A ignorância é o brinde

Nos anos 1990 eu trabalhava numa grande revista cujo editor, hoje astro da imprensa de direita, era um homem atormentado, porém culto, porém digno com seus subordinados, porém capaz de assumir para ele os erros da equipe. Editores assim raramente existiram antes ou depois para mim. Ser de esquerda não obriga ninguém a desempenhar o trabalho com esse profissionalismo, infelizmente. E ele foi realmente especial.

Um dia, até por isso, entrou em franco atrito com a direção e se viu demitido, não sem antes olhar com pena para nós, os subordinados que permaneceríamos, consolando-nos: “Eu fiz o que pude.”

O editor a substituí-lo era um pulha que exigia receber presentes. No dia de sua chegada à redação, flores se abarrotaram em cima de sua mesa, partidas de todas as assessorias de imprensa, especialmente as musicais. Ali já entendi que eu não teria mais lugar.

Uma vez esse expoente me perguntou se eu havia feito o “necrófilo” de uma celebridade, em lugar de “necrológio”, e nem pude rir. Mas lembro de ter respondido: “Não faço essas coisas não”, para que ele me respondesse com seu olhar grave ou estúpido, eu era incapaz de distinguir.

A coisa prosseguiu daí pra baixo, até o dia em que fui fazer um perfil pedido por ele, de uma personalidade até então desagradável a mim, mas que até hoje recordo com carinho: Claudia Raia. Ela era mais baixa do que eu, se bem me lembro, e estava sem salto, ao lado de uma assessora que não largava de seu pé. Tudo espantoso. Era tímida, imagine, e ingênua também. E se dizia muito triste, muito arrependida de ter feito campanha para um homem tão mau para o Brasil como Collor foi.

Então, quando me sentei à máquina (sim, enquanto a Folha já usava havia muito os computadores, nessa redação eu tinha de batucar nas teclas pretas), eu o fiz com muito carinho e responsabilidade por ela e por quem leria seu perfil. Escrevi o melhor que pude.

Mas lá estava o editor necrófilo diante de mim.

Ele leu e me chamou até sua mesa, sério:

“O problema com seus textos é que nunca sabemos o que estará no parágrafo seguinte”.

Pensei por dois segundos e respondi: “Isso é ruim?”

Era ruim.

Ri e fui embora da revista, porque ainda por cima suspeitei que ele havia sido colocado lá especificamente pra me mandar embora, e que não havia como lutar mais contra tantas forças contrárias.

Conto tudo isto porque, apesar de toda a ignorância a grassar nas redações, jamais imaginei que ouviria tamanho absurdo de novo.

Mas a gente não pode ser arrogante assim. Achar que sabe tudo!

Acontece de o mundo dar voltas e eu ter de parar sempre em algum momento no qual é um frila ou nada para sobreviver.

Eis que ouço exatamente isto semana passada de alguém que precisou autorizar um texto meu: “É estranho como a gente não sabe o que você vai dizer em seguida! A gente se surpreende o tempo todo na leitura.”

Desta vez resolvi tomar o dito como elogio. Até porque, depois de muito matutar, essa espécie de editor parece ter gostado do material no geral, e só quer esse detalhe, que eu mude meu lide – esse que agora deve dizer tudo o que escreverei em seguida, pra não ter erro.

Eu sei que sou uma perturbação, que vim ao mundo pra isso. Mas não vou deixar de fazer jornalismo se precisar, porque perdidas minhas ilusões já foram séculos atrás.

O santo shopping dos pretos

Queria esclarecer uma coisa.
Quando mudei para o centro frequentei um shopping de verdade pela primeira vez.
O Shopping Light, onde antes funcionou a central administrativa da Light e, depois, da Eletropaulo.
Tive paixão por esse prédio na calçada oposta ao do Mappin desde a infância.
E meus pais, quando eu já não andava com eles, amavam ir até lá para passear e comer nos fins de semana.
O prédio não é preservado em sua integridade arquitetônica interior.
Mas alguns pontos ali dentro ainda são maravilhosos por evocar antigos passos.
As vitrines na entrada, de onde observamos o reflexo do Municipal.
Os corredores dos antigos elevadores, hoje desativados.
Os andares altos, de onde avistamos a praça Ramos.
As escadas rolantes.
Mais que isso, é o único shopping da cidade, de seu centro, onde os pretos circulam livremente com suas famílias, sem medo de que os seguranças venham massacrá-los pela cor.
Na época em que me mudei, ia todo dia por aquelas bandas só para apreciar esse lindo espetáculo.
Até me matriculei na academia descuidada cuja mensalidade era 80 reais.
Eu sentia que pagava para estar diante das imensas janelas que me davam uma perspectiva de todo o viaduto do Chá.
Malhar, emagrecer, o que são tais coisas diante da visão?
E torcia para que caísse água, e que eu ficasse presa lá, e que pudesse fotografar as pessoas livres enquanto esperassem a chuva passar.
Então, quando hoje vejo essa enorme fila da gente remediada ou humilde só para entrar no prédio imponente, com máscaras no queixo, usadas como acessórios de estilo, posso compreender o efeito Beyoncé que as captura.
O pobre naquele entorno sente sua majestade.
Beleza e poder.
Shopping Light, shopping-luz.
Só me entristece mesmo que precisem correr até ele e aglomerar-se nele, desde o quarteirão de entrada, justamente neste momento.
Não carecia.
Preto é bonito onde estiver.
E até mais.

Infância

quando criança eu adorava o filme e seu título em português: “bonnie and clyde: uma rajada de balas”.

mas nunca sabia direito quem era a linda mulher da história, se bonnie ou clyde.

então construí um caminho mental. bonnie usava mais boina que o clyde. era a mulher.

e eu às vezes, na brincadeira dos meninos, queria ser a bonnie.

sem boina mesmo, porque o importante era rajar as balas.

Letícia, um anjo perfeito

A gente chama de anjos os habitantes das nuvens, mas não tem palavras para descrever quem abre as asas no chão. Ora, são anjos também.

Letícia Kaplan, a primeira filha de Bob Fernandes e Ana, morta aos 24 anos no sábado 10, sempre foi um anjo perfeito. 

Quieta, esguia, os cabelos algo anelados, tinha os olhos grandes e claros. Olhos de cinema mudo, de Lilian Gish. Seu observar agudo não escondia o alvo. Se ela lhe observasse, você se saberia observado.

Quando eu soube que havia entrado na escola de Direito, achei perfeito, porque era notável como ela apontava os detalhes e acompanhava a sequência das cenas. Acredito mesmo que tenha se formado brilhantemente.

Digo essas coisas, mas mal falei com ela na vida. Eu a conheci muito menina, colega dos meus filhos na escola de esportes. Sua idade regulava com a de meu filho mais velho e a de sua irmã Luana, com a do mais novo. Dois irmãos, duas irmãs.

Letícia criança era grande e longilínea, e seu corpo se dava muito bem com as desenvolturas da feminilidade. A ginástica, a corrida. Em campo, de início foi tímida, depois se tornou imprescindível na defesa. Num jogo decisivo, lembro do Bob ao meu lado comentando imodesto sua atuação como zagueira: “Praticamente um Baresi!” Ou o jogador italiano teria sido outro?

Ao fim do ano, a escola realizava longa e incansável olimpíada com competição final. Ficávamos às vezes na arquibancada por muito tempo, à espera dos jogos que se emendavam. Numa dessas ocasiões, meu filho mais novo aproximou-se do meu colo e deitou a cabeça suada na minha perna, de modo a descansar. Bob então se disse invejoso do gesto, pois suas garotas já pareciam independentes demais para dar esse mole público a um pai apaixonado.

Suas meninas iam crescendo, amadas e admiradas, e percebíamos a nítida diferença entre ela e a irmã Luana, uma atacante decisiva e virtuosa. Letícia, esse nome que a ligava à alegria, era também seriedade.

Bonita demais.

Um anjo perfeito.

De berço

Em um congresso de farmacêuticos nos anos 1950

Esta é minha mãe num congresso de farmacêuticos nos anos 1950. Por muito tempo ela foi mulher quase solitária a praticar seu saber. Gostava muito de trabalhar dentro de seu ofício, mas a demitiram grávida de mim, sem qualquer pudor ou lei para protegê-la, logo na década seguinte. (Também quase nasci em pleno voo, mas depois conto isso melhor pra quem se interessar).

Minha mãe era do tipo que não me queria envolvida em namoro, que jamais me preparou um enxoval. “Não pense em casamento. O estudo é a única coisa que importa”, me disse, na contramão do que as outras mães faziam naquela época. E eu entendia seu porquê na prática. Sem trabalho, ela, a única entre as irmãs a se formar na faculdade, era triste – e nós, muito pobres.

Não sei se em razão do que ela sempre me aconselhava, mas jamais na infância me visualizei vestida de noiva, casada ou com filhos. Vai ver que por isso mesmo casei (me juntei) e tive filhos… Foi o natural, o não-iludido, a incrível surpresa em minha vida.

Mas eis o que considero importante em minha mãe, cuja relação comigo sempre sofreu alguma espécie de tensão, mas por outros motivos. Tenho razão para admirá-la. Ela me deu sem saber a primeira grande aula de feminismo da vida. E hoje, porque essa mulher andava a seu modo na contramão, sou feminista com um orgulho que só.

Um gato, um rato

Morre com pneumonia aos 92 anos Flávio Damm, um fotógrafo para nossa história do instante e do humor

Uma comemoração da Revolução dos Cravos em Lisboa, 25 de abril de 2008

Flávio Damm (1918-2020) era meu amigo. Não que ele soubesse exatamente disso, porque amigos não lhe faltavam e ele não me conhecia pessoalmente. Mas eu o entendia assim porque, quando lhe telefonava da redação, aflita por um raciocínio inteligente que pudesse incluir nas minhas reportagens sobre fotografia, ríamos às vezes por mais de uma hora durante a qual ele enfileirava episódios anedóticos. Flávio soltava sem pudor linhas admiradas ou duras acerca de fotógrafos do passado, como seu ídolo José Medeiros ou o correspondente de guerra Luciano Carneiro, que não sabia invejar secretamente.

Não raro, após essas longas ligações, ele me enviava de maneira gentil fotos suas autografadas, como esta acima, de Lisboa, naquele Portugal que visitava sempre. Cidade da história, da qual ele extraía um fado de alegria.

Era então, melhor dizendo, minha amizade à distância no jornalismo, alguém cujos livros eu resenhava e em torno de quem sempre procurava uma desculpa a resultar num telefonar. Seja um fotógrafo, pense sobre o que faz, e eu não largo você nunca mais…

Flávio me deu uma definição muito prática para o que, na sua opinião, seria um fotógrafo de rua, no caso ele próprio: “Eu me aproximo como um gato e fujo como um rato”. A foto de rua (e ele nunca se esqueceu disso, como todos os grandes) é um roubo explícito, necessário – e galante, contudo.

Há alguns anos, Flávio, que na revista Cruzeiro experimentara a passagem gloriosa e sofrida do uso de câmeras reflex (cujos negativos, quadrados, eram do apreço de Jean Manzon) para o de ágeis Leica (e Manzon de início vetara seu uso), nos últimos tempos vivia ensimesmado com o fim da fotografia. Bem, ensimesmado é pouco. Furioso mesmo.

Ele ouvira dizer que em O Globo não se usariam mais máquinas fotográficas, mas câmeras de filmar. Isto daria então ao editor o poder de escolher o frame que lhe aprouvesse do trabalho de quem filmava para publicação no jornal. Seria demais se isto de fato se desse e eu no fundo desconfiava dessa ocorrência, porque se tratava de acrescentar mais uma atribuição ao editor de jornal, ele que já mergulhava em tantas imagens a decidir num dia só. De um jogo de gato e rato, tudo passaria então à atribuição de lebres atordoadas…

Flávio foi um precursor em tudo, não só porque levou ao mundo as primeiras imagens do exílio de Getúlio Vargas ou esteve longamente com Cândido Portinari, tornando-se seu retratista quase exclusivo e dando até mesmo ao único filho o nome do pintor. Foi precursor porque, insistente capturador de breves momentos bem-humorados na cidade áspera, transformava-a por vezes numa vila de frescor, como aquela Paris de Robert Doisneau ou Édouard Boubat.

Vou sentir muita falta de sua risada, de sua narrativa precisa de detalhes e datas. Principalmente, de sua reserva memorial e analítica para uma arte sobre a qual repousa um silencioso desprezo crítico e de apreciação. Amigo, fique em paz.

As lágrimas apagadas

Documentário refaz a trajetória de Vivian, a primeira esposa
de Johnny Cash, perseguida pela Ku Klux Klan e descaracterizada pela cinebiografia “Johnny e June”, lançada há 15 anos

Vivian, que nasceu Liberto, a primeira e controversa esposa de Johnny Cash

Quando um pintor deseja modificar um trecho indesejado de seu quadro, cobre-o usando o pincel. Mas, conforme o tempo passa, seu quadro corre um risco. O envelhecimento pode anular a camada de tinta e fazer surgir o que ficou encoberto. A este processo, na pintura, se intitula “arrependimento”. Vivemos para constatar algo parecido surgir no cenário da música popular estadunidense. Vivian Liberto (1934-2005), a primeira esposa de Johnny Cash, foi apagada de um quadro inteiro e o arrependimento começou.

Na sua festa de casamento com Cash, em 1954

Vivian conheceu o marido aos 17 anos numa pista de patins enquanto ele, aos 19, prestava serviço militar em San Antonio, Texas. Cash viajou para servir em Berlim, escreveu-lhe mil cartas apaixonadas e de volta casou-se com ela. Tiveram quatro filhas em breve período, enquanto sua carreira explodia e eles se mudavam para uma montanha na Califórnia. De menina católica do interior, Vivian se viu cercada por flashes e fãs. Não tardaria em se apoiar numa espingarda capaz de livrá-la tanto das cascavéis quanto de possíveis ataques da Ku Klux Klan. Entendida como negra pelos supremacistas, Vivian precisou declarar-se branca em juízo para que o marido pudesse fazer shows no sul. Logo, mergulhado em drogas e em novo amor, o músico não voltaria mais para casa.

Ao centro, rodeada pelas filhas, anos depois da separação

Endemonizar a mãe solitária e rechaçada pelo establishment foi o que fez Johnny e June, cinebiografia de 2005 que deu o Oscar a Reese Witherspoon no papel de June Carter, a segunda mulher de Cash. No filme, Ginnifer Goodwin interpreta Vivian, parodiada no Saturday Night Live por Kristen Wiig. O documentário My Darling Vivian, que não é musical, mostra como até mesmo o único agradecimento feito à primeira esposa, durante o funeral de Cash, foi cortado pela transmissão televisiva do evento. Suas filhas produziram este filme de narrativa tradicional, recheado de depoimentos, fotos e efeitos delicadamente especiais, para dar sua versão sobre a mãe cancelada, e já era tempo.

MY DARLING VIVIAN
Diretor: Matt Riddlehoover
Brasil, 2019, 90 min

onde: bit.ly/3hIMcWs [até 20/9, às 18h]

Os olhos arrancados do Brasil, segundo Pasolini

Eu me sentia em dívida com vocês, uma vez que tanta leitura teve outro post deste blog sobre a produção poética de Pasolini, intitulado “Pasolini em Recife”. E agora creio que acalmo minha consciência ao lhes mostrar o outro grande, imenso poema que o cineasta fez sobre o Brasil.

Em 1970, durante sua viagem à América do Sul para participar de um festival em Mar del Plata, no qual apresentaria “Medeia, a feiticeira do amor” (1960), Pasolini visitou brevemente o País. Fez uma escala no Rio de Janeiro, foi obrigado a um pouso de emergência em Recife, na ida, e rumou a Salvador, por fim. O Rio de Janeiro inspirou-lhe a escrever “Hierarquia”, que segue aqui com tradução de Mariarosaria Fabris.

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“É assim, por mero acaso, que um brasileiro é fascista e outro subversivo; o que arranca os olhos pode ser confundido com o que tem os olhos arrancados”

HIERARQUIA

Pier Paolo Pasolini, 1971

Se chego a uma cidade
além do oceano
Muita vez chego a uma nova cidade, levado pela dúvida. Tornado de um dia para outro em peregrino
de uma fé na qual não creio;
representante de mercadoria faz tempo sem valia,
mas é grande, sempre, uma estranha esperança –
Desço do avião com o passo do culpado,
o rabo entre as pernas, e uma eterna vontade de mijar,
que me leva a andar meio dobrado, com um sorriso incerto – Livrar-se da aduana, e, muita vez, dos fotógrafos:
fato corriqueiro que cada um encara como se fosse exceção.

 

Depois o incógnito.

Quem passeia às quatro da tarde
por canteiros cheios de árvores
e alamedas de uma desesperada cidade onde europeus pobres vieram criar de novo um mundo à imagem e semelhança do seu, levados pela pobreza a fazer do exílio sua vida?
Com um olho em meus afazeres, minhas obrigações –
Depois, nas horas vagas,
começa minha busca, como se ela também fosse uma culpa –
A hierarquia, porém, está bem clara na cabeça.
Não há Oceano que aguente.
Desta hierarquia, os últimos são os velhos.
Sim, os velhos a cuja categoria começo a partencer

(não falo do fotógrafo Saderman que, com a mulher já amiga da morte, me acolhe sorrindo
no pequeno estúdio de toda uma vida)
Sim, há algum velho intelectual que na Hierarquia
está à altura dos mais belos michês
os primeiros que se encontram nos pontos logo achados e que, como Virgílios, conduzem com popular delicadeza algum velho

é digno do Empíreo,
é digno de ficar perto do primeiro garoto do povo
que se oferece por mil cruzeiros em Copacabana
os dois são meu guia
a segurar-me pela mão com delicadeza,
a delicadeza do intelectual e a do operário (quase sempre desempregado)
a descoberta da invariabilidade da vida
requer inteligência, requer amor.
Vista do hotel de Rua Resende, Rio –
a ascese exige sexo, exige caralho –
aquela janelinha do hotel onde se paga pelo quartinho – se olha dentro do Rio, num aspecto da eternidade,
a noite de chuva que não traz refrigério,
e molha as ruas miseráveis e os entulhos,
e os últimos beirais do art nouveau de portugueses pobres sublime milagre!
E assim Josué Correia é o Primeiro na Hierarquia,

e com ele Haroldo, veio menino da Bahia, e Joaquim.

A Favela feito Cafarnaum debaixo do sol –
Cortada pelas valetas do esgoto
um barraco em cima do outro, vinte mil famílias
(ele, na praia, pedindo-me um cigarro como se fosse um puto)

Não sabíamos que aos poucos iríamos nos revelar, prudentemente, uma palavra depois da outra,
dita quase distraidamente:
eu sou comunista, e: eu sou subversivo:
sou soldado de uma divisão expressamente treinada
para lutar contra os subversivos e torturá-los;
mas eles não sabem;
as pessoas não se dão conta de nada;
elas pensam em viver
(me fala do lumpemproletariado).
A Favela, fatalmente, nos aguardava
eu grande entendedor, ele guia –
seus pais nos acolheram, e o irmãozinho nu
que acabara de sair de trás da lona –
pois é, invariabilidade da vida,

a mãe
falou comigo como Maria Limardi, preparando a limonada sagrada para o hóspede; a mãe encanecida, mas de carnes firmes; envelhecida como envelhecem as pobres, e ainda garota; sua gentileza e a do companheiro,
fraternal com o filho que só por sua vontade
agora era um mensageiro da Cidade –
Ah, subversivos, busco o amor e encontro vocês.
Busco a perdição e encontro sede de justiça.
Brasil, minha terra,
terra de meus amigos à vera,
que não se interessam por nada
ou então se tornam subversivos e feito santos são cegados.
No círculo mais baixo da Hierarquia de uma cidade,
imagem do mundo que de velho se faz novo,
coloco os velhos, os velhos burgueses,
pois um velho da cidade, se é do povo, fica garoto
não tem nada a defender –
vestindo camiseta e calção surrado como Joaquim, o filho.

 

Os velhos, minha categoria,
quer queiram ou não queiram –
Não se pode fugir do destino de deter o Poder, ele se coloca por si
lenta e fatalmente nas mãos dos velhos, apesar de eles serem mãos-furadas
e sorrirem humildes feito mártires sátiros –

Acuso os velhos de terem vivido seja como for, acuso os velhos de terem aceitado a vida

(e não podiam não aceitá-la, mas não existem vítimas inocentes)
a vida, ao acumular-se, deu o que ela queria – acuso os velhos de terem feito a vontade da vida.

De volta à Favela onde não se pensa em nada
ou se almeja ser mensageiros da Cidade
lá onde os velhos são americanófilos –
Entre jovens que jogam, bravos, futebol
diante de cumes encantados sobre o frio Oceano,
quem quer algo e sabe, foi escolhido ao acaso –
inexperientes em imperialismo clássico
em delicadezas para com o velho Império a ser explorado.
Os americanos dividem entre si os irmãos supersticiosos
sempre aquecidos pelo próprio sexo como bandidos por uma fogueira –

É assim, por mero acaso, que um brasileiro é fascista e outro subversivo; o que arranca os olhos pode ser confundido com o que tem os olhos arrancados.
Joaquim nunca poderia ter sido diferente de um sicário.
Então, por que não amá-lo, se assim fosse?
O sicário também está no vértice da Hierarquia,
com seu traços simples, mal esboçados,
com seu olhar simples,
sem outra luz do que a da carne.
Assim, no topo da Hierarquia,
encontro a ambiguidade, o nó inextricável.
Oh, Brasil, minha desgraçada pátria,
voltada sem escolha à felicidade,
(de tudo são donos o dinheiro e a carne,
enquanto você é tão poético)

Em cada habitante seu, meu concidadão, há um anjo que não sabe de nada, sempre curvado sobre seu sexo,
e se agita, velho ou jovem, para pegar em armas e lutar,
pelo fascismo ou pela liberdade, é indiferente – Oh, Brasil, minha terra natal, onde
as velhas lutas – bem ou mal já vencidas –
para nós velhos tornam a fazer sentido – respondendo à graça de delinquentes ou soldados, à graça brutal.

 

É preciso saber viver

Quando acordo me vêm as melhores palavras. Mas demoro a levantar. Então saco do celular, na cama, como quem pegava o lápis na cabeceira. Hoje foi assim, ontem também. Ontem um texto sobre um filme, hoje a coisa difícil de ser dita ao amigo, os dois amontoados saídos com relativa facilidade, após a reflexão da noite. O melhor que faz o celular por mim é estar sempre perto para que eu escreva e fotografe nas horas improváveis. Mas, claro, há também as notícias que chegam nesses momentos, sempre piores. E a inspiração se perturba, começa a sumir, vira a areia que rola nesta pedra de tantos anos. A gente nunca vai aprender direito como fazer as coisas.

Na vigência pandemente

Acabo de comentar com uns amigos daqui como rio e choro o tempo todo durante a vigência pandemente de meu país, como tudo fotografo (embora isto faça sempre), e como tudo quero ser, o presente, o passado, e como vejo um futuro, quem sabe, engordando (sem ser triste) a cada dia, e como tudo quero amar. Há quem não me entenda, quem não me veja, nem agora, nem antes, muito menos na imagem do que será, não importa, não os vejo nem entendo tampouco, eu que vivo ao lado deles. Perdoem a enxurrada de fotos, de auto-imagens, de desconcertos neste fluxo demonstrativo de nossas vidas que eram uma antes e agora são outras. Perdoem-me a ausência de outros rostos, perdoem que seja o meu. É um processo de cura e entendimento, quem sabe, e espero que o aceitem os que me têm amizade, talvez só eles, viva eles!, e que tudo viva em nós.