“A Câmera de Claire”, um naïf intrigante

“A Câmera de Claire”, disponível gratuitamente online até o dia 31 de outubro, dentro da Mostra Cinema e Reflexão, caminha para desdobrar sentidos em uma mis-en-scène quase anticinematográfica

Isabelle Huppert e Kim Minhee em “A Câmera de Claire”: retratos de finitude

Deve haver, na posada ingenuidade, uma razão a mais para que as obras deste cineasta sul-coreano de 60 anos, vencedor do Urso de Prata no festival de Berlim 2020 por “The Woman Who Ran”, calem fundo seu público. “A Câmera de Claire”, realizado por Hong Sangsoo em 2017, traz a francesa Isabelle Huppert no papel de uma professora vestida de amarelo que tira fotografias em Cannes. A irrealidade de sua figura luminosa se faz constante, como se ela fosse um meme vivo de auto-ajuda a passar pela timeline do facebook ou uma figura de coro grego a alertar os escolhidos sobre seus erros e perigos.

Jung Jin-young e Isabelle Huppert: poética fotográfica

Porém, antes que possamos nos dar conta desta sua qualidade que permeia o inconsciente (as profundas camadas de motivações dos personagens), nós a vemos saborear as férias como qualquer turista. Claire vaga pela cidade francesa onde se dá o célebre festival de cinema porque uma amiga irá se apresentar ali e a convidou. E, como um passatempo, ou como uma maneira de aprisionar o tempo em si, Claire porta uma polaroide que retrata os moradores da cidade antes que se modifiquem – porque a mudança dos olhos, ela vê, é constante de um segundo a outro. Talvez a razão para este desejo de aprisionamento venha de uma perda, somente relatada ao final do filme.

“A Câmera de Claire” parece aludir à “Câmara Clara” do célebre ensaio de Roland Barthes publicado em 1980. Nesse livro, Barthes observa que uma fotografia pode ser objeto de três intenções: fazer, suportar e olhar. O operator é o fotógrafo. O spectator somos todos nós que assimilamos e colecionamos fotos. E o spectrum, o alvo, o referente, é o simulacro, o objeto nascido da captura da luz. A relação da palavra spectrum se dá com o espetáculo tanto quanto com o terror presente em toda fotografia: “o retorno do morto”.

Eis que a partir disto fica “claro”, iluminado, quem sabe nítido, o que Claire faz pelo filme. Ela é o alerta sobre a finitude, a figura irônica da morte que passeia a veraneio. A professora se relaciona a uma teia de dramas individuais, a começar por aquele vivido pela linda Gam-hee (Kim Minhee), funcionária de uma agência de filmes que é despedida diretamente pela patroa, ciumenta de sua suposta relação com um cineasta embriagado. Claire anota, aponta, apreende, amplia e reduz todos os personagens envolvidos nessa história a uma só cena, como uma fotografia faria, eternizando-os em seus dramas supérfluos.

Huppert, Jung Jin-young e Chang Mi-hee: os dramas escondidos

Se a trama surpreende, mais ainda, sua realização. É como se “A Câmera de Claire” inventasse um novo naïf cinematográfico. Os movimentos quase não existem, exceto os de zoom, sem aparente razão. Os personagens nunca se tocam. Estão invariavelmente lado a lado na praia, num café, no restaurante ou na biblioteca, não raro situados diante do público de perfil, até de costas. A fala sugere espontaneidade, um interrompe o outro, de modo a sugerir que os diálogos não foram ensaiados direito. É como se Hong Sangsoo radicalizasse a montagem em tempo real de Bresson ou Rohmer, esticando a ingenuidade de sua mis-en-scène até alcançar uma espécie de anti-cinema.

Pode ser o que você não espera de um filme.

Pode ser que o filme não espere por você.

“A CÂMERA DE CLAIRE”

(Coreia do Sul/França, 2017)

Direçao: Hong Sang-soo

Com Isabelle Huppert

online e gratuito até 31/10

www.mostracinemaereflexao.com.br

Cherchez la femme

Documentário de Eric Friedler e Andreas Frege a ser exibido no É Tudo Verdade investiga bloqueio de Wim Wenders à produção ficcional e lança luz sobre a disputa entre ele e Coppola para a realização de “Hammett”

Coppola e Wenders durante as discussões que resultaram na refacção de “Hammett”, em 1982

Tudo nesta vida tem início e fim. Menos, talvez, para Wim Wenders.

São quase quatro décadas desde que Paris,Texas abriu uma nova reflexão para o cinema comercial, mas até hoje se espera deste cineasta alemão de 75 anos que faça coisa melhor de sua obra ficcional. Por que aguardar isso de Wenders? E por que, mesmo, ele não o faz?

Em Wim Wenders, Desperado, seu amigo Werner Herzog tem uma resposta simples para essas repetidas inquietações. “Vejam seus filmes, idiotas. Ele nunca fez um filme ruim”.  

Foto feita pelo cineasta antes da filmagem de Paris, Texas, e que parece remeter a William Eggleston: um método de filmar que se assemelha ao fluxo da fotografia de rua

O diretor e roteirista Eric Friedler sabe que é difícil crer em Herzog e vai investigar. Felizmente não compõe uma hagiografia à moda do que o próprio Wenders entregou para Sebastião Salgado naquele O Sal da Terra. Friedler começa por tentar descobrir o que, para o cineasta, é um fim.

Wenders entende a narrativa como uma aventura. Que produtor se animaria diante dessa ideia? Ele não segue roteiro nenhum e, nesta busca, seu filme se faz. (E aqui Friedler poderia ter explorado mais sua relação com a fotografia de rua, algo assemelhada à de William Eggleston e quiçá responsável por imprimir no cineasta o fluxo do inesperado.) Wenders considera trapaça saber de antemão o final, ou mesmo a finalidade do filme, o que para ele dá no mesmo. “Desperado” é como o ator Patrick Bauchau o vê: “A queda livre traz Wenders mais próximo do objetivo.” 

Ibrahim Ferrer em “Buena Vista Social Club”: o documentário como meio natural



Paris, Texas parece ter sido a mais bem concluída de suas tentativas ficcionais, apesar de todos os percalços, ademais construída na própria América de sonhos juvenis: “Tudo de que eu gostava vinha dos Estados Unidos e o resto era maçante.” O filme aponta como ponto de ruptura a tumultuada relação de Wenders com o produtor de Hammett, Francis Ford Coppola, a esta altura já ciente de que não deveria ter impedido o alemão de fazer o filme que bem quisesse em 1982. 

Durante a filmagem de “Hammett”, sua grande decepção nos Estados Unidos

O estadunidense diz o que a seu ver provocou a fissura entre os dois, representada de forma vingativa por Wenders em O Estado das Coisas: “Cherchez la femme”. 

É preciso ver Desperado para entender por quê.

Harry Dean Stanton no cenário de “Paris, Texas”, em 1984
Wim Wenders, em 2019, no mesmo local das filmagens de seu clássico

WIM WENDERS, DESPERADO
Diretores: Eric Friedler e Andreas Frege
Alemanha, 2020, 120 min

onde: bit.ly/3mI4SJI
4/10, às 20h

A fogueira do Estado

Longa-metragem romeno presente no festival É Tudo Verdade,
“Colectiv” acompanha a cobertura jornalística do incêndio de uma boate que acabou por expor a corrupção em todo o sistema de saúde do país

Um dos 74 mortos no incêndio da boate Colectiv, em Bucareste

Um filme como este deveria mudar tudo. Não somente a maneira pela qual os documentários são feitos, mas o modo como a coletividade é gerida. Ao investigar as consequências de um incêndio em 2015 numa discoteca romena, irônica e justamente intitulada Colectiv, o longa compreenderá a falência de um sistema político.

O jornalista Catalin Tolontan, que apurou o escândalo da diluição dos biocidas nas UTIs romenas: “Quando a imprensa se curva às autoridades, a população é maltratada”

É como se o espectador tivesse diante de si a excepcional dramatização de um fato, exceto que não se trata de ficção. Não são Hoffmans e Redfords a encenar os repórteres que revelarão Watergate, mas jornalistas reais que descobrirão por meio de sua fonte, de seu Garganta Profunda, que a criminosa diluição de biocidas se alastrou pelos hospitais públicos da Romênia. Foi o ambiente incapaz de suprimir infecções hospitalares o responsável pela maioria das 74 mortes, e não o fogo a interromper o show de rock contra a corrupção a um público que não encontrou as saídas de emergência.

O ministro da Saúde da Romênia Vlad Voiculescu, em luta por
desbaratar um sistema corrompido

O cineasta Alexander Nanau não vai atrás dos donos do estabelecimento, mas obtém todos os materiais que lhe interessam além disso, desde a filmagem do início do incêndio até a via crúcis de pacientes queimados e seus parentes, os protestos de rua que resultaram na convocação de novas eleições gerais, as coberturas da imprensa televisiva e, principalmente, o cotidiano da redação do jornal – especializado em esportes! – que primeiro investiga as denúncias, além da luta de um ministro por combater, a partir delas, a corrupção na saúde. 

Uma das pacientes vítimas de queimaduras e mutilações posa para um ensaio fotográfico

O filme tem um ritmo espetacular, calmo e seguro, para abordar os silêncios e as exasperações. Os documentaristas estão presentes nas reuniões e nas apurações, e seus personagens são nítidos, assim como sua apreensão. Os repórteres liderados por Catalin Tolontan logo se verão ameaçados não só por mafiosos, mas pelos próprios colegas. O novo ministro da Saúde depara com a burocratização das leis e a empáfia daqueles sem experiência hospitalar alçados à direção por um gangsterismo há muito instituído.

Nas ruas de Bucareste, em 2015, manifestantes apoiam imprensa que
revelou o escândalo: “Diluam a corrupção!”

“Diluam a corrupção!”, gritam os manifestantes nas ruas. Mas o que ocorrerá se as eleições gerais confirmarem os criminosos no poder? Contenha-se para não assemelhar o assunto deste filme ao Brasil. Nós não temos essa imprensa, nem mesmo a esportiva.

COLECTIV

onde: bit.ly/3mI4SJI

quando: 25/9, às 18h

Sou de Freud

“Isto não é pra mim, Jane”, diz Marilyn

Em 1953, durante as filmagens de “Os Homens Preferem as Louras”, de Howard Hawks, a atriz Jane Russell, uma das protagonistas e a mais experimentada em representação, tentou converter a parceira de cena, Marilyn Monroe, ao cristianismo.

Depois de muito pregar, Jane convenceu Marilyn a assistir a uma das reuniões do grupo Christians in Hollywood durante um dos intervalos das filmagens.

A colega, contudo, detestou a experiência:

“Isto não é pra mim, Jane.”

Tempos depois, Marilyn explicou à atriz Susan Strasberg (filha de Lee Strasberg, o Senhor Actor’s Studio) o que realmente se passara:

“Jane tentou me conduzir à religião enquanto eu quis convertê-la a Freud.”

Barreto, Bishop e o comunismo de arregalar os olhos

Não percam o perfil do Felipe Fortuna no facebook, pois ele está a nos atualizar deliciosamente sobre as porcarias ditas e escritas pela Bishop sobre o Brasil.

Até parece brincadeira. É de desmontar qualquer afeto.

Agora entendo por que, numa ocasião, o Bruno Barreto me disse que seu filme sobre Elizabeth e Lota, “Flores Raras”, era o melhor que já tinha feito.

O Barreto é tão reaça que no meio de um jantar, quando eu lhe contei que minha tese girava em torno da commedia all’italiana, arregalou os olhos. “Mas você não fala sobre o Monicelli, né? Era um comunista, o Fellini me contou!”

E eu: “E daí, velho?!”

ilusão vitoriana

o fenacistocópio (“espectador ilusório”, em grego) foi inventado em 1829 por joseph plateau de modo a confirmar sua teoria sobre a persistência na retina.

o dispositivo consistia em uma sequência de imagens com posições ligeiramente diferentes entre si (inicialmente 16 delas, número adotado depois, no início do cinema) sobre uma placa circular lisa.

quando a placa girava diante de um espelho, criava a ilusão da imagem em movimento.

tornou-se um brinquedo amado e disputado pelas crianças da era vitoriana.

Cercados das joias populares

Por algum tempo meus filhos nos perguntaram como era viver nos anos 1980.

E eu nunca soube responder.

Nem saberei.

Talvez porque, sendo muito jovem então, eu não pudesse compreender a juventude, por mim apenas sentida nas suas porções de velocidade, impedimento e paixão.

Ontem revi “Blade Runner” com um de meus filhos e pensei sobre a década perdida, as “lágrimas na chuva” de que fala Rutger Hauer no improviso final.

E pensei que talvez o ator estivesse anunciando ele mesmo o fim de uma arte, daí a permanência de suas palavras…

Temo que os anos 1980 tenham acolhido o último grande cinema.

Aquele do movimento incessante, da poesia, do drama realista, o horizonte ampliado, a essência muda, as palavras exatas.

Isto é o “Blade Runner” de Ridley Scott pra mim, um verdadeiro filme.

Assim como “À Sombra do Vulcão”, de John Huston, lançado dois anos depois.

Eles contêm a beleza de Murnau e de Douglas Sirk, a fotografia dos reflexos da alma.

Os filmes nas salas de cinema eram um importante pedaço da vida nos anos 1980.

Cercados das joias populares, nós as sorvíamos em sessões seguidas, pois ninguém nos tirava das poltronas se desejássemos prosseguir vendo o mesmo filme.

E a intensidade desse maravilhamento talvez seja o mais difícil de traduzir para quem não a viveu, ou não era jovem então.

Nosso Marlon Brando pop viverá para sempre

Aqui, uma montagem com cenas de um seriado de televisão holandês de 1969, “Floris”, dirigido pelo inseparável Paul Verhoeven, em que Rutger Hauer, morto no último dia 19, aos 75 anos, interpreta um cavalheiro forçado ao exílio, embrenhado na floresta junto ao amigo aborígine.

Juntos os dois personagens tentam reaver a certidão de nascimento do herói, roubada por um nobre mau. Durante a procura, um fidalgo os ajuda, oferecendo-lhes abrigo em seu castelo.

O personagem ardiloso de Hauer em “Feitiço de Áquila”, e talvez também aquele em “Blade Runner”, deve ter nascido disto, desta sua compleição de conquistador, da máscara de príncipe-mendigo que carregava no rosto, do seu saber cavalgar, da improvisação de quem parecia conhecer de cor a vida nos baixos domínios.

Inteligência, independência, solidão, beleza.

Nosso Marlon Brando pop viverá para sempre.

O cinema, no fundo

Perecer em público. “Roma”, Alfonso Cuarón, 2018

Me tornei espectadora do netflix por razões de rendição.

Não posso (embora deseje cada dia mais) estar apenas diante dos filmes do passado com os quais me divirto sozinha e aprendo pra multidão.

Os filmes novos podem não ser lá grande coisa, mas significam combustíveis para a conversa com as amizades.

E você não começa o fogo sem a faísca, como dizia o velho Springsteen (sobre quem vou comentar o especial da netflix, só de raiva, né?)

Minhas idas ao cinema têm sido raras situações de lazer também porque o dinheiro pra entrada, que já é muito, não basta pra custear a coisa toda.

Tem espera, chuva, café, estacionamento, tosse, dor nas costas e celular do vizinho antes de a gente concluir que viu na tela uma novela brasileira ampliada pro mau humor francês.

Quando eu escrevia sobre filmes para a grande imprensa (a luta toda que vocês conhecem), ganhava credenciais, streamings e dvds de lançamentos e me convidavam a ver tudo antes, nas sessões de imprensa intituladas cabines; na verdade, um salão de exibição onde encontrávamos aquelas más pessoas do passado sem a possibilidade de fugir, nem se as luzes se apagassem; um expressionismo danado, senhor Caligari.

Agora que somos sozinhos, eu e meu bolsinho, sozinhos e felizes, preciso de universitários pra baixar filmes novos no torrent. Ou de DVDs piratas.

Muito esforço pra nada.

Vamos de netflix mesmo.

Ou MUBI.

(Mas MUBI é pra filme de arte, e as amizades preferem assuntos mais variados que este, tramas que, digamos, lhes respeite o combalido coração).

Dores de parto, parto de dores

“Roma”, de Alfonso Cuarón.

Resisti a ver.

(o trailer aqui https://www.imdb.com/title/tt6155172/videoplayer/vi3452418585)

Não só porque ri muito com aquele seu anterior “Gravidade”, que era pra ser um filme sério.

Ou porque me aborreci um tanto com seu Harry Potter, quando levava meus filhos pra ver a saga (eles preferiam os livros).

Temi pelo filme autoral de um diretor de estúdio sem ideias próprias.

Aquelas longas sequências de melancolia em p&b, no trailer…

Encarei-o porque era Natal e esnobávamos o tempo.

E descobri que Cuarón tem muitas ideias.

Não exatamente próprias.

Basta! Tem ideias.

E o que ele faz de novo é condensá-las com um propósito muito bom, que é o de narrar a própria história.

Dizem que “Roma” é o “Que horas ela volta” mexicano.

Pra mim, uma grande injustiça com o Cuarón.

Porque, ao contrário da Muylaert, este é um diretor com conhecimento de cinema e técnica pra se permitir um sonho de invenção (algo obrigatório nos grandes diretores antes; Chaplin ou Welles se sentiriam menos que seres humanos se não inventassem alguma coisa jamais provada a cada filme, porque, senão, de que serviria filmar?).

“Que horas” é novela, a começar pelo título ruim. Novela brasileira, interpretada pela Casé perdida no tiroteio, estranhamente convencida de que escapará de todas as balas.

(Olha eu, aqui, falando mal de novela para os brasileiros.)

Contudo, reconheço que a diretora acertou em cheio ao mostrar como a educação do pobre é um incômodo central da classe média, essa aberração marilena do golpe.

Roma, amor, milícia

Imagino Cuarón afetado pelo mesmo constrangimento. O de ter crescido graças ao amor de uma babá apartada da própria família, impossibilitada de ter a sua, em um México convulsionado pelas milícias.

A jovem menina que cuida de uma família inteira, mas usa outra língua com os seus. O “mexicano” é o espanhol do poder local. A família que representa a de Cuarón fala mexicano com ela e lhe dá o lar apartado, ou o que conhece por amor.

Amor, Roma.

O nome do bairro onde Cuarón cresceu.

Muito inteligente que o filme se torne “Roma”, uma vez que o background cinematográfico e histórico é mesmo o do cinema italiano. Mulheres e crianças como micro heróis de uma revolução, à moda do que ensinou De Sica nos roteiros de Zavattini.

Neo-realismo às vezes, mas só às vezes…

O fundo é o plano primeiro

Porque se trata de um filme relacionado a um momento imediatamente posterior, nada heróico, do italiano.

O momento de Valério Zurlini, por exemplo, diretor que nunca esteve entre os “primeiros” da Itália.

Ou de Fellini, que estendeu as ideias do mentor Rossellini para as suas próprias – e assim se separou do amigo.

“Oito e Meio”, Federico Fellini, 1963

Diretores a conduzir muito bem seus personagens ao drama, mas que não os encerram no drama gritado de “novela”; ao fundo deles, corre a realidade, aliás como fez Buster Keaton em “A General”. O fundo é a nossa história, sua ultrapassagem, o contexto.

As coisas não deixam de acontecer ao fundo mesmo que em primeiro plano transcorra o drama particular, ensinam esses diretores, esse momento.

Valério Zurlini, ele próprio, contratava até mesmo um “diretor de fundo” para conduzir as sequências impressionantes, como em “Verão Violento”, de 1959.

“Verão Violento”, de Valério Zurlini, 1959

Sessenta anos atrás!

Um tipo de diretor, o tal do fundo, que desapareceu da historiografia.

Cuarón encena perturbadoras batalhas em localidades públicas, como faz outro sucedâneo do neo-realismo, a “commedia all’italiana”.

O sufocamento de viver, consumir e perecer no parque de diversões, na praia, aos olhos comuns.

Cuarón conduz, como se disse, ele próprio tudo, o primeiro plano e o além dele.

O primeiro plano e o além dele

O homem-bala à distância, no parque, enquanto a protagonista caminha lentamente à espera de encontrar quem lhe abandonou…

A protagonista grávida na loja de móveis, à procura de um berço, enquanto se dá o confronto entre milicianos e estudantes, primeiro fora, depois lá dentro…

Sem mencionar um parto dessa dor…

Aulas de cinema que o cinema desaprendeu.

Um filme que não concede à superação, ao humor, ao sublime.

Um longa para materializar a tristeza…

Mais que ela, a distopia.

Nosso tempo.

Nossos homens nascidos mortos.

Eu então lhe diria, se isto lhe fosse possível:

Vá até a sua poltrona vê-lo.