse muito a literatura francesa. Dizia: “Meu deus, o que vou conversar com Madame?” Simone, participativa – “a tal da revolução feminista estava começando” -, queria ler textos seus. Havia poucas traduções para o francês à época, e a escritora lhe deu a de um conto do futuro livro “Antes do Baile Verde”. Mas Simone pedia mais. E então Lygia se lembrou de outro padre, o canadense Paul-Eugene Charbonneau (1925-1987), que parecia entender suas ambiguidades e amara “Ciranda de pedra”, seu primeiro romance, a ponto de traduzi-lo.
“Era uma tradução, não sei se boa, porque na época eu não tinha condição de avaliá-la, mas feita com amor por um homem de vocação”, lembra Lygia. E então ela resolveu oferecê-la a Madame, ressaltando que o livro poderia lhe interessar por tratar da decadência da burguesia brasileira e de uma jovem desesperada, querendo fazer parte dela, e dela se libertando. Beauvoir, que partiria no dia seguinte, topou a oferta. “Deixe seu livro lá no meu hotel.” Lygia pensou: “Ela vai jogar isso no mar.” Mas, ainda assim, cumpridora de suas promessas, depositou o enorme embrulho com folhas datilografadas na recepção. “Tempos depois – veja que intelectual séria – chega uma carta dela escrita em papel quadriculado dizendo assim: ‘Gostei muito, que riqueza, pena que seu livro não veio escrito em francês parisiense, porque eu o lançaria aqui.”
Lygia, bicho da sombra, ficou “animada e quieta” com o elogio. Na mesma carta, Simone de Beauvoir comentava seus textos dizendo que se enredavam em tristezas e desesperos muito grandes, mas que depois mostravam a esperança. Identificava um gesto desse sentimento final em “As pérolas”, conto com que Lygia lhe presenteara. Nele, o homem rejeitado joga o colar esfacelado para sua mulher, que, com a peça, ansiava encontrar um novo amor. “Depois do que ela disse, me senti coerente comigo. Sou triste, às vezes, mas há um gesto final, de esperança, no que escrevo”, diz Lygia. “E essa carta de Simone de Beauvoir, na verdade, eu vou vender.”
O cineasta estadunidense, que já trabalhara com o desenhista no roteiro de seu filme anterior, Bernand e Huey, agora apresenta 18 ½,uma comédia a partir da sensação do cartunista de que Trump reviveria Nixon
Dan Mirvish (de pé à esquerda) ensaia parte de seu elenco (Willa Fitzgerald, John Magaro, Vondie Curtis Hall e Catherine Curtin) no motel Silver Sands, de propriedade do produtor do filme
Dan Mirvish, de 54 anos, diretor, roteirista, produtor e autor de livros, roteiros e letras de canções (além disso montador e fotógrafo, se o filme assim pedir), resume o perfil do cineasta independente hoje nos Estados Unidos. Ele é um perfeito homem-orquestra para que seu cinema se faça, e até mesmo contribuiu para a fundação de um festival de filmes independentes, o Slamdance Film Festival, de modo a aprimorá-lo. De uma maneira ou de outra, especialmente de outras maneiras alheias à produção mainstream, ele dirigiu anteriormente os longas Omaha – The Movie(1995), Open House(2004), Entre Nós (2013) e Bernard e Huey(2017), este exibido na 41a Mostra.
Neste ano, ele aparece na 45a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo com um filme resultante de crowdfunding, intitulado 18 ½, que se refere ao espaço de tempo apagado de uma gravação de fita do escândalo Watergate. No filme, que se transforma numa improvável comédia de humor negro, Mirvish imagina uma situação a ter originado o suspeito apagamento: uma funcionária responsável por transcrever fitas teria este trecho na mão e, decidida a apresentá-lo a um jornalista do Times, resolveria transcrevê-lo com o objetivo de mostrar às autoridades seu conteúdo. Mas uma série de reveses, especialmente cômicos, teria mudado seu intento.
O elenco é muito bom, a começar pela bela protagonista Willa Fitzgerald, que encara com elegância toda a picardia de Mirvish. A música é feita pelo mexicano Luis Guerra a partir de um conceito de bossa nova, para o qual ele utilizou a voz da brasileira Caro Pierotto (a cantora tem singles e seu álbum Caro Pierotto lançados no Brasil pela gravadora ybmusic). Especialmente, este filme nasceu depois que, em conversa com o máximo desenhista e escritor Jules Feiffer, de 92 anos, Mirvish se deu conta de que a eleição de Trump os colocaria em rota semelhante àquela vivida nos anos Nixon, que Feiffer acompanhou tão bem.
A seguir, a conversa que tive com Dan Mirvish sobre seu novo filme e sua carreira como diretor independente:
A locação do filme, que não passou por reforma e mantém a arquitetura dos anos 1970
Vamos começar com o motivo importante para este filme ter sido feito: suas conversas sobre as eleições de 2016 com o desenhista Jules Feiffer e sua sensação de que Trump na presidência era como reviver o pesadelo de Nixon. O que exatamente ele lhe disse sobre isso? E como se sentiu com a vitória de Trump na eleição presidencial? De que modo as sensações dele foram acabar no seu filme?
Estávamos todos em choque na época, e ele contextualizou esta derrota ao se lembrar de tudo o que os Estados Unidos haviam passado durante o mandato de Richard Nixon no poder. De alguma forma, havíamos sobrevivido à era Nixon/Watergate, então Jules achava que, de uma forma ou de outra, também sobreviveríamos à era Trump. Oh, ele certamente não estava feliz com a vitória de Trump. Muitos de nós nos Estados Unidos não. Mas ele teve tempo de vida suficiente para ver que poderíamos sobreviver ao macarthismo, poderíamos sobreviver a Nixon, Reagan, ambos de Bush, e de alguma forma superaríamos isso.
O interessante é que fui visitar Jules em sua casa em Shelter Island, perto da ponta oriental de Long Island. Meu amigo Terry Keefe, produtor do filme, me levou até lá, porque ele mora perto, e Terry estava comigo durante toda essa conversa. Depois, passei a noite no motel de Terry, o Silver Sands. Ele me mostrou o local e disse que havia apresentado muitas sessões de fotos de moda, videoclipes e comerciais lá, mas que ninguém jamais havia filmado um longa-metragem no local. Ele herdou o motel de seus avós, que o construíram nos anos 1950 e 1960, e parou de renová-lo no início dos anos 1970. Terry vem de um background de filmes independentes como produtor, então ele foi esperto em manter a vibração vintage única do lugar. Ele me contou que fechavam o motel durante o inverno e me contou se eu gostaria de rodar um longa lá. Bem, no novo contexto de conversar com Feiffer sobre Nixon e Watergate, e olhando em volta, me ocorreu que seria o local perfeito para um filme de Watergate!
Um dos muitos cartuns de Jules Feiffer nos anos 1970 a ridicularizar Richard Nixon, o Dick
Você é próximo de Jules Feiffer para além da colaboração que ele fez no roteiro do seu longa precedente, Bernard e Huey, de 2017? Como você vê a importância dele para a cultura dos EUA? Pretende um dia fazer uma biografia cinematográfica dele ou um documentário sobre sua trajetória?
Definitivamente me consideraria um amigo, ou pelo menos um protegido inoportuno. Mas não tenho mantido contato com ele desde o início da pandemia, no ano passado. Originalmente, o plano era convidá-lo para a nossa sessão de fotos e talvez até mesmo tê-lo como o homem que anda pela lanchonete no filme… Quase podíamos ver sua casa de onde filmávamos! Mas no início de março de 2020 estávamos próximos demais da pandemia para arriscarmos vê-lo. Ele permanecia bem situado em sua quarentena numa ilha, então eu não queria estragar isso.
Richard Kind também é amigo dele, mas igualmente não o viu. Também sou amiga de duas filhas de Feiffer e tenho estado em contato com elas. Eu sei que outra pessoa estava planejando fazer um longo documentário sobre Jules, mas eu não ouço falar sobre isso há algum tempo. Eu fiz algumas filmagens com ele quase todas as vezes que nos encontramos, mas não acho que tenha sido o suficiente para mais do que peças como meu curta Feiffer sobre Nixon ou para nossa campanha de crowdfunding para Bernard e Huey. Eu sei que alguém estava fazendo um livro sobre Jules no ano passado. Ele entrevistou David Koechner (uma das estrelas de Bernard e Huey) e a mim, extensivamente. Não tenho certeza em que estágio o livro está agora.
Jules Feiffer à época em que produzia cartuns sobre Nixon e tinha, entre seus admiradores, Federico Fellini
A maneira como você lida com esse lapso de tempo, os 18 ½ minutos perdidos nas gravações de fitas sobre o caso Watergate, é super criativa e divertida no filme, como se esse período pudesse conter muitas possibilidades. Em 18 ½ minutos decisivos pode-se fazer amor com alguém e também ser morto a tiros… E há uma espécie de evocação do filme do Fellini, 8 ½, não há? Você acha que o tempo é um tema do seu filme? O título veio antes do filme?
Essa é uma interpretação muito interessante dos 18 minutos e meio e das coisas que você pode fazer nesse período. E, sim, até certo ponto eu pensei assim. É sobre a duração de um lado de um álbum, então sim, o comprimento perfeito para uma cena de amor, ou uma cena de jantar ou um assassinato. E também é sobre a duração que a maioria dos filmes tem para seu terceiro ato, então funciona bem no contexto de um longa-metragem. Pensei no título bem cedo e, estranhamente, não fui muito influenciado por Fellini. Acho que isso trai minhas raízes na história política mais do que no cinema… Para mim, o termo “18½” sempre significou uma referência às fitas do Watergate e à lacuna que faltava. Eu simplesmente cresci com isso em meu vernáculo. Ma,s é claro, eu também conhecia o 8½ de Fellini. Na verdade, Feiffer era amigo de Feilini! Felini era um grande fã de Jules – para a agradável surpresa de Feiffer! – e eles se encontraram na Itália. Felini também estava muito à frente de seu tempo, escolhendo um título que apareceria tão cedo em todas as listas alfabéticas de filmes. Um movimento genial! Algumas pessoas fizeram a comparação de que 8½ também está em um hotel à beira-mar, mas não acho que as pessoas devam traçar muitos paralelos com isso.
Foi difícil para você transformar um assunto político americano muito sério em uma comédia?
É quase impossível ouvir as fitas reais de Nixon e não encontrar humor nelas e em todas as circunstâncias que cercam Watergate. Foi uma série de erros após a outra. Mesmo na época, nos anos 1970, as pessoas encontravam humor nisso todos os dias. Acho que o humor também é a melhor maneira de processar esses eventos terríveis. Dito isso, até ver o filme com um público em nossa estreia mundial em Woodstock, no mês passado, não sabia até que ponto as pessoas achariam o filme engraçado em algumas partes. A desvantagem de trabalhar em um filme durante uma pandemia é que nunca tivemos nenhuma exibição comunitária até que o isolamento fosse concluído. Por isso, foi uma surpresa muito agradável ouvir essas risadas na estreia.
Você estava pensando em fazer uma comédia sobre o assunto desde o início?
Antes de fazermos o filme, eu sempre o considerei como Quem Tem Medo de Virginia Woolf e Três Dias do Condor… mas um pouco mais engraçado do que qualquer um desses. Claro, nenhum desses filmes é particularmente engraçado. Então, sim, eu sempre encontrei pelo menos o humor negro em toda a história.
O que você acha do humor no cinema? Você pensa nele como uma arma contra o sistema?
Sim, definitivamente o humor é uma arma contra o sistema. Todas os sistemas – sejam eles políticos, religiosos, burocráticos, industriais ou qualquer outra forma de status quo – precisam ser ridicularizados. O sério e grave filósofo alemão Theodor Adorno disse certa vez que o riso de uma platéia o lembrava das piores formas de tortura burguesa. Mas eu realmente não acho que ele era um fã dos Irmãos Marx. A sátira política no cinema existe há mais de 100 anos e tenho a honra de fazer um pequeno filme que segue essa tradição.
O gravador de rolo, central em 18 ½
Conte-me sobre a trilha sonora de “18 ½”. Parece-me perfeito que a bossa nova funcione como “muzak”, música de elevador, na maioria das vezes… e que seja usada como banda sonora para quem quer relaxar nos anos 1970… Esta ideia teria vindo de Luís Guerra ou de você? Como trabalhou nas canções incluídas na trilha?
Quando estava trabalhando no roteiro com meu parceiro de composição/produção Daniel Moya, fiquei pensando no tom do filme. Como vamos unificar os tons díspares de comédia, suspense de espionagem, sensualidade e intriga política? Para mim, em todos os meus filmes, sei que a música é o grande unificador para marcar o tom que se quer expressar. Também tenho outras regras para mim: não gosto de usar músicas pré-existentes. Seus direitos são caros e complicados de obter, em primeiro lugar. Mas também sinto que se um cineasta usa letras que estão na mesma linguagem do diálogo, isso sempre vai dividir a atenção do público. Então, se vou usar letras em vez de diálogos, elas realmente precisam estar em um idioma diferente, ou pelo menos misturadas tão baixo que se tornam incompreensíveis [é possível atestar um exemplo disso em Bernard e Huey, onde eu canto uma música!]. Também sinto que, especialmente com os filmes de época ambientados nos anos 1970, houve um uso excessivo de um pequeno grupo de canções muito populares, que se tornou clichê.
Isso foi pouco depois de eu ter voltado da Mostra em 2017, então eu tinha a música brasileira muito presente na cabeça. Enquanto ainda estávamos na fase de roteiro, percebi que a bossa nova funcionaria tanto no tom do filme como um todo, mas também no contexto como um estilo de música favorito para o chamado casal cosmopolita do filme (interpretado por Catherine Curtin e Vondie Curtis Hall). Para um casal de meia-idade no início dos anos 1970, cujos gostos musicais nasceram nos anos 1960, a bossa nova brasileira era o mais selvagem e mundano que poderia haver. Mas também se encaixava na história, uma vez que os personagens relatavam ter estado no Brasil e em outros pontos de interesse internacionais, supostamente para que o personagem de Vondie trabalhasse para a empresa McCormick Spice, com sede em Baltimore. Lembre-se, de meados para o final dos anos 1970, a bossa nova havia se tornado o muzak definitivo, mas se o casal comprasse o álbum nos anos 1960, ainda teria sido cool na época.
Felizmente, Luis Guerra é bastante versado em música brasileira e muitos de seus colaboradores musicais do Brasil residem em Los Angeles. Por acaso, nós dois moramos em uma área de Los Angeles onde vivem muitos brasileiros. Então, a bossa nova e outras músicas brasileiras vieram naturalmente para Luis. Especificamente, também precisávamos de uma música-tema recorrente, que eu descrevi para Luis como sendo pelo menos liricamente evocativa de Garota de Ipanema e a música tema da série Mary Tyler Moore. Luis veio com a música e eu inventei a letra em inglês de Brasília Bella.
Nos anos de meu crescimento, Brasília sempre foi essa incrível história internacional de uma capital nova e reluzente de um país construída a partir do zero. E ao usar Brasília eu encontrava um substituto para Washington, evocando o idealismo ingênuo que alguém como a protagonista do filme, Connie, pudesse ter tido ao se dirigir para Washington pela primeira vez, na década de 1960. Mas, ao contrário de Garota de Ipanema, eu precisava incluir o feminismo mais florescente da personagem de Mary Tyler Moore.
Queríamos também que a letra sugerisse a natureza de espionagem/suspense do filme (“uma lagarta espiã, uma borboleta mortal”) e, finalmente, falasse com o arco da personagem de Connie e sugerisse o próximo capítulo de sua própria vida. Nossa tradutora Emilia Wolfrum, de Uberlândia, ajudou muito nesse processo. Quis mostrar que Brasília Bella era tão radical que comia pão de queijo com Nutella (minha filha é uma grande fã de Nutella, então aquela frase era para ela).
Por causa dos meus sentimentos sobre as letras, isso significava que quando ouvíamos a música durante a cena de dança, a letra precisava ser em português e quando ouvíamos a música no final do filme, precisava ser em inglês. Isso funcionaria bem para espectadores de língua inglesa. Mas eu também sabia que os ouvintes de língua portuguesa iriam captar o significado das letras mais cedo, e isso lhes daria algumas dicas iniciais do final. (Gosto de ver filmes em que públicos diferentes percebem coisas diferentes em momentos diferentes – isso acontece em Bernard e Huey, onde o público alemão entende o diálogo no vídeo no museu muito antes de o público de língua inglesa perceber.)
Então, mais tarde, quando estávamos pensando sobre que música os hippies do filme estariam ouvindo, Luis sugeriu a Tropicália como o estilo psicodélico brasileiro, com Os Mutantes e outras bandas da época. Nós até inventamos a história de que o mesmo estúdio no Brasil seria tão barato que eles gravariam um álbum de bossa nova num dia e usariam a mesma sessão de músicos e a cantora (Caro) no dia seguinte para um álbum da Tropicália! Seria mera coincidência (ou não) que os hippies então escutassem uma faixa 8 do mesmo estúdio de bossa nova que o casal estava escutando. Depois que envolvemos Caro, ela naturalmente trouxe muito de si mesma para o processo e foi uma alegria completa trabalhar com ela! Então, quando o ator Sullivan Jones (que interpreta Barry) me disse que tocava guitarra, apenas alguns dias antes de filmarmos suas cenas, Luis e eu escrevemos Deadly Butterfly para ele, baseados em parte da letra de Brasília Bella. Honestamente, se não tivéssemos tido todo esse tempo durante a pandemia, provavelmente não teríamos criado todas essas camadas na trilha sonora!
Você disse que amou São Paulo quando esteve aqui, há quatro anos. O que viu de adorável em nós, brasileiros?
Havia tido uma experiência realmente maravilhosa na Mostra de 2017! O staff do festival nos levou para ver bandas incríveis, e então uma noite assistimos a um ensaio de bairro para o carnaval (no final da noite, todos os cineastas estavam cantando e dançando junto com os habitantes da região). A diretora do festival, Renata Almeida, deu uma festa em sua casa, onde o DJ tocava principalmente músicas antigas, o que fazia São Paulo parecer Nova York no final dos anos 1960 ou início dos anos 1970. A arquitetura, as bancas de jornal, a música, o bairro da moda, toda a vibração. E, claro, todo mundo foi tão legal comigo enquanto eu estava lá! Tenho certeza que este foi um instantâneo único de São Paulo, mas a impressão ficou.
Como você se sente sobre nossa situação política, ou sobre nós, vivendo este pesadelo sob Bolsonaro?
Acho que mais de um brasileiro o descreveu para mim como “Trump com anabolizante”. Então, eu só posso imaginar o pesadelo que vocês estejam passando agora, particularmente sua resposta a Covid e todo o prejuízo para a comunidade artística e criativa. Foi devastador quando nos Estados Unidos ouvimos falar do incêndio no depósito da Cinemateca. E ainda mais triste saber que remontava à falta de apoio de Bolsonaro às artes. Se existe alguma esperança, pense que sobrevivemos a quatro anos de Trump (bem mal) e que houve uma luz no fim do túnel.
Você é diretor, escreve roteiros e letras de música, é fotógrafo, trabalha com sua família, comanda um festival de cinema independente… Há uma infinidade de talentos em você. Acha que, como diretor independente, é mais fácil canalizar todos eles em um filme?
Sim, como um diretor independente, é muito mais fácil tirar proveito de minhas habilidades completas – desde escrever letras até fazer pão com fermento natural. Por exemplo, quando tivemos de parar de filmar depois de 11 dias por causa da pandemia (tínhamos quatro dias restantes para filmar), eu simplesmente empacotei o disco rígido com todas as nossas filmagens, voei de volta para Los Angeles e comecei a editar o material eu mesmo. Se eu não soubesse editar, demoraria meses para encontrar um editor. Dessa forma, eu sabia que material tínhamos e a melhor forma de cortá-lo. Acho que se eu fosse contratado estritamente para “dirigir” para a TV ou para um serviço de streaming, não me divertiria tanto. Felizmente, ninguém nunca me contratou para dirigir nada.
Como um diretor independente sobrevive hoje nos EUA?
É muito difícil. Por um lado, há uma enorme quantidade de filmes sendo feita agora por todos os streamers responsáveis por conteúdos em episódios. Mas eu não faço parte de nada disso. Ainda é muito difícil entrar nesse mundo e, quando você chega lá, perde muita liberdade criativa. Mas esses empregos pagam bem se você puder consegui-los, claro. E muitos cineastas independentes vão e voltam entre trabalhar em projetos de TV e fazer seus próprios filmes. Honestamente, esses episódios em série concentram toda a emoção e o dinheiro hoje no universo do cinema. O mundo dos recursos independentes é bastante sombrio se seu objetivo for ganhar dinheiro. Mas se esse não for o objetivo, então pode ser bastante criativo. Felizmente, tenho uma esposa adorável e solidária que mantém um teto sobre nossas cabeças. Eu também ganho algum dinheiro escrevendo livros (meu último, a segunda edição do The Cheerful Subversive’s Guide to Independent Filmmaking, foi lançado no verão pela Focal Press/Routledge), e também passo muito tempo dando palestras em escolas de cinema ao redor o mundo. Se houver alguma no Brasil que gostaria que eu as visitasse, por favor me avise!
Quais foram as maiores influências sobre seu estilo como diretor?
Para mim, definitivamente Robert Altman. Antes mesmo de conhecê-lo (seu neto é um dos meus parceiros de produção) e de tê-lo como mentor do nosso primeiro filme, sempre fui fã. Mas houve outros, especialmente aqueles que conheci de uma forma ou de outra, de John Carpenter a Harold Ramis. Também tive sorte de, através do Slamdance, o festival independente que fundei, conhecer muitos diretores contemporâneos incríveis, cujos primeiros filmes mostramos – de Chris Nolan, Bong Joon Ho, Irmãos Russo, o falecido Lynn Shelton, Andrew Patterson, Sean Baker, a Rian Johnson (que na verdade foi assistente de produção no meu primeiro filme). E também cineastas dos quais você talvez não tenha ouvido falar, como Heidie Van Lier, Debra Eisenstadt e a falecida Sarah Jacobson. Além disso, Alex Cox, particularmente com Repo Man, me influenciou muito.
Além do cinema estadunidense, de quais outros você gosta?
Eu mencionei Bong Joon Ho, que conheci quando mostramos seu primeiro filme, Barking Dogs Never Bite, no Slamdance. Essa foi sua primeira viagem aos Estados Unidos. Foi no mesmo ano que Henrik Handloegten, da Alemanha, apareceu com seu primeiro filme (e eu o encontrei novamente na Mostra!). O diretor francês Frédéric Forestier é um amigo muito próximo e colaborador (ele é o produtor deste filme). Os cineastas alemães Veit Helmer, RP Kahl e o produtor Torsten Neumann são ótimos. (Torsten e eu fizemos um filme juntos.) Amo o diretor equatoriano Javier Andrade e o cubano Carlos Lechuga, que conheci ao longo dos anos em diferentes festivais. A diretora e escritora de Barbados Shakirah Bourne é uma amiga próxima e ainda não sabe disso, mas podemos colaborar em algo em breve… Passei muito tempo em festivais no Caribe, então conheci muitos cineastas de lá, como Maria Govan, das Bahamas, e de Trinidad.
Você aprecia algum diretor ou filmes brasileiros?
Shhhh! Estranha e embaraçosamente, na verdade não estou familiarizado com muitos cineastas brasileiros (embora eu tenha conhecido alguns apenas esta semana e estou ansioso para saber mais deles e compartilhar com eles nosso trabalho). Quando estive na Mostra em 2017, acabei vendo tantos grandes filmes da Estônia, China, Noruega e Alemanha, mas não tantos filmes brasileiros. Mas, agora, acho que preciso compensar isso!!
Você pode me falar sobre seus próximos projetos?
Honestamente, não tenho ideia do que vem a seguir! Eu sei que 18½ ainda vai ocupar a maior parte do próximo ano. Não tenho certeza se você percebeu, mas não temos um distribuidor ainda – nos Estados Unidos ou internacionalmente. Mesmo assim, sei que vou fazer uma longa turnê com o filme por festivais nos próximos meses (incluindo talvez um retorno ao Brasil – acabamos de ser convidados para algo no Rio!). O próximo verão é o 50º aniversário da invasão do Watergate, então eu suspeito que faremos algum tipo de distribuição planejada para isso. Também houve algum interesse em transformar o filme em uma série episódica, uma peça ou, definitivamente, o lançamento de uma trilha sonora.
Dan Mirvish, que lamenta o pesadelo Bolsonaro, um “Trump com anabolizante”, os mortos por sua irresponsabilidade e a destruição da Cinemateca
O primeiro, belo e poético longa-metragem de Adilson Mendes é obra madura sobre um dos mais importantes diretores do Brasil
Ruy Guerra, olhar direto
Cinema sobre cinema. Assim se pode resumir Tempo Ruy, o filme do diretor Adilson Mendes sobre o diretor Ruy Guerra, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Com montagem de Fábio Costa Menezes e fotografia de Saulo Nicolai e Kae Rodrigues, Adilson Mendes voa como um pássaro poético sobre a trajetória de um relegado da historiografia, o moçambicano tornado brasileiro pelo cinema Ruy Guerra. É seu primeiro longa-metragem, mas nem parece.
O diretor de “Tempo Ruy”, Adilson Mendes
Historiador formado na Unesp, com habilitação em cinema pela USP, Mendes aprofundou-se em curadoria e história, com ênfase em história do cinema e patrimônio audiovisual. Foi pesquisador da Cinemateca Brasileira, onde trabalhou em curadorias, edições e restaurações. Organizou o livro Ruy Guerra – Arte e Revolução e na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, no ano passado, ministrou, ao lado de Ruy Guerra, o curso on-line “O Trabalho de Ruy Guerra”. Sua única obra anterior como cineasta foi o curta Eu Posso Ir.
Mendes conheceu Ruy Guerra quando participou da equipe da Cinemateca responsável pela restauração de Os Fuzis, uma obra-prima brasileira possivelmente sem pares. A crise de 2013, que atingiu a instituição, impediu a finalização do restauro. E Mendes foi a pessoa encarregada de viajar até o Rio para contar isso a Ruy Guerra. “Dei sorte e nosso santo bateu. E na pandemia estreitamos os laços”, ele conta.
O filme foi rodado durante a pandemia naquele pedaço de mundo onde Guerra vive ao lado de seu enfermeiro, Gerônimo Quirino, um personagem apresentado em sequência memorável. É como se, por meio dela, estivesse ilustrada a própria trajetória atlântica de Guerra rumo à pasárgada brasileira, onde, misturado à paisagem e seus desígnios, o moçambicano escolheu aplicar as lições de cinema que primeiro aprendeu com os franceses.
Em seu recolhimento, com humor
Ruy Guerra fala e pontua bem o que diz, como se o tempo realmente lhe pertencesse. Autor de livros, poemas e canção popular, ele lê por todo o filme. Tem o mau humor divertido e no seu coração não parece haver rancor nem mesmo por Glauber Rocha, que rompeu com ele por imaginá-lo espião da ditadura portuguesa, ou algo nesta linha sem sentido. Mas Guerra, como bem recorda, despediu-se dele em funeral.
O filme persiste em imagens litorâneas estendidas, em reflexos e sombras do cinema mudo, e todo o tempo parece encenar um sereno adeus.
Um cineasta reconhece outro e, aos 90 anos de idade, Guerra diz a Mendes que demora a morrer. Isto, como é de supor, o faz presenciar a perda um a um de todos os grandes amigos, como Gabriel García Márquez, de quem diz se lembrar todos os dias. Ele suspeita que esta seja a maneira que a vida encontrou de lhe dizer que talvez seja possível perdê-la sem lamentar. Mas Guerra, indiferente ao que o tempo rui, sempre preferirá viver um pouco mais.
A seguir, as respostas que Adilson Mendes deu às minhas perguntas:
Como se deram as conversas para a realização deste filme?
O convívio diário com Ruy Guerra durante a pandemia fez com que ficássemos amigos e a ideia do filme surgiu como forma de ajudá-lo a existir durante esse período difícil. A amizade forte permitiu a liberdade criativa.
Sentiu necessidade de procurar outros personagens envolvidos em sua história? Ou ele lhe pediu que se concentrasse apenas em seus depoimentos e cartas?
Achei que seria apropriado fazer um filme huis clos com ele em sua casa. Um caso isolado com possibilidade de generalização. Uma estrela solitária capaz de iluminar uma constelação inteira: a cultura brasileira, que agora está sendo tragada por uma nebulosa. E o brilho de Ruy é a resistência vital.
Me fale um pouco sobre a escolha da trilha musical, que me parece tão acertada, ao intensificar as passagens, os belos travellings.
A trilha é fruto do enorme talento de Dino Vicente. O trabalho dele foi fundamental para a estruturação do filme. O título do filme traz a palavra “tempo” no sentido musical. Por isso, a música deu ossatura à massa gelatinosa das imagens e da voz de Ruy.
Esse seu estilo de documentário, que explica sem se detalhar ou identificar (como acontece numa emocionante sequência em câmera lenta em torno do enfermeiro de Guerra, e pode indicar, além da fragilidade física do diretor, sua trajetória afro-atlântica), foi desenvolvido a partir do interesse em documentários específicos? Quem são os documentaristas que mais lhe influenciam?
Durante a década e meia em que trabalhei na Cinemateca mergulhei na história do cinema. E certamente a tradição documental me marcou, especialmente a de Georges Franju, que também marcou demais a sensibilidade de Ruy.
Manancial inesgotável
Como você vê Ruy Guerra no panorama do cinema brasileiro? Crê que ele não foi suficientemente visto ou valorizado? Quais são os filmes essenciais da cinematografia dele, a seu ver, e por quê?
Ruy é manancial inesgotável. Sua coragem de se renovar a cada filme é inspiradora para qualquer cineasta que queira fazer um cinema de combate. Para mim, Ruy é o autor do único filme brasileiro: Os Fuzis. Quando observamos a fortuna crítica de Ruy, notamos que sua obra repercutiu mais na França do que no Brasil. Os clássicos da historiografia do cinema moderno o ignoram ou passam rápido por ele, sempre reproduzindo o belíssimo texto de Roberto Schwarz sobre Os Fuzis, “O cinema e Os fuzis”, de 1966.
Tem um próximo projeto cinematográfico do qual possa me falar?
No momento desenvolvo alguns outros filmes, ficção e documentário. O mais avançado, que sairá no começo de 2022, trata da entrada do MST no mercado financeiro.